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3. DISCURSO, LINGUAGEM, E A PSICOLOGIA SOCIAL DISCURSIVA

3.2 Repertórios interpretativos e posicionamentos

De acordo com Potter et al. (1990), a metáfora da construção permite que se compreendam alguns pontos sobre a análise do discurso, e que são importantes para a temática discutida neste trabalho, pois lançam luz sobre a relação entre o discurso e a construção da realidade.

12 Tradução livre. Original em inglês: “Construction is studied in DSP as the process of assembling and

68 Os autores afirmam que o discurso é construído a partir de recursos lingüísticos que já existiam previamente. Assim, as práticas discursivas fornecem ao sujeito opções limitadas de sistemas, termos, formas narrativas, metáforas, lugares comuns, até mesmo formas gramaticais específicas nas quais as pessoas se baseiam para caracterizar e avaliar ações, eventos e outros fenômenos, e é a partir destas opções que um relato pode ser montado. Como se pode ver, o sujeito tem diante de si um repertório amplo de opções, das quais pode selecionar e escolher o modo que lhe convém de desenvolver suas descrições ou argumentações.

Potter et al. (1990) nomeiam estes agrupamentos de termos com a expressão “repertórios interpretativos”, cuja definição enfatiza principalmente o caráter contextualizado e situado do discurso utilizado para construir objetos, em contraste com as visões que o vêem como algo estático e o reificam. Potter (1996) afirma:

Repertórios interpretativos são conjuntos de termos sistematicamente relacionados, frequentemente usados com coerência gramatical e estilística, e frequentemente organizados ao redor de uma ou mais metáforas centrais. Eles são historicamente desenvolvidos e compõem uma parte importante do senso comum de uma cultura, embora alguns possam ser específicos de certos domínios institucionais.13

(POTTER, 1996, p. 131)

As pessoas, nas suas interações com as outras, e de acordo com suas intenções, selecionam os repertórios que melhor se adéquam às práticas que desejam efetuar. Ou seja, eles não constroem mecanicamente a realidade, mas de acordo com o tipo de versão que desejam fabricar. É sempre a partir de um contexto imediato que os repertórios interpretativos são escolhidos, de acordo com a sua adequação ao momento, assim como o repertório de movimentos de um bailarino. De acordo com Potter e Wetherell (1992), o conceito de repertórios interpretativos permite que o pesquisador distinga conjuntos contrastantes de termos como fazendo parte de discursos distintos, mas que fazem sentido quando se leva em consideração este conceito.

Para Potter (1996), o conceito de repertórios interpretativos destina-se primeiramente a ajudar na especificação e análise dos recursos interpretativos das pessoas. São, enfim, recursos lingüísticos disponíveis em diferentes situações e que são escolhidos na intenção de realizar determinadas ações. São recursos flexíveis, usados seletivamente de acordo com a

13 Tradução livre. Original em inglês: “Interpretative repertoires are systematically related sets of terms, often

used with stylistic and grammatical coherence, and often organized around one or more central metaphors. They are historically developed and make up an important part of the common sense of a culture; although some may be specific to certain institutional domains”.

69 situação, e, segundo Potter (1996), as pessoas se baseiam em diferentes repertórios para produzir sentido sobre o mundo e realizar ações. Na opinião de Wetherell, Stiven e Potter (1987), o conceito de repertórios interpretativos enfatiza a questão da flexibilidade que a seleção de certos termos de acordo com a função do discurso possibilita para as pessoas.

Wetherell e Potter (1996) argumentam que o repertório interpretativo é uma ferramenta analítica. Segundo sua linha de raciocínio, o discurso é variável. As pessoas dizem coisas diferentes de acordo com a função daquilo que falam ou escrevem, de modo que muitas vezes uma mesma pessoa entra em contradição com o que disse em outra oportunidade. Fica claro, assim, que as opiniões e descrições efetuadas não são reflexos de pensamentos pré- formados e coerentes, mas produtos da orientação para a ação do discurso. Porém, essa variação se dá entre repertórios interpretativos diferentes. Estes repertórios são, na definição dos autores, unidades lingüísticas vinculadas e internamente consistentes. Os repertórios interpretativos seriam, então, os elementos essenciais usados na construção do discurso, e são constituídos por um determinado número restrito de termos usados de uma forma estilística e gramatical próprias. É, em resumo, uma espécie de padrão recorrente na construção de uma determinada orientação do discurso. A análise do discurso como entendida pela PSD não se resume à identificação e análise dos repertórios interpretativos, embora ele seja um conceito importantíssimo nesta atividade.

A experiência das pessoas a respeito de uma série de questões culturais e de identidade pessoal só pode ser entendida e expressa a partir dos repertórios disponíveis no discurso. Assim, de acordo com Davies e Harré (1990), o discurso tem um papel parecido com os esquemas conceituais da filosofia da ciência contemporânea, embora eles afirmem que os esquemas sugerem uma noção de que são estáticos e localizados na mente de cada pensador, enquanto o discurso sugere um processo público multifacetado no qual há uma construção dinâmica e progressiva dos sentidos.

É interessante notar que existe uma relação de influência mútua entre o sujeito e os discursos: os repertórios interpretativos já existiam antes de o sujeito nascer, de forma que ele não criou completamente o modo de se expressar. Apenas escolhe entre as opções já dadas. Visto deste ângulo, existe uma espécie de constrangimento do discurso em relação ao sujeito, ou, utilizando a expressão de Potter et al. (1990), é como se o discurso usasse as pessoas. Wetherell e Potter (1992, p. 61) chegam a afirmar: “o discurso é ativo, persuasivo e uma parte

70 dominante da estrutura da vida social”14. Em relação a essa questão, Davies e Harré (1990) argumentam que a força constitutiva das práticas discursivas está em prover posições de sujeito. Quando uma pessoa se posiciona em uma determinada prática discursiva, ela incorpora um repertório cognitivo e uma localização dentro da estrutura de direitos de quem usa tal repertório. Quando abraça um determinado posicionamento, a partir de então a pessoa passa a compreender o mundo pela ótica dessa prática discursiva, utilizando-se de suas imagens, metáforas, linhas de história e conceitos. Uma pessoa só terá sua existência como sujeito socialmente integrado se se posicionar em alguma das possibilidades oferecidas a ela.

Por outro lado, é importante considerar-se também que há uma escolha ativa do sujeito, uma flexibilidade em sua relação com os discursos, já que, embora os repertórios disponíveis sejam limitados e criados anteriormente, a orientação funcional nos faz escolher, conscientemente ou não, quais repertórios iremos utilizar entre uma multiplicidade de opções. No que diz respeito a isso, Davies e Harré (1990) dizem que elas estão inevitavelmente envolvidas, pois há numerosas e contraditórias práticas discursivas nas quais as pessoas poderiam se engajar, ou seja, o posicionamento é algo mutável de acordo com a ocasião. Para eles, o fato de nos posicionarmos torna possível que nos pensemos como sujeitos com escolhas, pois nos localizamos nas conversações a partir das formas narrativas com as quais temos mais familiaridade, além de levarmos para tais narrativas nossas próprias histórias vividas subjetivamente.

Como se pode ver, há uma relação de influência mútua entre a pessoa e o discurso, o que torna a história humana um processo sempre em construção. Para Davies e Harré (1990), uma pessoa é o resultado de variados processos de interação social, e dessa forma nunca é um produto fixo e acabado. De acordo com eles (op. cit., p. 9),

As estruturas sociais são coercitivas a tal ponto que, para ser reconhecida e aceita, uma pessoa terá que operar em seus termos. Mas, o conceito de pessoa que trazemos para qualquer ação inclui não apenas o conhecimento de estruturas e expectativas externas, como também a idéia que somos não apenas responsáveis por nossas próprias linhas, como também que há múltiplas escolhas tanto em relação com as possíveis linhas que podemos produzir, como também quanto à forma da própria peça. Somos, portanto, não apenas agentes (produtores/diretores) como também autores e protagonistas, e os outros participantes são co-autores e co-produtores do drama.

Dessa forma, o posicionamento torna-se um conceito crucial para a compreensão do processo de construção da pessoa e sua relação com os discursos. Para melhor compreensão,

14 Tradução livre. Original em inglês: “Discourse is active, compelling and a pervasive part of the fabric of social

71 posicionar-se pode ser entendido, a partir de uma definição de Davies e Harré (1990), como um processo discursivo no qual as pessoas são situadas nas conversações, através de aspectos autobiográficos que permitem a compreensão de como cada participante se concebe e concebe os outros, a partir das posições que cada um assume na história. Embora nos posicionemos e sejamos posicionados todo o tempo, ninguém está preso a um determinado posicionamento e suas respectivas práticas discursivas. Potter (1998) acrescenta que o conceito de posicionamento se refere às relações que os falantes e escritores mantêm com as descrições que realizam, ou seja, ao grau de distância ou proximidade que estabelecem com aquilo que dizem. De acordo com ele (op. cit., p. 159), “a posição é fundamental quando abordamos informes factuais, porque os falantes administram sua responsabilidade pessoal ou institucional para tais informes mediante a parafernália da posição”.15

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