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CAPÍTULO I – A pesquisa e seu contexto

2.1 O fenômeno das representações sociais

2.1.1 Linguagem e pensamento: categorias fundamentais

No bojo das inquietações referentes à compreensão das representações sociais, a linguagem e o pensamento apresentam-se como categorias centrais, entendidas como manifestação de uma totalidade sociohistórica amplamente significada e ressignificada pelos valores e práticas sociais que reproduzem uma visão de mundo que se desenvolve nas relações sociais. Neste sentido, a partir dos estudos realizados no início do século XX pelo psicólogo soviético Vygotsky35 é possível entender os aspectos básicos que fazem tanto da linguagem quanto do pensamento processos psicológicos fundamentais a serem desvendados, em vista de uma análise concreta das representações sociais.

Dedicando especial atenção ao campo da psicologia, Vygotsky apresenta uma teoria que, fundada a partir dos pressupostos do desenvolvimento intelectual, busca garantir uma efetiva compreensão da dinâmica das funções psíquicas superiores que possibilitam ao homem produzir conhecimentos e agir sobre o mundo. Produto do desenvolvimento histórico da humanidade, as chamadas funções psíquicas superiores referem-se a mecanismos intencionais, controladas conscientemente e que possibilitam ao indivíduo posicionar-se diante do mundo e pela via da interdependência constituir a sua própria identidade. Assim sendo, não se trata de um processo inato, mas sim de algo que se origina nas relações entre as pessoas e que permite seguir a trajetória que vai das necessidades e impulsos que se afirmam na origem biológica, situada nas funções elementares, até a direção específica tomada por seus pensamentos, sua linguagem, seu comportamento e a sua atividade, potencialmente situado no contexto das funções superiores. Portanto, nas palavras de Vygotsky (2008, p. 63)

o problema do pensamento e da linguagem estende-se para além dos limites da ciência natural e torna-se o problema central da psicologia humana histórica, isto é, da psicologia social que assume, de modo particular, a compreensão da natureza histórico-social do ser humano, sem esquecer, um só instante, de suas conexões com o desenvolvimento orgânico em geral36.

Neste sentido, sabemos que a complexidade da nossa sociedade é histórica e que se iniciou com o homem transformando a natureza e se transformando numa relação que possibilitou a configuração de um desenvolvimento intelectual capaz de realizar generalizações, abstrações e figuração, planejando, prevendo, lembrando, simbolizando, idealizando... (LANE, 2006, p. 27), e que isto somente foi possível a partir do próprio desenvolvimento do pensamento e da linguagem como processos psicológicos tipicamente humanos produzidos socialmente.

Nas palavras de Lane, é como se imaginássemos a figura de um bebê e sobre ele lançássemos o olhar sociohistorico que nos possibilita compreender o caminho sobre o qual a ciência alcançou uma definição mais segura do modo como estas mesmas condições históricas e sociais se estabelecem. “Ele nasceu em uma

36 Uma das críticas realizadas por Vygotsky em seus estudos afirma a necessidade de situar

historicamente o indivíduo, superando uma prática corrente, particularmente no campo da psicologia, que buscava conhecer o desenvolvimento humano isolando ou fragmentando o sujeito, como se este existisse em si e por si.

sociedade que separa o fazer do falar, logo ele tem que ser capaz de usar o seu

pensar de modo a ser capaz de fazer o que os adultos fazem, e, para tanto, ele tem que falar”, o que não nos caracteriza como apenas pensadores-falantes, mas, antes

de mais nada, como também fazedores de coisas, de instrumentos que produzem fogo, comida, guerra, beleza e... a nós mesmos – fazedores de coisas, num ciclo continuo de relações.

De fato, é impossível separarmos agir-pensar-falar, e sempre que isto é feito, seja teoricamente, seja em termos de valores, ocorre uma alienação da realidade; agir sem pensar é ser um autômato; falar sem pensar é ser como um papagaio; falar sem agir... “de boas intenções o inferno está cheio.” 37

Possibilitando-nos concluir que não nos basta apenas agir em resposta ao que é posto, uma vez que a própria natureza da palavra, aqui compreendida de modo amplo e não somente na dimensão da verbalização38, está na condição de seu próprio significado. O poder que esta exerce muitas vezes é dominado por aqueles que detêm este poder para si e o manipulam no conjunto das relações sociais. Isto implica na busca do modo como descrevemos, explicamos e acreditamos na nossa realidade e o fazemos de acordo com nosso grupo social, situado a partir da própria constituição do fenômeno das representações sociais.

Quando o nosso pensamento não confronta as nossas ações e experiências com o nosso falar, quando apenas reproduzimos as representações sócias que nos foram transmitidas [...] estaremos apenas reproduzindo as relações sociais necessárias para a manutenção das relações de produção da vida material em nossa sociedade. Porém, apenas quando confrontamos as nossas representações sociais com as nossas experiências e ações, e com os outros do nosso grupo social, é que seremos capazes de perceber o que é ideológico em nossas representações e ações e consequentes.39

No que compete à linguagem, ela detém uma origem social e surge para transmitir ao outro o resultado, os detalhes de uma atividade ou da relação entre uma ação e uma consequência. Como produto histórico de uma coletividade, ela reproduz por meio dos significados das palavras os conhecimentos e os valores

37 Ibid., p. 28-29.

38 De acordo os estudos desenvolvidos por Lane (2006) não podemos nos esquecer que a linguagem

não é um único código de comunicação, muitas vezes associado e restringido à ação de falar, abarcando além do falar, o escrever, os sinais, gestos, rituais, etc.

associados a práticas sociais que se cristalizaram, uma visão de mundo produto das relações que se desenvolveram a partir do trabalho produtivo para a sobrevivência do grupo social. A função primária da linguagem é a comunicação e o intercâmbio social, através do qual o indivíduo representa o mundo que o cerca e, por conseguinte, este influenciará seus pensamentos e suas ações em seu processo de desenvolvimento e de hominização (LANE, et al., 2004, p. 33).

O pensamento se situa na própria compreensão que o sujeito realiza ao significar a palavra produzida pela coletividade, desenvolvendo tanto a consciência

social quanto a consciência de si40, ambas subordinadas às condições sociohistóricas nas quais o indivíduo se encontra inserido. “Desta forma, os significados produzidos historicamente pelo grupo social adquirem, no âmbito do indivíduo, um “sentido pessoal”, ou seja, a palavra se relaciona com a realidade, com apropria vida e com os motivos de cada indivíduo. “41 O homem age produzindo e transformando o seu ambiente e, para tanto, “ele pensa, planeja sua ação e depois de executada, ela é pensada, avaliada, determinando ações subsequentes, e este pensar se dá através dos significados transmitidos pela linguagem aprendida” 42