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CAPÍTULO I – A pesquisa e seu contexto

1.4 Implicações metodológicas

1.4.1 Pesquisa com crianças: possibilidades e limitações

O desenvolvimento recente da sociologia da infância enquanto campo científico tem obtido destaque em âmbito internacional ao propor o importante desafio teório-metodológico de considerar as crianças atores sociais plenos, superando a cristalizada mentalidade adultocêntrica e limitada de concebê-las como seres passivos. Segundo Sarmento (2005, p. 362), sua constituição e legitimação encontram-se em curso em todo o mundo há pouco mais de uma década e acompanha os progressos verificados no plano internacional20 que se concretiza na definição de um conjunto de objetos sociológicos específicos, no caso a infância e a criança como ator social pleno, um conjunto de fundamentos teóricos de referência e um conjunto de investigadores implicados no desenvolvimento empírico e teórico deste conhecimento.

Em vista de valorizar os processos de apropriação, reinvenção e reprodução sociais realizados pelas crianças, trata-se de uma visão que busca valorizar, por um lado, o espaço da infância na composição do discurso sociológico e, de outro, proporcionar uma melhor análise das condições e da própria complexidade da infância enquanto fenômeno histórico-social. Tal noção, por sua vez, considera a relevância do processo de socialização realizado pelas crianças, aqui compreendido a partir da própria forma como elas negociam, compartilham e criam culturas com os

20 Haja vista a apresentação de dados que remetem à realidade americana e européia e que

atualmente conta com alguns interlocutores brasileiros que apresentam algumas publicações na década de 1990 acerca da emergência de uma sociologia da infância no Brasil, constatadas por Quinteiro (2000, 2002).

adultos e com os seus pares, dinamizando um universo peculiar, repleto de significados, de adaptações e de internalizações próprias deste processo.

Segundo estudos realizados por Delgado e Müller (2005, p. 353), atualmente a sociologia da infância conta com alguns interlocutores, mas ainda existe um longo caminho a ser percorrido no que concerne à própria consolidação de um campo abrangente e emergente, no qual se faz necessário pensar em metodologias que realmente tenham como foco a atenção às vozes, aos olhares, às experiências e aos pontos de vista da criança em contextos específicos, com experiências específicas e em situações da vida real.

A sociologia da infância propõe-se a constituir a infância como objeto de estudo, envolvendo as crianças como protagonistas deste processo, de modo a se consolidar em estudos com e não sobre as crianças, superando a lógica adultocêntrica e lançando-se ao grande desafio da descoberta intelectual, física e emocional das crianças em sua própria lógica, uma vez que elas “são agentes ativos, que constroem suas próprias culturas e contribuem para a produção do mundo adulto” (CORSARO, 1997, p. 5).

Resgatando-a das perspectivas biologistas e psicologizantes, a criança é compreendida na qualidade de sujeito social que participa de sua própria socialização, mas também da reprodução e da transformação da sociedade, o que indica que nos mais variados contextos históricos, sociais e culturais existem singularidades a serem consideradas nos processos de investigação. No que diz respeito a tais perspectivas, a crítica encontra-se, de acordo com Sarmiento (2005, p. 368) na própria afirmativa de ser a primeira responsável por reduzir a criança um estado intermediário de maturação e desenvolvimento humano e a segunda por tender a interpretá-la como indivíduo que se desenvolve independentemente da construção social das suas condições de existência e das representações e imagens historicamente construídas sobre e para ele.

Por um lado, a criança, ao longo da infância, percorre diversos subgrupos etários e varia a sua capacidade de locomoção, de expressão, de autonomia de movimento e de ação, mas, por outro, as crianças são também seres sociais e, como tais, distribuem-se pelos diversos modos de estratificação social: a classe social a

etnia a que pertencem, a raça, o gênero, a região do globo onde vivem, configurada numa realidade na qual diferentes espaços estruturais diferenciam profundamente as crianças e na qual a sociologia da infância deposita especial atenção ao recusar uma concepção uniformizada da infância. Ainda de acordo com Sarmiento, as crianças possuem modos diferentes de interpretação do mundo e de simbolização do real, que são constitutivos das “culturas da infância”, as quais se caracterizam pela articulação complexa de modos e formas de racionalidade e de ação. Neste sentido, a sociologia da infância costuma fazer, contra a aglutinação do senso comum, uma distinção semântica e conceitual entre infância, para significar a categoria social do tipo geracional e criança, referente ao sujeito concreto que integra essa categoria geracional e que, na sua existência, para além da pertença a um grupo etário próprio, é sempre um ator social que pertence a uma classe social, a um gênero, etc.21

Definida a importância do esclarecimento de tais conceitos, torna-se relevante a consequente compreensão das reais condições em que vivem as crianças, pois além das diferenças e desigualdades pelas quais elas atravessam na infância. Uma delas diz respeito à própria obrigatoriedade da frequência escolar nas mais diversas culturas, configurando à escola o papel de lócus privilegiado no acesso aos bens culturais na própria transmissão e reprodução de conhecimentos, valores e atitudes.

As crianças, todas as crianças, são socialmente compungidas à freqüência escolar em praticamente todos os países do mundo (com efeito são residuais os países que não proclamam a obrigatoriedade escolar) e a escola, pelo menos a escola elementar, configura-se como uma instituição que se disseminou no espaço mundial segundo formas muito similarmente estruturadas, orientada para este grupo. (SARMIENTO, 2005, p. 371).

Sendo esta uma realidade, o que se preconiza, portanto, é destacar na dinâmica deste estudo as contribuições deste campo científico à investigação do modo como a crianças envolvida pela institucionalização deste universo “a escola” captam as suas relações e representam-na socialmente, garantindo o desvendar de perspectivas sobre as quais somente a própria criança tem condições de manifestar. Como bem afirma Delgado e Muller (2005, p. 353), provavelmente as crianças sabem bem mais sobre as instituições, embora ainda compreendamos pouco suas ideias, o que elas pensam sobre as escolas criadas pensando nelas e nas suas

necessidades. Situadas segundo características sociais e culturais, as relações da criança com a escola demandam espacial atenção ao tempo e momento no qual elas estão vivendo, traduzindo de suas experiências seus pontos de vista para que se possa compreender os diferentes fenômenos sociais que lhes dizem respeito. Por sua vez, as ciências sociais são tem uma longa tradição nesse campo e estudos desenvolvidos a partir de tais perspectivas revelam riquíssimas contribuições a respeito de elementos indispensáveis à própria identidade deste campo em constituição na sociologia.

1.4.2 Entrevista com crianças: considerações relativas aos