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1.2 A relevância da teoria de Bakhtin para os estudos sociointeracionistas

1.2.1 A linguagem como prática social

Em sua oposição ao subjetivismo idealista e ao objetivismo abstrato - as duas orientações do pensamento filosófico-lingüístico sobre língua e linguagem preconizadas dos anos 20 a 50 - Bakhtin postula que a língua é essencialmente social, cuja existência se concretiza nas necessidades de comunicação. Nisto, porém, o teórico russo não está sozinho, pois Saussure também já entendia a língua daquela forma, embora este rejeitasse as manifestações individuais da língua, a fala, como objeto de estudo. Portanto, são duas visões diferentes do que é fato social.

As tão discutidas dicotomias saussurianas, apesar de sua reconhecida importância para situar a lingüística entre as ciências humanas, para estabelecer seu objeto, limitaram, por outro lado - ou por má interpretação do pensamento do mestre genebrino, ou por necessidade do momento histórico em que se transformavam os estudos da linguagem, ou por razões ideológicas - o campo de possível interesse do lingüista, preocupado em ser objetivo em suas abordagens.

Língua e fala, lingüístico e extralingüístico fizeram da lingüística a ciência da língua: “social, essencial, tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos

pertencentes à mesma comunidade” (Saussure, 1969); relegando ao extralingüístico a fala,

que segundo Saussure, é “acessória e mais ou menos acidental, ato individual de vontade e

inteligência” - e suas relações com a “etnologia”, com a “história política”, com “instituições de toda espécie, a Igreja, a escola, etc.”.

Ao contrário dos postulados preconizados por Saussure, Bakhtin valoriza justamente a fala, a enunciação, e afirma sua natureza social, não individual. Entendida assim, a fala encontra-se então ligada à situação social imediata e ao meio social mais amplo, que por sua vez estão ligadas às estruturas sociais.

Para Bakhtin, o enunciado (e não a oração) compreendido como uma réplica do diálogo social, é a unidade de base da língua. Por ser de natureza social, é também ideológico; não pode existir fora de um contexto sociohistórico, pois cada indivíduo tem um “horizonte social”. Por isso, Bakhtin/Volochinov centralizam, assim:

a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica e isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua ( p. 123).

Ou ainda: “A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta,

não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes”( p. 124).

Constata-se nas citações anteriores que Bakhtin nega veemente qualquer ação individualizada como essência da língua, e que elege como conceito fundamental em seu arcabouço teórico o dialogismo, como princípio fundador da linguagem. Por isso, convém ampliar a discussão em torno desse princípio pela sua importância para a formulação da teoria sociointeracionista.

Bakhtin postulava que o monologismo comanda os estudos da linguagem. A esse fato o autor opõe o dialogismo, característica essencial da linguagem e princípio constitutivo desta; sendo o princípio dialógico a condição do sentido do discurso. Ou seja, os sentidos só podem ser construídos a partir de uma relação dialógica fomentada no discurso.

É nesse quadro, portanto, que se delineiam as concepções sociointeracionistas de linguagem que mais de perto nos interessam. Por isso, separamos as duas noções de dialogismo que permeiam os escritos de Bakhtin em que se destaca a importância de cada uma delas nos estudos sobre a linguagem, com base no que propõe Barros (1998), com a seguinte sistematização:

1. O diálogo entre interlocutores

Ao tratar do diálogo entre interlocutores em diferentes estudos, Bakhtin se antecede ao campo das pesquisas que focalizam a interação verbal entre sujeitos e a intersubjetividade. Serão mencionados quatro aspectos da concepção de diálogo entre interlocutores.

1.1. A interação entre interlocutores é o princípio fundador da linguagem.

É nesse aspecto que Bakhtin supera os lingüistas saussurianos, por considerar a linguagem fundamental não só para a comunicação, mas principalmente para a interação entre os interlocutores, e é isto que constitui como elemento fundador da linguagem, pois se volta para o ponto fundamental em Bakhtin - o dialogismo..

1.2. A relação entre sujeitos é a geradora do(s) sentido(s) do texto e da significação das palavras.

Para Bakhtin, os sentidos se constróem na produção e interpretação dos textos, que se constituem num encadeamento enunciativo. Daí ser o texto precisamente o lugar das

correlações: construído materialmente com palavras portadoras de significados, organiza essas palavras em unidades maiores para construir informações cujo sentido somente é construído na unidade global do texto.

1.3. A intersubjetividade dá origem à subjetividade.

A relação entre os interlocutores além de fundar a linguagem e dar sentido aos textos, é responsável também pela construção dos próprios sujeitos que produzem os textos. Nesse sentido, o sujeito é levado a observar, perceber e descobrir o mundo, refletir sobre ele e interagir com seu semelhante através do uso funcional de linguagens.

1.4. A sociabilidade se concretiza em dois tipos de relação: a relação entre sujeitos e a relação dos sujeitos com a sociedade. Tais relações nada têm a ver com um conceito de sujeito individualista ou subjetivista, o que seria incoerente com relação à idéia bakhtiniana de dialogismo.

Apontados esses quatro aspectos do dialogismo interacional, podem ser vistas as contribuições de Bakhtin aos estudos sociointeracionistas da linguagem como uma antecipação de algumas das conclusões a que chegaram certos estudiosos sobre a comunicação verbal entre seres humanos, diferenciando-se, em muito, das propostas da teoria da informação4.

Ainda segundo Barros, contrário à visão unilateral dessa teoria, Bakhtin aponta para a variação lingüística, funcional, discursiva como facetas da pluridiscursividade que, para ele, caracterizam os discursos. Em seus estudos ocupa-se da multiplicidade de vozes, das línguas e dos tipos discursivos. Enfim, considera a linguagem pluridimensional, heterogênea, por ser esta resultado de uma produção social e por estarem refletidas nelas diferenças e desigualdades sociais. Daí a existência de variações que, com maior ou menor prestígio social, transitam em diversos gêneros do discurso. Ao insistir na questão da dinâmica da interação verbal, aponta Barros que Bakhtin introduz o aspecto da avaliação na relação entre os interlocutores, pois no seu entender, estes se avaliam e expressam esses valores por diversos meios de conteúdo ou de expressão. Dentre esses meios, o autor elege a entoação como expressão fônica da avaliação social, que também está assentada no que o

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Os estudos da comunicação verbal não partiram da lingüística ou das teorias do discurso, mas tradicionalmente seguiram a Teoria da Informação, que, nos anos 50, exerceu forte influência na lingüística. Ao se pensar na comunicação entre seres humanos e mais especificamente na comunicação verbal, alguns problemas são encontrados nos esquemas herdados da Teoria da Informação. Dentre esses, são citados por Barros (1998), três principais: simplificação excessiva da comunicação lingüística; preferência apenas pelo plano da expressão; caráter extremamente mecanicista

teórico denomina de “horizonte ideológico”, conforme o que ele expõe em Marxismo e

Filosofia da Linguagem (1997: 132):

Toda palavra usada na fala real possui não apenas tema e significação no sentido objetivo, de conteúdo, desses termos, mas também um acento de valor ou apreciativo, isto é, quando um conteúdo objetivo é expresso (dito ou escrito) pela fala viva, ele é sempre acompanhado por um acento apreciativo determinado [...]. O nível mais óbvio, que é ao mesmo tempo o mais superficial da apreciação social contida na palavra, é transmitido através da entoação expressiva.(grifos nossos).

Ainda que pouco estudado o fenômeno da entoação expressiva na teoria bakhtiniana, ele também aponta a necessidade que o autor vê de que os estudos sobre a linguagem sejam feitos a partir de uma perspectiva sociológica; depreende-se, então, desse aspecto, a segunda concepção de Bakhtin do diálogo, a de diálogo entre discursos, sobre o que nos debruçaremos a seguir.

2. O diálogo entre discursos

Como analisa Barros, em Bakhtin, o discurso é constituído por no mínimo dois interlocutores, que são sujeitos historicamente situados; não pode ser individual porque sua construção é feita como um diálogo entre discursos ao manter ponto de contato com outros discursos.

Nessa concepção, entende-se que as relações do discurso com a enunciação, com o contexto sócio-histórico ou com o outro são, para Bakhtin, relações entre discursos- enunciados, e ainda, que o dialogismo define o texto como um tecido de muitas vozes, ou de muitos textos ou discursos que se completam ou se contrapõem entre si no próprio texto. Nisso, define-se o caráter ideológico dos discursos e recupera-se, no texto, seu estatuto pleno de objeto lingüístico - discursivo, social e histórico.

2.1. O dialogismo constitutivo da linguagem

Barros também mostra que reconhecido o dialogismo do discurso e sua essência ideológica , Bakhtin nem sequer cogita a possibilidade da existência de um caráter monológico e neutro da língua. Para ele a linguagem é, por constituição, dialógica e a língua não é ideologicamente neutra e sim complexa, pois a partir do uso e dos traços dos discursos que nela se imprimem , instauram-se contradições. Ou seja, para Bakhtin, no signo confrontam-se índices de valores contraditórios. Caracterizada desse modo, a linguagem é então dialógica e complexa, pois nela se presentificam historicamente e pelo uso as relações dialógicas dos discursos

2.2. Dialogismo e polifonia

Embora não seja objetivo deste trabalho tecer reflexões mais aprofundadas sobre o conceito de polifonia, convém realizar com brevidade o exame da relação existente entre dialogismo e polifonia, termos muitas vezes utilizados como sinônimos nos escritos pós- bakhtinianos.

Barros (1998), distingue claramente dialogismo e polifonia, destinando o termo

dialogismo para o princípio dialógico constitutivo da linguagem e de todo o discurso e

reservando polifonia para caracterizar, determinados textos em que o dialogismo se deixa ver e em que se percebem muitas vozes; texto-lugar onde os discursos são desvelados, revelados, que deixam perceber como se dá a voz do outro nesse discurso. Assim, os textos polifônicos se opõem aos textos monofônicos que ocultam os diálogos que os constituem.

Ainda que se olhe por esse prisma para os fenômenos da linguagem - que existem textos polifônicos e monofônicos, conforme a variação das estratégias discursivas - mesmo assim o diálogo é condição essencial da linguagem e do discurso.

Entende-se, portanto, que nos textos polifônicos, os diálogos entre discursos revelam-se; nos textos monofônicos eles se escondem sob a aparência de um discurso único. Portanto, monofonia e polifonia são efeitos de sentido que decorrem de estratégias discursivas, de discursos, que são eminentemente dialógicos.

Para Bakhtin a linguagem só existe se houver sujeitos falantes interagindo. Em síntese: o indivíduo pensa e se exprime para um auditório social bem definido. Portanto, para se observar o fenômeno da linguagem, é preciso situá-la em seu contexto social. É a partir dessa perspectiva que entendemos a faculdade da linguagem como uma produção so- ciohistórica.