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Literatura infanto-juvenil contemporânea a transmissão de uma nova dimensão

Capítulo I: Teoria literária e literatura infanto-juvenil

4- Literatura infanto-juvenil contemporânea a transmissão de uma nova dimensão

«Novas doutrinas pedagógicas acreditam na criança, não esperam mais dela submissão, mas, sim, criatividade e capacidade de construção dos seus próprios saberes.» (Defourny, 1999:21)

Os textos literários, na sua relação de diálogo com o leitor, permitem partilhar, como nos diz Fernando Azevedo (2006: 40), «(…) determinados valores de natureza social, histórica e ideológica, os quais, em conjunto com a expressão, fazem deles complexos artefactos verbais.»

São estes artefactos, produtos de um universo cultural, que, em função do seu contexto de recepção, possibilitam a convalidação ou a contestação de determinados valores.

Na verdade, parece haver valores enfaticamente valorizados, o do bem sobre o mal, o do amor sobre o ódio e o da justiça sobre a injustiça (Azevedo, 2006: 41). Nos textos é frequentemente perceptível, para um leitor de palato esteticamente fino (Eco, 2003: 230), esta linha invisível que possibilita encarar o objecto estético em termos de uma certa dicotomização entre bem e mal, valores eufóricos e valores disfóricos.

De facto, as sociedades modernas ocidentais, em virtude da complexidade que as envolve50, assumem como imperativa a necessidade de partilhar, nos livros de potencial

entidade receptora infanto-juvenil, novos valores, problemas e inquietações de uma sociedade aberta à pluralidade51, ao progresso científico e tecnológico, uma sociedade que, no nosso entender, se parece pautar por preocupações mais economicistas, mais consumistas e aparentemente menos imbuídas de cargas afectivas, culturais, éticas ou morais.

Segundo Teresa Colomer (1999: 107-108), começa a advogar-se que a educação da criança deveria passar pela aprendizagem da complexidade da vida, devendo, assim, ser confrontada com todos os problemas que até então tinham sido silenciados para que a sua inocência não fosse maculada.52

Este novo entendimento da infância, promotor do florescimento da literatura infanto- juvenil, está associado a notórias alterações a nível social e cultural de que nos falam Teresa Colomer (1999: 82-84) e Zohar Shavit (2003: 21-56).

50 Bravo-Villasante (1989:73) refere que «(…) vivimos en una época agitada, turbulenta, donde los valores que

parecían fijos se han alterado, donde los esquemas sociales imperturbables se empiezan a perturbar, y el individuo necesita enfrentar con sinceridad las nuevas perspectivas.»

51 Esta visão multifacetada e eclética que nos é apresentada pela nova literatura infanto-juvenil passa, também, no

nosso entender, por uma cultura pós-moderna que promove a pluralidade de vozes. O pós-modernismo põe em causa a concepção do homem enquanto ser coerente e contínuo (Hutcheon, 1991: 226).

52 A este propósito Defourny (1999: 22) afirma que a criança e o adolescente deixaram de estar alheios às coisas

sérias, deixaram de, como no passado, estar enclausurados no universo fechado da creche ou do internato que os mantinha fora da realidade e os condenava ao silêncio.

27 A literatura de recepção infantil não poderia desenvolver-se se as crianças não fossem entendidas como seres com necessidades diferentes das dos adultos.

Até ao século XVIII não havia distinções entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças. No entanto, «(…) esta unidade (…) começou a passar por uma polarização num novo conceito de infância.» (Shavit, 2003: 24). Interiorizou-se, efectivamente, a ideia de que o universo infantil tinha características muito específicas.

As crianças encaradas até então, (século XVIII), como fonte de prazer e de divertimento para os adultos passaram a constituir uma preocupação para moralistas e pedagogos que consideravam que « [elas] (…) deviam ser afastadas da companhia corruptora dos adultos.» (Shavit, 2003: 26).

A noção imperiosa da educação e da disciplina das crianças levou ao fomento da ideia de que aquelas deveriam ser educadas através de livros, encarados como veículos pedagógicos.

Os contos dos Irmãos Grimm (século XIX), por exemplo, mostram precisamente esta necessidade educativa, uma vez que as histórias tinham que transmitir à criança um ensinamento.53

Na conclusão da análise das versões de O Capuchinho Vermelho de Charles Perrault, dos Irmãos Grimm e de três de entre centenas de versões modernas do conto referido, Shavit (2003: 56) diz-nos que

«(…) as bibliotecas para crianças dos séculos XVIII, XIX e XX contêm os mesmos títulos, mas quando se abre os livros torna-se bastante evidente que os conteúdos variam consideravelmente. O que de facto conta é o modo como a infância é entendida pela sociedade, pois são as percepções da sociedade que em larga medida determinam o que é que realmente se encontra entre a capa e contracapa.»

A protecção excessiva e controlada do século XVIII, de que falávamos, foi sofrendo, como vimos, modificações graduais, de tal forma que, actualmente, a criança/adolescente é incitada a contactar, através dos livros, com a realidade envolvente nas suas múltiplas facetas eufóricas e/ou disfóricas.

Na literatura juvenil contemporânea é notório um novo entendimento de um potencial receptor de literatura infanto-juvenil que se vê confrontado com todo o tipo de problemas e inquietações no seu âmago, mesmo que este seja muito cruel.

53 A este respeito, Zohar Shavit (2003: 49) afirma que «a ideia de que as crianças deviam receber instruções dos

adultos no que diz respeito ao comportamento, uma noção desconhecida no tempo de Perrault, era prática corrente no tempo dos Irmãos Grimm (…)».

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Síntese do capítulo:

Neste primeiro capítulo, tentámos demonstrar que a obra literária requer um leitor- modelo, um leitor crítico que desenvolva um comportamento hermenêutico particular no decurso da sua deambulação pelos labirintos ficcionais. A sua atitude deverá passar pela aceitação de um pacto ficcional, pela percepção do carácter plurissignificativo e polissémico do objecto artístico e pelo respeito pela ontologia textual. Demonstrámos que o acto de leitura consciente deste sujeito leitor ideal mobilizará a sua memória cultural, espécie de baú onde se encontra um vasto património literário e cultural, e levá-lo-á a detectar marcas de intertextualidade, ecos de tradições e de consciências passadas.

Assim, a literatura, mais particularmente a literatura infanto-juvenil, constituirá uma mais-valia para a instância receptora, cujo entendimento sofreu notórias alterações do ponto de vista diacrónico de tal forma que, no momento presente, a literatura de potencial recepção infanto-juvenil apresenta uma realidade muito próxima do quotidiano situacional do leitor, retratando episódios, personagens e vivências que este poderá identificar e reconhecer, tendo sempre em mente que a osmose entre o mundo possível que o texto nos propõe e a realidade empírica e histórico-factual é mediata.

No próximo capítulo, apresentaremos o corpus do nosso estudo, bem como a metodologia utilizada ao longo desta dissertação.

Capítulo II

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