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Capítulo VI: Apontamentos para leituras simbólicas e antropológicas

1- Símbolo…a ponte entre o Homem e o Cosmos

«La pensée symbolique (…) est consubstantielle à l’être humain (...).» (Eliade, 1952 : 13)

Ao longo deste capítulo é nosso intuito delinear/sugerir alguns percursos de leituras à luz de uma análise desconstrutiva e imaginária. Partindo da constatação de que o texto, enquanto objecto estético, partilha uma dimensão plurissignificativa e pluri-isotópica, tentaremos demonstrar que a entidade leitora, assumindo a sua faceta crítica e cooperante, interagirá com o texto de forma a actualizar os seus múltiplos códigos, denunciando uma atitude de aceitação de protocolos de leitura com um universo imagético-simbólico.

Uma leitura à luz do imaginário incitará a entidade leitora a desvendar universos paralelos, plurais; a aceder a um mundo que não é dito, mas sugerido; a mergulhar nas profundezas dos lexemas e a descobrir sentidos outros que o próprio texto convoca, fazendo aparecer um mundo até então desconhecido.

É a imaginação que nos leva a um entendimento da linguagem em liberdade, pois, quando esta faculdade ocorre, uma imagem ocasional despoleta uma explosão de outras imagens189, levando o sujeito a evadir-se numa esfera de múltiplas (re)criações, mas não num

mundo de fantasias ou de delírios. Pela imaginação, as imagens190 percebidas pelos sentidos

sofrem um processo de deformação (Bachelard, 1990:7), induzindo o sujeito (entidade leitora) a pensar para além do universo consciente, a escapar a uma percepção ordinária do mundo empírico e histórico-factual, visto que, tal como afirma Bruno Duborgel (1992: 309), através da imaginação, o mundo amplifica-se, assumindo, deste modo, um poder demiúrgico (Duborgel: 1992: 295).

Na verdade, as imagens vão adquirir força graças à sua natureza simbólica e é o imaginário que nos remete para esta esfera promotora de significação (Wunenburger & Araújo, 2003: 23).

O imaginário reportar-se-á a uma faculdade hermenêutica de interpretação de símbolos que obrigará a uma postura interventiva e crítica por parte do leitor, incentivando-o a olhar o mundo de uma forma mais enriquecedora. É pelo imaginário que a polissemia do texto se expande e que as suas leituras simbólicas são desveladas191. O imaginário obriga o leitor a

189 Cf. Bachelard (1990:7).

190 Hélder Godinho (2003: 144) realça que as imagens vão adquirir coerência através do jogo do universo imaginário.

Devido a este jogo, as imagens abrem-se para um excesso de sentido e a obra abre-se ao lugar-outro «(…) que a torna lugar de «aparecimento» da dimensão estética e, no caso da obra literária, a torna literária.»

191 Cf. Jean-Jacques Wunenburger e Alberto Filipe Araújo quando abordam a filosofia da linguagem e das obras

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descobrir de uma forma implícita a emergência de valores antropológicos que estão presentes na memória e que fazem parte da própria essência humana, uma vez que, como evidencia Gilbert Durand (1995: 55), o homo sapiens é um animal symbolicum.

Os símbolos expressam, com efeito, a forma como o Homem se relaciona com o Cosmos, denunciando-se como partes integrantes da totalidade cósmica que ele tenta interpretar. O mundo fala ao Homem, mas para que este compreenda a sua linguagem e elimine a opacidade que ele comporta deverá decifrar os seus símbolos (Eliade, 1963: 174).

Efectivamente, através de processos de simbolização, o Homem, e no âmbito da descodificação de textos literários, a entidade leitora vai expandir as potencialidades significativas do objecto estético192. É pela sua natureza ambígua, heterogénea, inesgotável193,

dinâmica e afectiva194 que o símbolo remete para sentidos ausentes195 e se apresenta como

gerador de ambivalências e polissemias, permitindo a liberdade criadora de sentidos, um prolongamento do sentido primitivo, fazendo aparecer um sentido secreto (Durand, 1995: 12)196.

Esta dinâmica misteriosa e enigmática do símbolo é apontada por Claude-Gilbert Dubois (2005: 332) quando alega que «il y a dans tout symbole une part d’énigme ou, en tout cas, de polysémie, et la nécessité de briser en quelque part le parcours de surface pour entrer dans les profondeurs du sens.» É precisamente ao nível desta estrutura profunda que o símbolo se ramifica e nos permite aceder a uma hermenêutica sensorial, sinestésica e cinestésica, espacial, cromática que nos desvenda leituras múltiplas, num universo aberto de constantes permutas e reabilitações de sentido.

É à luz do imaginário e de um universo simbólico que nós iremos entender a deslocação dos protagonistas das obras em estudo como uma demanda, como um rito iniciático de maturação pessoal em direcção a um centro, a um Cosmos regenerador e unificador do eu; é o entendimento do símbolo enquanto acumulador isotópico de múltiplos sentidos (Barbosa, 1995: 67) que nos permitirá entender a casa, em Uma casa muito doce (Saldanha, 2003b), como berço protector; ler o comboio, enquanto mediador de revelações ou ainda, em Nem pato, nem cisne (Saldanha, 2003a), é o símbolo que nos possibilitará afirmar que Eugénio, para anular a sua aparente alteridade, receberá a acção purificadora e regeneradora da água e que a sua viagem de

192 Cf. Jean-Jacques Wunenburger (2005: 196, 202). 193 Cf. Tzvetan Todorov (1980: 17).

194 Cf. Chevalier & Gheerbrant (1994: 15-24).

195 O imaginário promove, na nossa opinião, o jogo do fazer de conta de que as crianças gostam tanto. Nós fazemos

como se, lemos X como sendo Y ou Z, originando não um, mas uma diversidade de imaginários.

196 Luís Garagalza (2003: 91) realça, também, que o sentido não é dado directamente, mas acontece e realiza-se, de

117 avião se assemelhará ao voo, inserindo-se, deste modo, num símbolo de ascensão de que nos fala Gilbert Durand (1984).

O desenterrar destes outros sentidos e destas outras visões só nos parece possível recorrendo ao imaginário, pois este permite-nos reabilitar de forma criadora a imaginação e os símbolos. O entendimento que nós fazemos destes universos enquanto simbólicos só é possível a partir do momento que, por um trabalho de interpretação, neles descobrimos um sentido indirecto (Todorov, 1980: 19).

Apraz-nos referir, neste momento, que os quatros elementos (Água, Ar, Terra e Fogo), que Bachelard (1990: 17) entendia como as hormonas da imaginação, serão por nós entendidos como essenciais no itinerário psicológico percorrido pelas personagens, sendo à luz destes elementos que sugeriremos uma visão antropológica dos símbolos.

Desta feita, através destes processos de simbolização, nós poderemos aceder por um lado a mundos paralelos e, por outro, poderemos compreender melhor o nosso mundo197.

O imaginário postula, de facto, uma «(…) abrangência integradora de um olhar poliédrico e multiperspéctico, melhor ainda, de uma entrelaçada e diversificada rede de ‘’modos de olhar e de ver’’(…)» (Araújo & Baptista, 2003: 14) e, na nossa opinião, esta organização de múltiplas faces, todas elas portadoras de significados e de afectividades simbólicas e rememorativas, enriquecem produtivamente as nossas formas de ler o mundo e de interagir com o outro.

Os apontamentos de leituras possíveis simbólicas e antropológicas que delinearemos ao longo deste capítulo possibiltam, na nossa perspectiva, afirmar a multivalência significativa dos textos e a sua capacidade de nos fazer ver outras ‘realidades’ de um outro modo, contribuindo para a consubstanciação de novas experiências semióticas e para uma perspectivação do imaginário enquanto dinamismo criador.

Face ao exposto, julgamos importante referir que, na nossa opinião, estes e outros textos estimulam, alimentam e desenvolvem a criatividade e a imaginação da entidade leitora, permitindo o acesso a uma esfera do imaginário e a um universo simbólico que o consubstancia.

197 Esta parece ser também a perspectiva de Lucian Boia (1998 : 207) quando afirma que o imaginário marca as

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