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A Literatura Light como a Variante Portuguesa da Chick Lit

«A Literatura Light não é literatura. É uma escrita descartável, como uma revista que lemos no cabeleireiro ou numa viagem de comboio e depois deixamos no banco e vamos embora. Qualquer um escreve, mas daí a ser escritor há um passo grande. Há um certo dom, que as pessoas têm de ter, uma capacidade de ver e de olhar o mundo. A literatura vai para além da superfície das coisas.» Teolinda Gersão (2003) «“Mulheres que chegam à tua idade e ficam cheias de coisas para contar, e isso pode ser interessante. Chique. Chic-lit.”» Mónica Marques (2008: 20) A literatura light é entendida em Portugal, primeiramente, como literatura não legitimada. Assim, literatura light pertence à longa lista de designações, analisadas no primeiro capítulo, para referir um tipo de escrita não canónica. É deste modo que Ana Margarida Ramos a identifica na sua obra acerca do tema da monstruosidade na literatura de cordel87. Sobre ela

diz que, tal como outras, embora mais recente, designa um tipo de “literatura inferior”, e acrescenta que, na expressão literatura light, há a «apropriação de uma designação utilizada abundantemente no âmbito da alimentação, numa alusão à “leveza” e “facilidade” do livro pela referência implícita ao baixo número de calorias que determinado produto contém.» (Ramos, 2008: 69). Ou seja, enquanto sinónimo de literatura não legitimada, esta designação põe em destaque a facilidade e a leveza, isto é, a falta de densidade da escrita, o que aponta, como vimos, para características da paraliteratura como a univocidade. Também Vargas Llosa, em A Civilização do Espectáculo, vê a literatura light88, que associa, aliás, aos

87 A designação literatura de cordel, em sentido lato, é também uma forma de designar literatura não

canónica, isto é, literatura sem valor estético destinada, essencialmente, a iletrados. No entanto, desde logo, a designação em si tem apenas a ver com o modo de publicação, e não com a qualidade dos textos: «A literatura de cordel (…) é definida, principalmente, por elementos externos ao texto, ligados à forma de exibição/exposição das publicações para venda.» (Ramos: 2008: 24)

88 A designação literatura light é utilizada frequentemente em sites de língua espanhola. É o caso de um

artigo da escritora chilena Pía Barros em que esta afirma que tal literatura vive do lugar-comum. É uma literatura do imediato, que nada aprofunda ou problematiza, mas que vende bem, relegando para segundo plano a literatura: «Em mi país, la mejor escritora es la que menos vende.» Depois, recorrendo, também, ao campo gastronómico, acrescenta: «al hacer la compra en el supermercado, permitimos que junto a la mayonesa “light” nos vendan literatura “light”» (2000).

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bestsellers, isto é, a um tipo de ficção de grande êxito comercial, como literatura não

legitimada (2012: 34). Llosa, assumindo-se como um defensor da cultura highbrow, critica todos aqueles que «aboliram as fronteiras entre cultura e incultura» (idem: 64), contribuindo, assim, para a “democratização da cultura”, descaracterizando-a. Ora, tendo a cultura deixado de ser uma referência em termos de «valores e obras de arte, de conhecimentos históricos, religiosos, filosóficos e científicos em constante evolução» (idem: 61), para se tornar num “amálgama”, a cultura, diz, foi substituída pelo entretenimento (idem: 194, 195). E é este, o entretenimento, também, aquilo que a literatura light propicia, para corresponder ao gosto do público. Substituída a cultura pelo espectáculo, no campo da ficção, é a literatura light que singra, deixando, assim, pouco espaço para a literatura canónica,

highbrow:

«Nos nossos dias escrevem-se e publicam-se muitos livros, mas ninguém à minha volta (…) já acredita que a literatura sirva de grande coisa, a não ser para uma pessoa não se aborrecer muito no autocarro ou no metro e para que, adaptadas ao cinema ou à televisão, as ficções literárias se tornem televisivas ou cinematográficas. Para sobreviver, a literatura tornou-se light – noção que é um erro traduzir por ligeira, pois, na verdade, quer dizer irresponsável e, frequentemente, idiota.» (idem: 208).

O escritor peruano, nesta passagem, associa, pois, literatura light a paraliteratura, tocando em pontos cruciais do modelo paraliterário: o entretenimento; o predomínio da narratividade com vista à transposição para outras linguagens, como a cinematográfica; o ir ao encontro do gosto do público – “para sobreviver” -, cumprindo, deste modo, o contrato de leitura; o conservadorismo ideológico da narrativa paraliterária – “irresponsável” -, que denuncia, mas não subverte a ordem estabelecida; o fraco valor estético – “idiota” -, subsumido num discurso redundante, comprometido com a realidade, ao serviço da ilusão referencial. O adjectivo light, aliás, é usado por Llosa para caracterizar não só a literatura, mas, também, o cinema, a arte (idem: 35), a imprensa (idem: 51) e a civilização (idem: 52), assumindo, deste modo, uma conotação extremamente negativa. Light conexiona-se com trivialidade, superficialidade, divertimento, vacuidade e, sobretudo, com mau gosto, mas, também, com sucesso editorial e lucro. É este aspecto, o do lucro, que é salientado por Fezas Vital, um dos responsáveis pela publicação de Sei Lá, o romance de Margarida Rebelo Pinto, que introduziu a literatura light em Portugal.

Numa entrevista à revista Os Meus Livros, que faz a divulgação, entre outras, deste tipo de literatura, Fezas Vital explica como decidiu publicar o romance de Rebelo Pinto, que lhe tinha sido trazido por Gonçalo Bulhosa, então editor da Difel. Diz ele que, ao contrário de outros livros, em que basta ler algumas páginas, a este apeteceu-lhe lê-lo até ao fim. Isto porque percebeu que, embora fosse um romance diferente dos do catálogo da editora, «comercialmente ia funcionar» (2005: 23). Afirma ainda que lamentou a saída de Rebelo Pinto para outra editora, pois, diz, salientando que os livros são “um negócio”, «Qualquer editor gostaria de ter um autor como a Margarida e o que representam as vendas dela (…).» (idem:

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22). Vital salienta, assim, o valor comercial, não o valor estético, da ficção da referida autora. O mesmo faz João Pedro George na sua tese de mestrado.

George, com base em Bourdieu, fala num “subcampo de produção restrita”, no qual se integram os escritores que defendem “a arte pela arte”, escritores esses cujas obras merecem a consagração dos seus pares, mas cujos ganhos, no campo financeiro, são escassos, e num “subcampo de grande produção”. Neste último, inserem-se os autores cuja consagração literária é diminuta, mas cuja recompensa económica é elevada, como os autores de bestsellers e os seus respectivos editores. Depois, como exemplo de autoras portuguesas que integram o “subcampo de grande produção”, diz George:

«Talvez por isso, os livros de Margarida Rebelo Pinto, Maria João Lopo de Carvalho ou de outros autores da chamada literatura ligeira nunca receberam um prémio literário, nem tão-pouco têm merecido a atenção da crítica literária.» (2002: 42. O sublinhado é meu).

O estudioso reforça, assim, a ideia de literatura light, ou “literatura ligeira”, como literatura não legitimada. Porém, ao escolher estas duas autoras, especificamente, utiliza o termo, também, num sentido mais restrito, como um tipo de literatura de mulheres que escrevem sobre relacionamentos amorosos. Ou seja, a literatura light, em sentido lato, pode ser entendida como paraliteratura, literatura não canónica, mas, em sentido restrito, esta é uma literatura que tem algumas especificidades próprias. Para utilizar a terminologia de Boyer, tal como o romance policial ou o romance de ficção científica, também o romance light tem uma dominante, um cenário e, embora não se possa falar em série ou colecção – Fondanèche, aliás, como vimos no capítulo I, desvalorizava a questão atinente à série -, tem, também, uma identidade paratextual.

Com efeito, pese embora o facto de a literatura light ser paraliteratura e não literatura, ela é, como veremos, a variante portuguesa da chick lit, na medida em que é ficção de mulheres para mulheres e, tal como a chick lit, é urbana, classista, escrita na primeira pessoa, de pendor autobiográfico, coloquial e pós-feminista. A heroína light, tal como a chick, procura o homem ideal e tem um certo horror ao celibato, mas não deixa de questionar o casamento e a família. Tem também o seu grupo de amigos, «a pandilha» (Rebelo Pinto, 1999), com o qual discute a vida, o amor, a solidão e os problemas do quotidiano. De igual modo, é uma mulher financeiramente independente, educada e com uma carreira.

Sendo Rebelo Pinto o nome de referência deste tipo de literatura em Portugal, apoiar-me-ei, sobretudo, nos seus romances. Apresentarei, porém, mais detalhadamente, uma leitura do romance Meu Único Grande Amor, Casei-me, da autoria de Manuela Gonzaga. Este romance apresenta, através da forma como se constrói, não só uma definição de literatura light, como faz, também, uma crítica à própria literatura light, através do modo como integra e parodia aspectos da escrita de Margarida Rebelo Pinto. Antes, porém, darei conta dos contributos relativos à definição deste tipo de literatura, dando especial relevo a dois ensaios de Miguel

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Real, estudioso que se tem debruçado sobre o romance português contemporâneo, sem ignorar os autores deste género paraliterário. De sublinhar que os estudos sobre literatura

light são escassos, havendo, contudo, on-line, um grande número de referências ao género e

sobretudo a Margarida Rebelo Pinto. Para além disso, são igualmente abundantes as referências feitas nas chamadas “revistas do social”, bem como na revista Os Meus Livros e, inclusivamente, na revista Ler.

Literatura Light: Do Realismo Urbano Total ao Realismo de Tipo