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Luz inexaurível, luz da única luz, fonte de luz, luz autora de luzes.204 Bispo Fortunato, Bênção dos Círios Pascais (séc. VI)

Na proposição do plano provisório da dissertação, o objetivo deste capítulo seria observar as relações entre as imagens marianas presentes nos vitrais da catedral de Chartres e sua localização no espaço sagrado e, a partir disso, levantar elementos que me permitissem estabelecer como a marcação do tempo poderia estar relacionada à luminosidade e à respectiva posição dos temas iconográficos, considerando-se as horas canônicas na tessitura do tempo litúrgico.

A primeira dificuldade para a consolidação desse objetivo foi a carência de fontes dos século XII e XIII, em relação à catedral de Chartres e o conjunto de programas iconográficos presentes em seus vitrais. Por outro lado, apesar da escassez de fontes primárias, as referências feitas por historiadores anteriormente à II Guerra Mundial205

foram fundamentais para o embasamento desta pesquisa.

Dadas as condições bastante limitadoras, minha perspectiva foi buscar, nos trabalhos de outros historiadores, as listas de documentos existentes em bibliotecas e arquivos municipais ou diocesanos que não tiveram o mesmo infortúnio que Chartres.

Nesse contexto, foi um alento recordar da leitura de Carlo Ginzburg206, pensando nas

reflexões sobre a elaboração do conhecimento histórico: observar os rastros desse passado mediante a documentação que esteve ao meu alcance, seja pelas presenças, seja pelas ausências de informações ali contidas.

Entendo que o percurso de análise será direcionado para dois caminhos em paralelo: um para os manuscritos207 datados do século XII e XIII, os quais estariam relacionados

à devoção mariana na região norte da França (observando as respectivas informações podem ou não estar relacionadas com a elaboração dos programas iconográficos dos

204 “Lumen indeficiens, unici luminis lumen, fons luminis, lumen auctor luminum” BISPO FORTUNATO. Rito Lucernário - Reino Visigodo in PINELL, Jordi M. Litúrgica 2 (Scripta et documenta 10), Barcelona: Abadia de Monserrat, 1958, p.12. (tradução nossa)

205 Em 26 de junho de 1944, durante a expansão dos Aliados, a cidade de Chartres foi bombardeada e o Arquivo Municipal foi atingido, provocando a destruição de milhares de documentos históricos, alguns foram parcialmente atingidos, porém as perdas foram significativas, considerando-se que naquele contexto ainda não havia uma política sistêmica de produzir cópias , mesmo que em microfilme, dos documentos físicos.

206 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

207 Estes manuscritos eu obtive autorização e os consultei pessoalmente nas bibliotecas de Chartres, Reims, Sens e Troyes.

vitrais, dando ênfase às litanias) e outro para o cotejo entre os temas representados nos vitrais e aqueles que aparecem no Saltério de Ingeburge, no Saltério de Saint-

Louis et Blanche de Castille e no Saltério de Copenhagen.

Os primeiros livros que começaram a circular entre os leigos, permitindo-lhes uma vivência contemplativa, foram os saltérios208 e os breviários209.

Do mesmo modo que o culto mariano foi resultado de um desdobramento gradativo, a relação entre as horas canônicas e as Horas da Virgem Maria começou a se desenvolver entre o final do século X e início do século XI210, época em que viveu

Fulbert de Chartres.

O ponto de partida é analisar primeiramente o Ms. 894, pois trata-se de uma fonte chartrense, datada do primeiro quartel do século XII, conhecido como Missale de

Chartres, escrito em latim eclesiástico, oriundo da abadia beneditina de Saint-Père de

Chartres211 e, posteriormente levado para o Colegiado de Saint-Etienne de Troyes. O

missal tem como suporte 238 fólios de pergaminho, medindo 29,5 X 20,5 cm, sendo que tanto no calendário quanto a litania trazem registrados os santo de devoção chartrenses, os quais também se encontram representados nos vitrais:

Festa Litúrgica Comemoração

Festa de Saint Hilaire 13 de janeiro

Festa de Saint Remi 15 de janeiro

Festa de Saint Lubin 14 de março

Festa de Saint Chéron 28 de maio

Festa de Saint Piat 1 de outubro

Festa de Sainte Foi 6 de outubro

Festa de S. Savinien e S. Potentien 19 de outubro

Festa de Saint Quentin 31 de outubro

Festa de Saint Martin 11 de novembro

208 A organização dos saltérios como livros de devoção remonta ao século IX, reúne um conjunto de 150 salmos e um calendário litúrgico. Os salmos eram lidos, recitados ou cantados no exercício da devoção laica, que foi substituído gradativamente pelo Livro de Horas, do século XIII em diante, todavia, preservou sua presença entre os clérigos seculares e regulares.

209 Os breviários continham o Ofício Divino acompanhado de um calendário, os salmos, os hinos, as leituras da Bíblia, a vida dos santos, orações e bênçãos.

210BROWN, Rachel Fulton. Mary and the Art of Prayer: The Hours of the Virgin in Medieval Christian Life and Thought. New York: Columbia University Press, 2017.

Missale de Chartres – c. séc. XII – Calendário litúrgico

Crédito: Elias Feitosa

Missale de Chartres – c. séc. XII – Litania dos Santos

Crédito: Elias Feitosa

Os textos litúrgicos são acompanhados de um pequeno grupo de iluminuras, sendo que no fólio 113 vº encontra-se a cena da Crucificação de Jesus, em página inteira e sem texto:

Missale de Chartres – c. séc. XII – Crucificação

Crédito: Elias Feitosa

A cena da Crucificação traz Maria e João acompanhando o Cristo, conforme as representações mais tradicionais, contudo, a cruz se sobressai à moldura da imagem e cria uma fragmentação espacial de quatro nichos: Maria e João na parte inferior e na parte superior, as personificações do Sol e da Lua (representados com sentimento de tristeza em virtude do sofrimento de Cristo), respectivamente à direita e à esquerda de Jesus. Um diferencial desta imagem é a ausência da tabuleta212, presa ao topo da

cruz, com a tradicional inscrição INRI (Iesus Nazarenus Rex Iudeorum) e a presença da mão de Deus, vinda do alto, apontando para a cabeça de Jesus e exibindo o sinal de bênção.

A presença das figuras representando o Sol e da Lua não são encontradas nas outras representações da Crucificação de Jesus, como por exemplo, nas baias (51) e (37), a Paixão de Cristo e a Paixão tipológica, respectivamente. No entanto, podem ser vistas

212 Não havia um padrão estabelecido para a imagem da Crucificação e a variedade de suas representações está relacionada com o conjunto de referências que o iluminador teve contato, implicando com as questões de localização do scriptorium, as tradições locais e contextos culturais relacionados à produção das imagens pelos iluminadores.

na baia (49), ladeando a imagem da Theotókos, no lado de fora da mandorla, acima de dois anjos que reverenciam Maria e o Menino Jesus.

Baia (49) – A vida de Cristo – séc. XII Crédito: Elias Feitosa

Em ambos os casos, a menção aos corpos celestes (Sol e Lua) evocam tanto a própria Natureza em adoração quanto em comoção aos eventos ligados à vida e à morte de Jesus; neste último caso, poderia, ainda, ser uma referência ao Evangelho no episódio do escurecimento da terra nos momentos finais de Cristo213.

No fólio 114 rº, aparece a imagem do Cristo em Majestade, em pé, cercado pelo Tetramorfo e acompanhado de um pequeno texto da oblação do Sacrifício214, o qual

se inicia com uma capitular P:

213 Mt 27: 45

214 “Per omnia secula seculorum, Amem. Dominus vobiscum. Et cum spirtu tuo. Sursis corda habemus ad Dominum. Gratias agamus Domino, Deo nostro. Dignum et Iustum est.” (Por todos século dos séculos. Amém. O senhor esteja convosco. E com teu espírito. Elevemos ao corações. Temo-los para o Senhor. Demos Graças ao Senhor, nosso Deus. É digno e justo. (Transcrição e tradução nossa)

Missale de Chartres – c. séc. XII – Cristo abençoante

Crédito: Elias Feitosa

O tema do Cristo em Majestade acompanhado do Tetramorfo reaparece várias vezes na catedral de Chartres, a começar pelo tímpano central do Pórtico Real; depois nas pequenas rosáceas junto ao deambulatório nas baias (25c), (26c), (27c) e (29c) e depois apenas o Cristo em Majestade, no ápice das baias localizadas na parte inferior: da Paixão tipológica (37), da Vida de Santo Apolinário (36), do Zodíaco e o Trabalho dos meses (28a); já na parte superior, encontra-se nas pequenas rosáceas junto das baias (113) e (140).

No Missale, este Cristo em Majestade215 encontra-se em pé, numa mandorla azul, a

qual preenche o interior da letra “V” que se completa com as letras “E”, “R” e “E”, dispostas ao lado esquerdo do Todo Poderoso, compondo assim a palavra “Vere” que introduz o texto subsequente da missa escrito no 114vº:

215 A opção escolhida pelo iluminador do Missale implicou na construção de uma figura de composição singular, pois as figuras majestáticas de Cristo sempre o colocavam sentado num trono ou mesmo sentado sustentado por anjos, mas não em pé e cercado pelo Tetramorfo. Outra peculiaridade é o fator de seguir a tradição fazendo o sinal de bênção com a mão direita, mas ao invés de portar o livro na esquerda, segura uma cruz alongada, semelhante às cruzes utilizadas nos rituais litúrgicos em procissões, numa alusão ao cajado do pastor e ao mesmo tempo, símbolo da autoridade.

Vere dignum et justum est, aequum et salutare, nos tibi semper et ubique gratias agere. Domine sancte, Pater omnipotens, aeterne Deus. Et in personis proprietas, et in essentia unitas, et in majestate adoretur aequalitas. Quam laudant Angeli atque Archangeli, Cherubim quoque ac Seraphim: qui non cessant clamare quotidie, una voce dicentes: Sanctus, Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth. Pleni

sunt cæli et terra gloria tua.

Hosanna in excelsis. Benedictus, qui venit in nomine Domini. Hosanna in excelsis.216.

No capítulo anterior, apontei a importância de pensar as relações possíveis entre as imagens dos vitrais, tomando por referência a ordem enquanto categoria para se pensar a disposição das imagens no espaço. Ao observar o Missale, identifico que a ordem foi pautada pela imagem, pois a representação de Cristo organiza o espaço, é o Verbo e depois aparecem os elementos textuais.

O Cristo inserido na mandorla azul remete ao ambiente divino, seja pela alusão ao céu, seja por sua mimese através da coloração empregada nos vitrais do século XII, tanto os da fachada ocidental quanto a baia de La Belle-Verrière. O espaço divino em azul contrasta com a aureola em dourado, a qual também acompanha cada um dos atributos componentes do Tetramorfo.

A ornamentalidade se articula pelo conjunto formado pela imagem e texto: o azul presente no fundo da inicial P que traz, no seu interior, um homem de semblante triste, rodeado por uma estrutura sinuosa que remete a um dragão ou mesmo à serpente, numa alusão ao Mal e a tristeza poderia estar relacionada à sua condição de peccator (pecador).

Para as letras em coloração escura foi utilizado um pigmento púrpura, o qual forma o fundo dos nichos do Tetramorfo, presente na inicial P, cercando o azul e se alterna com o pigmento vermelho nas linhas do texto, nos entrelaçados que adornam a borda da mandorla, a túnica do Cristo e compõe a delicada linha, que forma a cruz por ele carregada como um cetro na sua mão esquerda, enquanto a direita faz o sinal de

216 É verdadeiramente digno, justo, racional e salutar, que sempre e em toda a parte Vos rendamos graças, Senhor Santo, Pai Onipotente e Deus Eterno; adoramos a propriedade nas Pessoas, a unidade na Essência e a igualdade na Majestade, a qual louvam os Anjos e os Arcanjos, os Querubins e os Serafins, que não cessam de cantar dizendo a uma só voz: Santo, Santo, Santo, é o Senhor Deus dos Exércitos. A Terra e o Céu estão cheios da Vossa glória. Hosana no mais alto dos Céus. Bendito O que vem em nome do Senhor. Hosana nas alturas!

benção. Já o dourado se concentra nas aureolas e na decoração dos livros referentes aos Evangelhos.

Missale de Chartres – c. séc. XII – Anjo

Crédito: Elias Feitosa

Outro indício da imagem operar a ordem, na articulação do espaço junto ao texto, é que a silhueta do Cristo em Majestade é aproveitada no fólio 114vº, porque ali aparece, ao centro da página, a figura de um anjo que porta um livro e, à sua volta, há um texto escrito, na maior parte com tinta escura, algumas linhas vermelhas e letras coloridas em vermelho, azul e dourado, que são as mesmas empregadas na coloração das imagens.

O corpo do anjo mantém a mesma proporção do Cristo no 114 rº e esta figura longilínea foi transformada na haste da letra “T” que inicia o texto subsequente:

Te igitur, clementissime Pater, per Jesum Christum Filium tuum, Dominum nostrum, supplices rogamus ac petimus, uti accepta habeas, et benedicas, hæc dona, hæc munera, hæc sancta sacrificia [illibata]217.

217 Portanto nós, Pai clementíssimo, por Jesus Cristo vosso Filho e Senhor nosso, humildemente rogamos e pedimos, aceiteis e abençoeis estes dons, estas dádivas, estas santas oferendas [ilibadas].

O decor do verso do fólio acompanha o cromatismo que apareceu no recto: as vestes do anjo são de azul e vermelho, a aureola é dourada, assim como o livro portado por ele; o texto “Vere dignum ...” que foi iniciado com a figura do Cristo em Majestade, se alterna entre púrpura e vermelho e este padrão se mantém no texto iniciado pela figura do anjo, a qual é cercada pela abreviação da frase: “Te igitur, clementissime Pater”, nesta parte, o púrpura e o azul são acompanhados por algumas letras em dourado. No cabeçalho e rodapé do fólio, aparecem algumas citações bíblicas que possivelmente foram adicionadas à posteriori , em tinta preta, como um adendo ao celebrante da missa.

A inscrição do cabeçalho tem uma inicial “I” feita com um pouco mais de simplicidade que as capitulares anteriores, sendo que a 1ª linha está cortada no meio, fruto de algum tipo de conserto que o Missale tenha sofrido, mas muito longe de ser chamado de “restauração” nos conceitos científicos da atualidade. Porém, a partir da 2ª linha, o texto torna-se legível e é a justaposição de uma passagem do Antigo Testamento - um trecho do livro de Daniel (3: 39-40): “In spiritu humilitatis et in animo contrito suscipiamur ad te Domine, et sic fiat sacrificium nostrum in conspectu tuo hodie ut placeat tibi Domine Deus.”218 Em seguida, aparece um fragmento anotado da missa:

“Aufer a nobis, quaesumus Domine, iniquitates nostras: ut ad Sancta sanctorum puris

mereamur mentibus introire .”219

No rodapé do fólio, também escrito em tinta preta, com a mesma letra do cabeçalho, consta a notação:

Conscientias nostras quesium Domine purifica ut veniens dominus Jhesum Christe tum omnis sanctis paratam ubi in nobis inuemat mausionem.

Deus qui beatum petrum apostolum a vinculis absolutum illesum abire fecisti nostrum quesimus absolve vincula peccatorum et omnia mala a nobis propitiatus exclude.

Et Pax Dei exsuperat omne sensum custodiat corda vestra et integilencias nostram. Amem220.

218 “Com a alma quebrantada e o espírito humilhado possamos encontrar acolhida tal se torne o nosso sacrifício hoje como te apraz, Senhor Deus.” (Transcrição e tradução nossa)

219 “Tirai de nós, pedimos-te Senhor, nossos pecados, a fim de merecermos penetrar de coração puro no Santo dos Santos.” (Transcrição e tradução nossa)

220 “Ó Senhor, purificai nossas consciências e também cada um que está pronto para estar onde estão em Cristo e os santos, quando veio, e seguiu nosso Senhor Jesus para recompensada morada.Deus, que soltou as correntes de Pedro apóstolo, e o libertou incólume: livra-nos da iniquidade dos nossos pecados e misericordiosamente nos protege de todo o mal. A Paz de Deus ultrapassa todo o entendimento, guardará os vossos corações e as nossas inteligências (Fl 4: 7-9). Amém.” (Transcrição e tradução nossa)

A imagem do anjo, a ornamentação estruturada tanto pela cor como pelas palavras ao seu redor, criam uma ordem que se pauta no louvor a Deus, que é a motivação do texto da missa e assim, reiteram o papel da leitura e contemplação no exercício de um percurso anagógico.

Observo, nessa intensidade, que a devoção se articula com uma lógica complexa, ao se pensar este conjunto de iluminuras e os textos que o acompanham, como também, as relações que são possíveis para pensar o culto chartrense.

As imagens têm, por excelência, a interpretação cristológica, a começar pela representação da Crucificação, que é a síntese do culto cristão, o sacrifício de Jesus pela Humanidade, o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. A Virgem Maria se faz presente, na sua condição de mãe, exaltada como a Mater Dolorosa e acompanhada por João, a quem Jesus atribui, pela instituição de uma relação filial, a responsabilidade por sua mãe a partir daquele momento221.

A representação do Cristo em Majestade acompanhado do Tetramorfo exalta a Parúsia, que significa o Juízo Final, a conclusão da história cristã com o retorno Jesus e o último acontecimento antes da instauração do Reino de Deus na Terra.

Há uma outra peculiaridade nesta imagem, pois o rosto de Cristo encontra-se desgastado, não sendo possível enxergar seus olhos, nariz e boca, porém observam- se o contorno da barba e os cabelos longos.

Apesar do semblante não ser visível (aparentemente resultado de desgaste do pigmento), os gestos, os símbolos e as cores, sobressaltam sua força divina como que numa aparição; daí remeto à discussão do capítulo anterior: Cristo é a luz verdadeira que no fólio do Missale aparece em linhas e palavras.

No fecho do ciclo, encontra-se o anjo em pé, segurando o livro, remetendo às representações dos Principados, presentes na baia (36):

221 Jo 19: 25-27.

Baia (36) A vida de Santo Apolinário – séc. XIII Cenas 28 - (Crédito: Elias Feitosa)

Talvez a imagem do Missale possa ter sido uma das fontes de inspiração para a iconografia angélica do vitral, que é do século XIII. Trata-se da única representação da hierarquia angelical nos vitrais da catedral, referência à Hierarquia Celeste de Dionísio Pseudo-Areopagita:

“O nome ‘principados celestes’ indica que eles têm o segredo de comandar conforme a boa ordem que convém às potências superiores de maneira imutável, e de guiar com autoridade os outros em direção ao Princípio que reina sobre todas as coisas, os quais recebem, na medida do possível, a marca do princípio do qual procede todo princípio. Mediante o justo exercício de seus poderes de governo, dão a conhecer aos outros este princípio de Governo supraessencial.”222

O “Princípio” citado é Deus, sendo Jesus, oriundo do Pai; logo, a própria Luz Verdadeira, que na imagem do Missale é resultado da interpretação seguida pelo iluminador, ao usar a silhueta do “corpo de Jesus” para fazer o corpo do anjo, que traz as mesmas cores de Cristo e segura o livro; sendo num jogo metalinguístico parte do próprio texto que ali registrado. O Principado incorpora e porta o livro com suas mãos cobertas pela túnica, a Palavra Divina, um gesto de reverência e resguardo à pureza, mesmo que fosse um ser celestial, o reconhecimento da supremacia de Deus é imediato, pois o teor do texto introduzido por esta “inicial angélica” remete à súplica dos humildes e intensifica a coerência da representação iconográfica e o conteúdo do texto.

Na Pórtico Meridional da catedral de Chartres, cujo tema é o Juízo Final, o Cristo-Juiz aparece ao centro e, sobre sua cabeça, a hierarquia celeste dos anjos223 ocupa os

arcos ogivais que compõem o tímpano:

Detalhe do Pórtico Meridional de Chartres – Tímpano O Cristo-Juiz e a Hierarquia Celeste – séc. XIII Crédito: Elias Feitosa

A relação entre a palavra e a imagem no interior do Missale pode ser pensada à luz da reflexão de Hugo de Saint-Victor:

Entre estes cinco degraus, o primeiro degrau, a leitura, é dos principiantes, e o supremo, ou seja, a contemplação, é dos perfeitos. Com relação aos degraus do meio, quanto mais a pessoa ascende, tanto mais é perfeita. Por exemplo, o primeiro de grau, a leitura, dá o entendimento; o segundo, a meditação, engendra o discernimento; o terceiro, a oração, pede; o quarto, a prática, procura; o quinto, a contemplação, encontra.224

Nessa reflexão sobre o ato contemplativo, entendo que seja pertinente pensar a mesma relação no interior da catedral a partir dos programas iconográficos ali

223 A representação da Hierarquia Celeste, semelhante à Chartres, ocorre no Pórtico Meridional da catedral de Saint-André, em Bordeaux, também datado do século XIII

presentes, nos quais, pode-se observar a importância das categorias de ordem e hierarquia, bem como, o destaque para a categoria da variedade.

Detalhe do Pórtico Meridional de Chartres – Os Principados – séc. XIII Crédito: Elias Feitosa

Ao ler as litanias presentes no Missale de Chartres e compará-las com o Ms. 7, um

Processionnal da segunda metade do século XIII (Liber Cantoris Ecclesiae

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