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Luz, imagem e devoção mariana nos vitrais da catedral de Notre-Dame de Chartres (Séc. XII-XIII)

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Elias Feitosa de Amorim Junior

Luz, imagem e devoção mariana nos vitrais da catedral de

Notre-Dame de Chartres (séc. XII-XIII)

Campinas

2019

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Elias Feitosa de Amorim Junior

Luz, imagem e devoção mariana nos vitrais da catedral de

Notre-Dame de Chartres (séc. XII-XIII)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em História na área de História da Arte.

Orientadora: Profª. Drª. Patricia Dalcanale Meneses

Este trabalho corresponde à versão final da dissertação defendida pelo aluno

Elias Feitosa de Amorim Junior, e orientada pela Profª Drª Patricia Dalcanale Meneses.

Campinas

2019

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Amorim Junior, Elias Feitosa de,

Am68L AmoLuz, imagem e devoção mariana nos vitrais da catedral de Notre-Dame de Chartres (Séc. XII-XIII) / Elias Feitosa de Amorim Junior. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

AmoOrientador: Patricia Dalcanale Meneses.

AmoDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Amo1. Notre Dame de Chartres (Catedral: Chartres, França). 2. Vitrais. 3. Luz -Aspectos religiosos. 4. Livro de horas. 5. Liturgia. I. Meneses, Patricia

Dalcanale, 1980-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Light, image and marian devotion in the stained glass windows of

the cathedral of Our Lady of Chartres (12th-13th century)

Palavras-chave em inglês:

Stained glass windows Light - Religious aspects Book of hours

Liturgy

Área de concentração: História da Arte Titulação: Mestre em História

Banca examinadora:

Patricia Dalcanale Meneses [Orientador] Tamara Quírico

Luís Cesar Marques Filho

Data de defesa: 29-03-2019

Programa de Pós-Graduação: História

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-5803-2852 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/0834644791400480

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão publica realizada em 29/03/2019, considerou o candidato Elias Feitosa de Amorim Junior, aprovado.

Comissão Julgadora

Profª Drª Patricia Dalcanale Meneses Profª Drª Tamara Quírico

Prof. Dr. Luiz César Marques Filho

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretariado Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Agradecimentos

Agradeço,

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento da pesquisa junto ao Programa de Pós-Graduação do IFCH, no Departamento de História através da bolsa de mestrado, processo nº 133805/2017-4. À Merien Rodrigues, amiga e companheira de todos os momentos, responsável pela sugestão do tema central deste trabalho, fruto de muitas conversas acompanhadas de suas reflexões sempre perspicazes, que me possibilitaram repensar o projeto original e dar o encaminhamento que aqui conclui, além de todo apoio ao longo do processo de pesquisa, que envolveu uma intensa gama de sentimentos, indubitavelmente, dedico-lhe este trabalho.

Ao apoio de meus pais, Elias e Wanda (in memoriam), minhas irmãs Tatyana e Carla, bem como, os demais familiares pelas palavras de incentivo e pelo desejo da realização dos meus objetivos enquanto pesquisador.

À Profª. Drª. Patrícia D. Meneses pela acolhida do projeto e imensa paciência, dedicação e generosidade em todo o processo de orientação deste trabalho.

À Profª. Drª. Tamara Quírico e ao Prof. Dr. Luiz Marques pela leitura cuidadosa e observações bastante consistentes durante a banca de qualificação, as quais me permitiram repensar alguns aspectos da pesquisa para concluí-la de um modo mais tranquilo.

Aos bibliotecários do IFCH, que sempre colaboraram na localização de livros e nos percalços que envolvem processo de pesquisa.

Aos irmãos beneditinos, em especial ao Reverendíssimo Abade D. Mathias Tolentino Braga e ao Magnífico Reitor da Faculdade de Filosofia do Mosteiro de São Bento, D. Eduardo Uchôa pela bolsa que me concederam para o curso de Latim, bem como ao seu responsável, o Prof. Me. D. Afonso Aurélio de Lima, que compartilhou sua erudição e paciência na leitura de minhas traduções.

Aos amigos do LATHIMM na Universidade de São Paulo, Profª. Drª. Maria Cristina, Prof. Dr. Eduardo Aubert e Prof. Dr. Gabriel Castanho, pelos auxílios bibliográficos e sugestões de leitura.

À Profª. Drª. Rossana Pinheiro da Unifesp e o Prof. Dr. Wagner Aparecido Stefani, pelas sugestões bibliográficas sobre as comunidades monásticas, liturgia e sua relação com a temporalidade.

À Renata Gonçalves pela revisão do texto principal, Moacir Prudêncio pela revisão do

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À minha “família francesa” que me recebeu com atenção e generosidade ímpares e com certeza, contribuíram para que eu sempre ficasse confortável e acolhido: o casal de amigos Maud Chirio e Paul Simondon, a irmã de Paul, Esther Simondon, os pais de Maud, Regina e Gérard Chirio. Através de Maud e Paul, conheci o chartrense Olivier Rozenberg e seus pais, Danièle e Pierre Rozenberg que me acolheram em Chartres sempre de modo caloroso. Por indicação de Olivier, conheci Samuel Bernard, atuante no Centre Internacional du Vitrail em Chartres que me apresentou os procedimentos de fabricação dos vitrais e os trabalhos de restauro ali desenvolvidos.

À Profª. Drª. Nicole Bériou, que através da Association Grain d’Espoir, me hospedou em Paris, fornecendo-me condições privilegiadas para pesquisar nas bibliotecas e acervos, tendo um lugar confortável e tranquilo para os estudos e o descanso necessários.

À Reitoria da Catedral de Notre-Dame de Chartres, na pessoa do Reverendíssimo Abade D. Emmanuel Blondeau, o qual me direcionou ao coordenador das atividades culturais da catedral, Prof. Gilles Fresson que, em conjunto com sua equipe, permitiu minhas expedições de observação e fotografia com todo apoio necessário.

À Patrícia Blanfumé, bibliotecária da Biblioteca Diocesana de Chartres, responsável por localizar as listagens de livros e fontes, sempre com presteza e gentileza.

Aos bibliotecários de Paris, Reims, Sens, Soissons e Troyes que me concederam generosa atenção e me permitiram localizar os manuscritos medievais para fotografá-los e estudá-fotografá-los, sempre auxiliando e sugerindo o que poderia ser feito para um melhor aproveitamento do meu tempo de pesquisa.

Ao Dr. Roger S. Wieck (The Morgan Library & Museum), a Drª. Rachel Fulton Brown (University of Chicago) e ao Prof. Dr. Jean-Paul Deremble (Université de Lille 3) que foram bastante atenciosos e prestativos, através de nossa correspondência virtual, ao sanarem dúvidas relacionadas aos livros de Horas e ao culto mariano.

Ao Rodrigo Nabuco de Araújo e sua esposa Céline Nabuco, pela acolhida e hospedagem em Reims.

À Direção e Coordenação do Cursinho da Poli, que me apoiaram com a compreensão necessária, possibilitando minhas ausências durante algumas semanas no período letivo, sem que houvesse prejuízo para ambas as partes.

Apesar de incomum, aproveito este momento para pedir desculpas: um processo de pesquisa promove muitos desconfortos e dificuldades, seja ao pesquisador, seja a quem está ao seu redor e por isso, espero contar com a indulgência daqueles que conviveram comigo durante este período. Desejo, sinceramente, que o resultado final, possa ser acompanhado de satisfação e de perdão.

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As luzes materiais, sejam as dispostas pela natureza no espaço celestial quanto aquelas produzidas na terra pelo engenho humano, são imagens das luzes inteligíveis e, principalmente, da Verdadeira Luz em pessoa1. João Escoto Erígena (c. 815-877)

1 “Materialia lumina, sive quae naturaliter in caelestibus spatiis ordinata sunt, sive quae in terris humano artificio efficiuntur, imagines sunt intelligibilium luminum, super omnia ipsius verae lucis”. JOÃO ESCOTO ERÍGENA. Super Ierarchiam Caelestem Sancti Dionysii. Transcrição: MIGNE, Jacques Paul. Patrologiæ Latina, CXXII,139 – 1855.(BMSB) (tradução nossa)

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Resumo

A presente pesquisa explora a possibilidade de estabelecer uma análise dos programas iconográficos dos vitrais da catedral de Notre-Dame de Chartres, no contexto dos séculos XII-XIII, com ênfase nas representações marianas neles presentes, relacionando-as ao espaço sagrado. Tal procedimento aponta a importância do estudo da posição dos vitrais e sua relação com a iluminação, tendo como perspectiva as práticas de culto referentes às horas canônicas, bem como, as comemorações das festas marianas e a estrutura arquitetônica da catedral.

Para a organização dos procedimentos de análise e das reflexões teórico-metodológicas deste texto, trago o aporte do debate presente na historiografia relacionada à cultura visual medieval, cuja articulação aponta um caminho interdisciplinar entre história da arte, liturgia e teologia.

No desenrolar deste percurso, a reflexão sobre a cultura visual no medievo se pautará em três pontos: o elemento plástico, as práticas de culto (a liturgia) e a reflexão teórica (a teologia), que lhe conferem legitimidade.

Esta dissertação contempla três capítulos: o primeiro destina-se ao histórico da catedral - uma breve narrativa sobre a construção da catedral e sua ampliação, sendo que a atenção maior estará voltada para os vitrais (datação e restaurações).

O segundo capítulo prioriza o papel da imagem no espaço sagrado, no qual apresento a relação da arquitetura gótica com a metafísica da luz a partir da análise do pensamento de Dionísio Pseudo-Areopagita e de Suger de Saint-Denis.

No terceiro capítulo apresento a relação das horas canônicas dedicadas à Virgem, apontando como estas se fazem presentes nos vitrais da catedral de Chartres e como a questão da luminosidade se articula no campo imagético, teológico e litúrgico.

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Abstract

The present research explores the possibility of establishing an analysis of the iconographic programs of the stained-glass windows of Notre-Dame Cathedral of Chartres, in the context of the XII-XIII centuries, with emphasis on the Marian representations in them, relating them with sacred space.

Such procedure points out the importance of studying the position of stained-glass windows and their relationship with lighting, taking into account the worship practices and its linking with the canonical hours, as well as the commemorations of the Marian feasts and the cathedral architectural structure.

For the organization of the analysis procedures and the theoretical-methodological reflections of this text, I bring the contribution of the present debate in the historiography related to the medieval visual culture, whose articulation involves an interdisciplinary course between art history, liturgy and theology.

Along this course, reflection about visual culture in the Middle Ages will be based on three points: the plastic element, the worship practices (the liturgy) and theoretical reflection (theology), which give it legitimacy.

This thesis contemplates three chapters. The first one is devoted to the history of the cathedral - a brief narrative about the construction of the cathedral and its enlargement, and the greater attention will be dedicated to the stained-glass windows (dating and restorations).

The second chapter prioritizes the role of the image into the sacred space, in which I present the relation between the gothic architecture and the metaphysics of light based on the analysis of the thought of Pseudo-Dionysius the Areopagite and Suger de Saint-Denis.

In the third chapter I present the relation of the canonical hours dedicated to the Virgin, showing how hours are present in the stained glass of the Cathedral of Chartres and how the element of luminosity is articulated in the imaginary, theological and liturgical field.

Key words: Stained-Glass Windows; Our Lady of Chartres; Light; Book of Hours; liturgy.

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Resumé

Cette recherche explore la possibilité d’analyser les programmes iconographiques des vitraux de la cathédrale Notre-Dame de Chartres aux XIIe et XIIIe siècles, en mettant

l’accent sur les représentations mariales qui les relient à l’espace sacré. Cette approche souligne l'importance d'étudier la position des vitraux et leur relation avec l'éclairage, en tenant compte des pratiques de culte liées aux heures canoniales, ainsi que des commémorations des fêtes mariales et de la structure architecturale de la cathédrale.

Les procédures d'analyse et les réflexions théoriques et méthodologiques utilisées ici s’appuient sur les débats l'historiographiques récents autour de la culture visuelle médiévale, qui impliquent de suivre un cheminement interdisciplinaire entre histoire de l'art, liturgie et théologie.

Notre réflexion sur la culture visuelle au Moyen Âge s'articulera autour de trois points : l'élément plastique, les pratiques de culte (la liturgie) et la réflexion théorique (théologie) qui lui confèrent une légitimité.

Cette thèse comporte trois chapitres : le premier est consacré à l'histoire de la cathédrale – un bref récit de sa construction et de son agrandissement, avec une attention toute particulière aux vitraux (datations et restaurations).

Le deuxième chapitre se penche sur le rôle de l'image dans l'espace sacré. J’y explique quelle fut la relation entre l'architecture gothique et la métaphysique de la lumière à partir de l'analyse de la pensée de Dionysius Pseudo-Areopagite et de Suger de Saint-Denis.

Dans le troisième chapitre, je présente la relation entre les heures canoniales consacrées à la Vierge, en soulignant leur présence dans les vitraux de la cathédrale de Chartres, et comment la question de la luminosité s’articule dans les domaines imaginaire, théologique et liturgique.

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Sumário

Introdução 13

Capítulo I: Notre-Dame de Chartres 28

Capítulo II: Luz, Imagem e Visualidade 49

Capítulo III: A luz, a liturgia e as Horas da Virgem 121

Considerações finais 177

Bibliografia 180

Anexos I - Litaniae sanctorum – Liber Cantoris Ecclesiae Senonensis - Ms. 7 189 II – Litaniae Sanctorum – Pontificale Ms. 342 192

III – Missa de Sancta Maria in Sabbato - Missale de Chartres Ms. 894 194

IV – Miracle XVIII – Les Miracle de Notre-Dame 195 V - Fontes iconográficas e imagens referenciais para a dissertação. 196

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Introdução

O historiador constrói metáforas do passado, já que este não será completamente recuperado e sim, interpretado, ao pensar nas significações elaboradas no discurso, nas relações destas com a análise das fontes e a proposição da hipótese como a materialização de pensamentos e ações humanas ao longo do tempo.

A reflexão sobre um conjunto de imagens produzidas por uma outra sociedade num passado distante implica a elaboração de um discurso que possa operar diferentes cadeias de significação, as quais envolvem as imagens em si, sua localização e seu contexto de uso.

Uma vez que as imagens não falam por si e assim, os significados e a conjuntura são atribuições do observador, no campo epistemológico, buscar seus usos e impactos noutro tempo é o desafio manifestado no ofício do historiador, seja pela seleção do

corpus documental, seja pela análise deste e sua respectiva crítica.

A presente pesquisa explora a possibilidade de estabelecer uma análise dos programas iconográficos dos vitrais2 da catedral de Notre-Dame de Chartres, no período dos séculos XII-XIII, observando a existência de um debate historiográfico sobre a decoração mais livre, marcada pela variedade dos temas (varietas) ou a existência de vários programas iconográficos, sendo esta última a posição de que compartilho. Desse modo, minha análise será direcionada às representações marianas presentes nos vitrais, relacionando-as ao espaço sagrado. Tal procedimento aponta a importância do estudo da posição dos vitrais e sua relação com a iluminação, tendo como perspectiva as práticas de culto referentes às horas canônicas, bem como, as comemorações das festas marianas e a estrutura arquitetônica da catedral.

Para a organização dos procedimentos de análise e das reflexões teórico-metodológicas deste texto, trago o aporte do debate presente na historiografia relacionada à cultura visual medieval, cuja articulação envolve um caminho interdisciplinar3 entre história da arte, liturgia e teologia.

2 O vitral é formado por uma estrutura de chumbo, que define a segmentação do espaço interno da baia e compõe ao mesmo tempo, sua estrutura de sustentação. Em certos contextos, a trama dos caixilhos de chumbo colabora para a composição das imagens, que podem ser desenhadas e/ou pintadas segundo a técnica de grisalha sobre os pedaços de vidro branco ou colorido (óxidos de cobalto para os azuis, óxidos de ferro para o vermelho, óxido de cobre para o verde, óxidos de manganês para a púrpura e o enxofre para o amarelo que se encaixavam na malha de chumbo). A técnica de fabricação dos vitrais pode ser mais bem conhecida através do tratado do monge Teófilo, Diversarum Artium

Schedula, escrito por volta do início do século XII.

3 SCHMITT, Jean-Claude. Le corps des images: essais sur la culture visuelle au Moyen Âge. Paris: Éditions Gallimard, 2002.

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No desenrolar deste percurso, a reflexão sobre a cultura visual no medievo se pautará em três pontos: o elemento plástico, as práticas de culto (a liturgia) e a reflexão teórica (a teologia), que lhe conferem legitimidade.

Ao se pensar nas imagens presentes nos vitrais4, a dimensão dos elementos plásticos

parte do próprio vidro, que tem a função de suporte para as imagens, mas, ao mesmo tempo, é integrante das mesmas, já que os fragmentos coloridos compõem as imagens e recebem acréscimos de detalhes pintados sobre essa base: dobras de roupa, características anatômicas, detalhes de um objeto, etc.

Na dimensão plástica, diferentemente da pintura, em que a noção de luz e sombra é construída pela combinação de tons mais claros e mais escuros, imitando-se, portanto, à luminosidade no desenho ou quadro; o vitral precisa que a luz natural o transpasse para ser visível.

A luz solar atravessa os vitrais da catedral de Chartres, constituindo uma ampla variação de matizes de cores, e proporciona ao templo efeitos cromáticos que envolvem a ornamentalidade, bem como, a marcação do tempo cronológico e litúrgico. A incidência da luz se articula junto ao templo, explorando o conceito de præsentia, conforme citei na epígrafe de João Escoto Erígena em seu comentário sobre A

hierarquia celeste de Dionísio Pseudo-Areopagita, cuja influência naquele contexto

implicava a concepção mística de que Deus é Luz.

Os vitrais estão, pois, envolvidos com a função estrutural de iluminar o interior da catedral; mas, ao mesmo tempo, como são dotados de imagens, e estas também precisam da luz, para que se tornem visíveis e inteligíveis, o décor se apresenta como parte da estrutura.

Entendo como vital, assim, a construção de uma reflexão que parta do conceito de “lugar de imagens”, porque a complexidade do conjunto imagético dos vitrais envolve uma relação entre todo e parte, imagem e espaço; permitindo levantar hipóteses sobre a visualidade e sua relação com o sagrado, considerando-se as funções de uso do templo e o peso da ritualidade no processo de elaboração da devoção, seja pelo clero, seja pelos fiéis5.

4BRISAC, Catherine. Le Vitrail. Paris: Les Éditions du Cerf, 1990; ROLLET, Jean. Les maîtres de la lumière. Paris: Bordas, 1980; ZERWICK, Cloe. A short history of glass. New York: Harry N. Abrams, 1990.

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Entretanto, o conjunto imagético presente nos vitrais de Chartres não pode ser mais lido exclusivamente, assim como qualquer ciclo artístico-narrativo, como a “Bíblia dos pobres”6, afinal, as janelas são dotadas de muitas cenas que, dependendo da altura

e posição, são parcialmente visíveis ou invisíveis a olho nu, pensando-se numa situação convencional do indivíduo dentro da catedral.

É na visibilidade dessas imagens que ocorre a conexão entre o elemento plástico e a justificativa teórica que se consolida na teologia cristã; ao se pensar em duas questões: a posição da imagem no templo e a quem está destinada.

Por mais controversa que seja a questão relacionada aos prováveis destinatários dos vitrais e a miríade de significados para aqueles que as viram, pensando-se nas mensagens que portam, é um ponto nebuloso; todavia, há a identificação de um destinatário universal dentro da liturgia católica: Deus.

O templo é dedicado ao louvor divino e, por mais invisível que fosse a pintura, escultura ou vitral aos olhos humanos; na concepção cristã, estaria sob a Onividência divina, a partir do conceito medieval de præsentia, que se relaciona, por sua vez, à a ideia da ornamentalidade7, a qual cumpriria tanto o papel de “honrar a Deus” quanto oferecer uma experiência estética e sensorial aos visitantes da catedral, onde este “belo” cumpre o processo de aproximação com o sagrado, no sentido de materializá-lo no interior do tempmaterializá-lo com cor, brilho e luminescência.

As imagens ali presentes compartilham uma determinada posição e constituem relações entre si numa mesma baia, ou com outras, de maior ou menor distância8

sendo, assim, um todo muito mais complexo. Por tratar-se também de um lugar de peregrinação, é possível entender a devoção como a manifestação de um processo dinâmico, complexo e hierarquizado.9

A dinâmica entre as imagens no espaço sagrado pode também ser pensada a partir da relação com seus destinatários, isto é, pensando-se no papel que elas

6 MÂLE, Émile. L’Art Religieux du XIIe siècle en France: Étude sur les origines de l’iconographie du

Moyen Age. Paris: Librarie Armand Colin, 1928, 3ªed.; MÂLE, Émile. L’Art Religieux du XIIIe siècle en

France: Étude sur l’iconographie du Moyen Age et sur ses sources d’inspiration. Paris: Librarie Armand

Colin, 1958, 9ªed.

7 BONNE, Jean-Claude. Formes et fonctions de l’ornemental dans l’art médiéval (VII-XIIe siècle). Le

modèle insulaire. Actes du 6e ‘International Workshop on Medieval Societies’, Centre Ettore Majorana (Erice, Sicile, 17-23/10/1992). BASCHET, Jérôme & SCHMITT, Jean-Claude (ORG.), Paris: Cahiers du Léopard d’Or, Vol. 5, 1996.

8 PINELLI, Antonio. Intenzione, invenzione, artifizio: Spunti per una teoria ricezione dei cicli figurativi di

età rinascimentale. Ricerche di Storia dell’Arte. Rivista quadrimestrale, anno 2007, Carocci Editore, n°

91-92, p. 07- 42.

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desempenhariam nos lugares destinados exclusivamente aos membros da Igreja, os quais, por exemplo, ficavam separados dos fiéis durante a missa10 ou nos lugares de

livre circulação, considerando-se o tema escolhido, a posição no espaço sagrado e o grau de visibilidade das imagens.

A compreensão desse conjunto de imagens que compõem os programas iconográficos da catedral, sua relação com o espaço arquitetônico, e este com a luminosidade, apontam uma reflexão sobre como o discurso teológico relaciona-se à liturgia e à produção artística, bem como, à organização da devoção mariana no espaço da catedral, cuja expressão é intensa em diversas linguagens (pintura, escultura e vitrais) durante todo seu período de construção.

A Virgem Maria representa, dentro da tradição católica, um dos elementos de ligação entre o plano divino e o plano material. Ela trouxe, em seu ventre, o filho de Deus, e este tinha como missão mostrar aos homens o caminho da Salvação, o qual não era mais a Lei de Moisés. Pode-se entender Maria como um “relicário divino”, isto é, da mesma forma que a Arca da Aliança guardou as tábuas da Lei durante o Êxodo e depois no templo de Jerusalém, Maria teve dentro de si o Filho de Deus e dele viria a Salvação, a qual estava presente nos Evangelhos11.

A iconografia mariana, junto com as representações da arte cristã, está sempre localizada no centro de uma história político-religiosa intensa, em que se mesclam, de maneira intrínseca em defesa da fé e da ortodoxia. A consagração de uma legitimidade para a adoção de um modelo prestigioso, ou o reconhecimento simbólico de uma área de poder, de um território e, em último caso, a expansão estereotípica do personagem mariano, conta mais que as elaborações originais12.

Tomando-se a ideia de afirmação e consolidação de poder pela Igreja como uma instituição, podem-se observar dois movimentos: o primeiro teria ocorrido perante o poder secular, no intuito de salvaguardar a primazia da autoridade do clero sobre os homens e, nesse caso, colocar-se acima de todos os potentados; já o segundo teria

10 Verbete “Imagens” In SCHMITT, Jean-Claude in LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude (ORG.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002.

11 “A ligação entre a Virgem e a arca está explícita em Lucas, através do verbo “habitar” (episkiázo) que a empregam para traduzir o hebraico shakan, termo técnico para indicar a habitação de Deus entre os homens: quando o santuário fica pronto, o Senhor toma posse dele, fazendo ‘habitar’ sobre ele a ‘nuvem’, sinal de sua presença (Ex 40: 34-35); no hebraico pós-bíblico shekinah é o vocábulo que exprime a imanência divina.” In verbete “Judeus", FIORES, Stefano de & MEO, Salvatore. Dicionário

de Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995, p. 682.

12 RUSSO, Daniel “Les représentations mariales dans l’art d’Occident” in Marie : Le culte de la Vierge

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se estabelecido a partir daquilo que foi apresentado como missão da Igreja, ou seja, a salvação das almas e a divulgação da fé, cabendo a todos os fiéis a submissão ao clero. Esses dois movimentos ocorreram num processo extenso e concomitante dentro da Cristandade, a qual se expandiu e gradativamente assumiu uma posição de hegemonia.

Dessa forma, a imagem da Virgem Maria teria adquirido uma importância capital, sendo tanto um exemplum para os fiéis na vida religiosa e no cotidiano secular, quanto como um signo relacionado às conexões que os governantes procuraram estabelecer aos seus domínios, tendo uma igreja ou abadia em que se abriga uma imagem ou relíquias tidas como milagrosas.

O cerne da importância crescente da figura de Maria se constitui a partir da interpretação paulina sobre a mensagem do Cristo e das primeiras representações iconográficas da Virgem. A exaltação da pessoa de Maria se manifesta no texto de Paulo como uma ação indireta, porém clara13, quanto ao cumprimento das antigas

profecias messiânicas, uma vez que o apóstolo, em sua epistola, ressalta o papel libertador de Jesus. Essa liberdade estava, todavia, condicionada às próprias características do cumprimento da Salvação, elevando o caráter espiritual do texto: a vinda do Messias e da Nova Aliança.

O primeiro dogma mariano diz respeito à Maternidade Divina e foi estabelecido pelo Concílio de Éfeso em 431. Definiu-se Maria como Theotókos (Mãe de Deus em grego), decisão sustentada pela interpretação da passagem bíblica da Visitação, na qual Isabel saúda Maria como “a mãe de seu Senhor”.14 E por outro lado, esse episódio é

decorrente da Anunciação15: Maria é a mulher humilde, pura, sendo saudada como

“cheia de graça”, seja pela concepção sublime e desprovida do concurso de um pai terreno, seja pelo destaque na via salvífica para a Humanidade.

13 Bíblia de Jerusalém Gl 4: 22-23: “Mas quando veio o cumprimento do tempo, enviou Deus o seu Filho, feito de mulher, feito sujeito à lei, para reunir os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos”. Ainda no mesmo texto, Paulo enfatiza a diferença das duas Alianças: “Porque está escrito que Abraão teve dois filhos, um de mulher escrava outro de mulher livre. Mas o que nasceu da escrava , nasceu segundo a carne, e o que nasceu da livre, nasceu por promessa.

14 PELIKAN, Jaroslav. Maria através dos séculos: seu papel na história da cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 34.

15 Bíblia de Jerusalém Lc 1: 26-28 : “E, estando Isabel no sexto mês, foi enviado por Deus o anjo Gabriel

a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão que se chamava José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. E entrando, pois, o anjo onde ela estava, disse-lhe: ‘Salve, cheia de graça, o Senhor está contigo!”

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Uma das mais antigas representações de Maria está nas paredes das catacumbas de Priscila, na Via Salaria Nova em Roma16 pintada em 150 d.C. . Outra representação

feminina presente nesta primeira iconografia é a orans, uma mulher apresentada em posição de oração: em pé, de braços abertos e levantados num gesto de súplica. Uma leitura possível deste gesto seria a alusão à prática da oração ou ainda uma representação da “alma” do morto sepultado. Posteriormente, entre os séculos II e V d.C., tanto na Cristandade latina quanto oriental17, surgiram imagens onde Maria se

encontrava na posição de oração, como por exemplo, a Virgem do Sinal18.

Considero que, dentre as fontes de referência para a elaboração da iconografia mariana, estavam presentes as deusas da Terra, deusas-mãe que constituíam o panteão greco-romano (Ceres, Cibele, Deméter, Vênus, Ártemis)19 entre outras de

vários povos dominados pelo Império Romano.

No caso de Chartres, o processo de conversão ao cristianismo envolveu a ressignificação das relações com o sagrado na então cidade romana de Autricum, pois uma antiga fonte cultuada pelos celtas foi aterrada e sobre ela se fez uma igreja, dedicada a Maria. Essa igreja foi depois ampliada e reconstruída várias vezes, dando origem ao edifício de arquitetura românica, no qual se construíram os vitrais a partir do século XII.

A planta da catedral de Chartres seguiu a tradição das basílicas romanas, organizada em formato de cruz latina - a longa nave central cortada pelo transepto. Ao se pensar numa dimensão simbólica, a estrutura cruciforme poderia ser interpretada como uma alusão ao corpo do Cristo crucificado, segundo Honorius Augustodunensis: a entrada representa os pés; o caminhar pela nave principal, em direção do altar, as pernas; e o tronco, cujos braços se constituem pelo transepto; e a cabeceira iluminada pelos

16 BELÁN, Kyra. Visages de Vierge du Moyen Âge aux temps Modernes. New York: Parkstone Press, 2001, p.08.

17 Enquanto a Igreja Católica Romana sedimentou e legitimou o papel de Maria utilizando a exegese bíblica e o poder papal para a proclamação solene dos dogmas, a Igreja Católica Ortodoxa manteve algumas divergências no último milênio, tendo um destaque especial para a questão dos Dogmas da Imaculada Conceição e da Assunção de Maria.

18 Trata-se de um tipo iconográfico presente na tradição cristã ortodoxa com grande intensidade. É a representação da Virgem Orante, ela nos aparece como a imagem da Mediadora entre os fiéis e Cristo, como a Intercessora, como o modelo de oração ou como a Suplicante, tal representação é identificada pelas mãos elevadas e com as palmas voltadas para os céus.

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vitrais, cuja direção é alinhada para o leste (direção de Jerusalém e do nascer do Sol) constitui a cabeça do Salvador20.

Nesse percurso pelo interior do templo, ou também, pelo caminhar simbólico sobre o corpo do próprio Cristo, os fiéis encontravam, nos vitrais, uma extensa narrativa. A catedral possui cerca de 2500m² de vitrais, compostos por 143 janelas (baias) e as 3 rosáceas (oeste, sul e norte) cada uma dotada de 37 vitrais (medalhões), representando assim, um dos maiores e mais bem preservados conjuntos de vitrais medievais21. A temática dos vitrais é a mais variada possível, abordando histórias

bíblicas, vidas de santos, história da realeza francesa, ou mesmo atividades do cotidiano.

Chartres, como outras catedrais góticas22, foi construída num período de crescimento

populacional e de transformação espiritual, dessa forma, a religiosidade deixou de ficar confinada nas abadias e mosteiros, passando a se manifestar de uma maneira mais coletiva e participativa23, o que tornou necessária a edificação de igrejas maiores

e localizadas nos centros urbanos.

A partir do século XII, a construção de grandes catedrais movimentou mestres construtores e diferentes tipos de artesãos, que muito provavelmente trabalharam em diferentes construções. Desse modo, penso que a elaboração de uma análise da relação entre a estrutura da catedral de Chartres e a posição de seus vitrais necessite

20 HANI, Jean. Le symbolisme du temple chrétien. Paris: Guy Trédaniel Editeur, 1989, 2ªed, p. 59; IOGNA-PRAT, Dominique. La Maison Dieu: une histoire monumentale de l’Église au Moyen Âge. Paris: Éditions du Seuil, 2006.

21 As pesquisas referentes aos vitrais medievais tiveram uma grande ampliação com a organização da série de estudos “Corpus Vitrearum France” que publicou o volume nº2, organizado por Colette Manhes-Deremble: Les vitraux narratifs de la cathédrale de Chartres – Étude iconographique.Paris: Léopard d’Or, 1993.

22 O termo gótico é uma classificação à posteriori. Sua constituição é ligada ao tópos do “valor dos tempos antigos e da degenerescência dos tempos atuais”. A ideia resultante de uma leitura negativa de alguns humanistas, como Petrarca no século XIV ao conceber uma “Idade do Meio” (media tempora) e depois afirmada no século XVI como, por exemplo, Giorgio Vasari (1511-1574), pois este se referia às construções arquitetônicas anteriores à sua época como feitas à “la maniera degli goti” (ao modo dos godos) e assim constituía uma categoria pejorativa para aquilo que não seguia os cânones da arquitetura greco-romana: “Ed in queste opere facevano tanti risalti, rotture, mensoline e viticci, che

sproporzionavano quelle opere che facevano, e spesso con mettere cosa sopra cosa, andavano in tanta alteza che la fine d’una porta tocava loro il teto. Questa maniera fu trovata da i Goti, che per aver ruinate le fabriche antiche e morti gli architetti per le guerre, fecero dopo, chi rimase, le fabriche de questa maniera, le quali girarono le volte con quarti acuti e riempierono tutta Italia di questa maledizzione di fabriche, che per non averne a far piú, s’è dismesso ogni modo loro.” VASARI, Giorgio. Torino: Einaudi,

1986, p.38-39.

23 VAUCHEZ, André. A espiritualidade da Idade Média ocidental: séc. VIII-XIII. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, 1a. edição.

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do cotejo com outros projetos de catedrais coevas, as quais são portadoras de significativa semelhança.

Para tanto, observarei no projeto arquitetônico da catedral de Notre-Dame de Chartres elementos comuns encontrados na catedral de Soissons, dedicada a São Gervásio e São Protásio; na catedral de Notre-Dame de Reims em virtude das semelhanças encontradas em suas plantas baixas, bem como, a proximidade geográfica e pelo fato de suas construções terem sido, a maior parte do tempo, contemporâneas24 e incluirei,

neste processo, a Sainte Chapelle de Paris, no intuito de pensar a coerência e organização de seu programa iconográfico.

O estudo do culto mariano, a partir das imagens dos vitrais de Chartres, tem como finalidade a tentativa de buscar o esclarecimento das seguintes questões:

Em primeiro lugar, a reflexão sobre a visão da Virgem Maria como a personificação da Igreja numa relação metonímica em virtude dos símbolos enunciados e da aura majestática (Auctoritas et Sedes Sapientiae)25; pois, neste caso, lida-se com uma das

formas de difusão das imagens de Maria, ação desenvolvida pelo clero na formulação doutrinal e, ao mesmo tempo, na esfera da devoção popular, que implicou inúmeras outras manifestações.

Em segundo lugar, ao se pensar na distribuição iconográfica dos vitrais, se a estrutura arquitetônica da catedral foi pensada a partir do uso da imagem da Virgem Maria em correlação com as reflexões neoplatônicas sobre a luz e sua metafísica, fato que teria interferido na concepção do espaço sagrado e neste caso, poder-se-ia elencar a importância da análise das categorias discursivas que sustentam a disposição das imagens: ordem, hierarquia, variedade, visibilidade, ornamentação, cor e luz.

Dessa forma, aponto uma terceira questão, consideradas as categorias supracitadas, a relação entre as representações marianas e a devoção desenvolvida implicaria a reflexão sobre a importância do tempo litúrgico junto à concepção do projeto da catedral, e daí o diálogo entre as horas canônicas dedicadas à Maria e os possíveis programas iconográficos.

24 SIMSON, Otto von. A catedral gótica: origens da arquitetura gótica e o conceito medieval de ordem. Lisboa: Editorial Presença, 1991, 1a. edição; TOMAN, Rolf. (org.) L’Art Gothique: architecture, sculpture

et peinture. Koln: Ed. Könemann, 1998, 1a. edição.

25 RÉAU, Louis. Iconographie de l’art chrétienne. Paris: PUF, 1957, 1ªed., Tomo II Iconographie de la Bible – Nouveau Testament, p.93.

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Tais programas encontram-se no centro de um debate historiográfico: houve ou não um conjunto de programas estruturados, no que diz respeito à iconografia mariana ? Os temas foram escolhidos com uma maior liberdade?

Proponho a construção de uma explicação que defenda a existência de um conjunto de programas, cuja justificativa estaria relacionada à visualidade, à arquitetura gótica e seu diálogo com a metafísica da luz, e a relação desta última com os elementos cultuais e litúrgicos, dedicados à Virgem Maria.

O corpus documental desta pesquisa envolve tanto fontes iconográficas (vitrais e iluminuras) quanto escritas, relacionadas direta ou indiretamente, com a devoção mariana em Chartres: os textos canônicos, apócrifos, homiléticos e hagiográficos. As referências bíblicas sobre a Virgem Maria foram consultadas na Bíblia de Jerusalém26 e nos evangelhos apócrifos27 no intuito de cotejar o contexto das

representações iconográficas e suas eventuais referências textuais.

As fontes presentes na Patrologia Latina estão relacionadas ao culto mariano, bem como ao universo intelectual e religioso das personagens da diocese de Chartres entre os séculos X e XIII: o bispo Fulbert de Chartres28 (970-1028), responsável tanto

pela reconstrução da catedral durante seu bispado (1006-1028) quanto pela produção de sermões que vivificaram o culto mariano em Chartres e na Europa; Yves de Chartres29 (1040-1116), bispo de Chartres (1090-1116), autor de diversos textos

teológicos e homiléticos; Guibert de Nogent30 (1055-1124), cuja produção homilética

celebrou a figura de Maria em grande intensidade; Suger de Saint-Denis31

(1081-1151), abade de Saint-Denis (1122-1151) e responsável por uma das principais obras de caráter reflexivo sobre a arte gótica; Bernard de Clairvaux32 (1090-1153),

26Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus Editora, 2002. 8a. impressão, 2012.

27 O Evangelho da Virgem Maria. Trad. Santiago Martin. São Paulo: Mercuryo-Paulus, 2003; O

Evangelho de Maria: Miryam de Mágdala. Tradução e comentários Jean-Yves Leloup. Petrópolis:

Editora Vozes, 2006.

28 FULBERT DE CHARTRES. Sermones ad Populum, Transcrição MIGNE, Jacques Paul. Patrologiae Latina, CLVI col. 317-352, 1855.

29 YVES DE CHARTRES. De Nativitate Domini. MIGNE, Jacques Paul. Patrologiae Latina, CLXII col. 568-571, 1855.

30 GUIBERT DE NOGENT. De Laude Sanctæ Mariae. MIGNE, Jacques Paul. Patrologiae Latina, CLVI col. 537-579, 1855.

31 O Segundo Livro sobre a consagração da igreja de Saint-Denis. (Trad.) RABELO, Marcos Monteiro.

In O abade Suger, a igreja de Saint-Denis e os primórdios da arquitetura gótica na Île-de-France do

século XII . Dissertação de Mestrado. IFCH-Unicamp, 2005.

32 Sermões para as Festas de Nossa Senhora. (Trad.) PINTARELLI, Ary. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

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responsável por uma ampla gama de sermões dedicados à devoção mariana, cuja influência atingiu toda a Cristandade.

Apesar de um fecundo debate entre as ordens de Cluny e Cister em virtude de suas distintas concepções artísticas, respectivamente representados por Suger e Bernard de Clairvaux, não tive o objetivo de explorá-lo, porque meu interesse em Bernard foi observar a influência de sua produção homilética na iconografia de Chartres; e quanto a Suger, o interesse recaiu sobre suas reflexões relativas à metafísica da luz e seu papel na arquitetura gótica.

Optei pela busca dos textos de Dionísio Pseudo-Areopagita33 (c. Séc.VI),

constantemente citados na bibliografia consultada, como uma fonte para o pensamento artístico e estético de Suger quanto à importância da luz no templo, no intuito de poder traçar um percurso mais detido sobre as influências da discussão neoplatônica ligada à metafísica da luz e seus desdobramentos para a concepção das catedrais a partir do século XII.

Pude consultar, in loco, um conjunto de fontes eclesiásticas para a composição do

corpus documental desta pesquisa:

a) um manuscrito34 escrito em latim eclesiástico e datado do século XIII, que

pertencera à biblioteca do Capítulo da Catedral de Notre-Dame de Reims, o qual fora confiscado durante a Revolução Francesa e passou à guarda do governo municipal

de Reims.

A consulta deste manuscrito pode oferecer dados sobre a liturgia e devoção no contexto do século XIII, especialmente com a identificação do louvor aos santos de Chartres em Reims, bem como, o culto dedicado à Virgem Maria em Reims, por conseguinte, em Chartres.

b) um manuscrito35 datado do primeiro quartel do século XII, um missal, escrito em

latim eclesiástico, oriundo da abadia de Saint-Père de Chartres, que posteriormente fora levado para o Colegiado de Saint-Etienne de Troyes e hoje se encontra sob a guarda da Biblioteca Municipal de Troyes.

33 Dos nomes divinos. (Trad.) SANTOS, Bento Silva. São Paulo: Attar Editorial, 2004; A teologia mística. (Trad.) LELOUP, Jean-Yves. Petrópolis: Editora Vozes, 2013; A Hierarquia Celeste. (Trad.) ZWILLING, Carin. São Paulo: Polar Editora, 2015.

34 Ms. 342 Pontificale ad usum ecclesiae beatae Mariae Remensis (c. Séc. XIII). 35 Ms. 894 Missel de l’abbaye Saint-Père de Chartres.

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O conteúdo desse missal envolve o registro da liturgia local, com ênfase ao culto mariano (registro de uma missa dedicada à Virgem Maria) e aos santos chartrenses, entre outros.

c) Dois manuscritos36 relacionados à catedral de Sens: um livro de cantos litúrgicos

datado da segunda metade do século XIII e um missal do final do século XII, ambos escritos em latim eclesiástico, que pertenceram ao Capítulo de Sens e depois foram destinados à Biblioteca Municipal de Sens a partir da Revolução Francesa.

Quanto à fortuna crítica, destaco aqui trabalhos de relevância sobre a catedral de Chartres, produzidos desde 1850, assinalando o início da organização de trabalhos monográficos que se tornaram referência obrigatória, pois inventariaram uma extensa documentação, presente nos acervos públicos ou eclesiásticos.

Parto da monografia do abade Marcel-Joseph Bulteau37, cônego de Chartres

(1845-50), que organizou um trabalho de descrição estrutural da catedral (arquitetura, escultura, pintura e vitrais) em 1850.

Posteriormente à consulta dos cartulários, então presentes nos arquivos municipais e da diocese, Bulteau complementou seu trabalho inicial com a ajuda do abade Charles-Ernest Brou (cônego de Chartres entre 1869 e 1893), e assim a monografia inicial ganhou mais dois volumes, complementada por uma bibliografia organizada38.

Quanto aos vitrais, os escritos de Bulteau e Brou são extremamente sucintos, dando uma ênfase maior à arquitetura e à escultura, sem realizar nenhum tipo de classificação e muito menos, análise dos vitrais. O caráter descritivo e informativo esteve presente também em outros trabalhos dos fins do século XIX e primeira década do XX39.

Em 1926, houve a contribuição extremamente significativa de Yves Delaporte, cônego de Chartres (1927-1979). Embasado no levantamento já efetuado por Bulteau e Brou e acrescentando outras fontes a partir dos acervos40 da Biblioteca Municipal de

36 Respectivamente, o Ms. 7 – Processionnal de la Cathédrale de Sens e o Ms. 15 – Missel à l’usage de la cathédralde de Sens.

37 BULTEAU, Abbé. Monographie de la Cathédrale de Chartres.Chartres: Librairie R. Selleret, 1850, 1ª ed.

38 BULTEAU & BROU, Abbés. Monographie de la Cathédrale deChartres. Chartres: Société

Archéologique d’Eure et Loir, 1887, 2ª ed., 3 tomos; SAINSOT, Abbé Gustave Xavier. Bibliographie

détaillée de la Cathédrale de Chartres.Société Archéologique d'Eure-et-Loir, Chartres, 1889. (BDC)

39 MÉLY, Fernand de. Étude iconographique sur les vitraux du XIIIe siècle de la cathédrale de Chartres.

Paris/Bruxelles: Edouard Champion Librarie/Desclee De Brouwer et Cie. Revue de l’art chrétienne n°38, 1888, p.413-428.i

40 Dada a escassez de fontes primárias relativas ao período medieval em Chartres em virtude da destruição dos Arquivos Municipais durante a expulsão dos alemães em 1944, quanto aos vitrais, estes

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Chartres, realizou um trabalho mais extenso e de caráter reflexivo sobre os vitrais da catedral, dando-lhe uma classificação numérica, referência para a realização de pesquisas posteriores até a organização do Corpus Vitrearum da França41.

O resultado do trabalho de Delaporte42 foi a publicação de um conjunto de quatro

volumes, sendo três exclusivamente de fotos dos vitrais e um volume de texto, onde, além da classificação numérica, encontramos a identificação temática dos vitrais, a organização de uma periodização, além das referências sobre restaurações até então realizadas. O texto também oferece uma curta síntese da história da catedral e da cidade como um todo, uma vez que se encontram entrelaçadas.

Entre 1946 e 1963, os trabalhos de Delaporte versaram sobre os vitrais especificamente, mas na forma de pequenas monografias43, destacando-se “Les Trois Notre-Dame de la cathédrale de Chartres”, na qual fez um estudo sobre as três mais

conhecidas imagens da Virgem na catedral (Notre-Dame de Sous-Terre, Notre-Dame

du Pilier e Notre-Dame de la Belle-Verrière) e enumerou as outras imagens de Maria

presentes em vitrais e também nas esculturas (no interior e exterior) na igreja.

Na condição de referência no contexto das discussões metodológicas sobre a interpretação das imagens, encontramos Émile Mâle44, o qual analisou a produção

artística religiosa como um resultado unilateral das prerrogativas clericais, responsáveis por uma homogeneidade no comportamento social medieval.

Numa monografia dedicada à catedral de Chartres, Mâle elaborou uma síntese histórica sobre a igreja, na qual incorporou suas proposições sobre a iconografia cristã; sugerindo, mais uma vez, a leitura da catedral como fruto de uma ação deliberativa e exclusiva dos clérigos. Estes últimos, ao contratarem os artesãos, direcionavam arbitrariamente todo o processo de elaboração dos programas

só sobreviveram aos combates da II Guerra Mundial pelo fato de terem sido retirados e guardados em 1939 em lugar seguro, sendo repostos devidamente depois de 1945.

41 O Corpus Vitrearum é um inventário dos vitrais presentes em inúmeros monumentos (religiosos e laicos) que foi organizado a partir de 1950, sendo que cada país europeu teria uma equipe de especialistas responsável pela localização, catalogação e estudo dos respectivos conjuntos. No caso da França, seu idealizador foi Louis Grodecki, autor do primeiro volume francês do inventário: GRODECKI, Louis. Les vitraux de Notre-Dame et de la Sainte-Chapelle, Paris, Corpus Vitrearum Medi

Aevi, CNRS, 1959. Sobre os vitrais da catedral de Chartres, a responsabilidade coube à Colette

Manhes-Deremble.

42 DELAPORTE, Chanoine Yves. Les vitraux de la cathédrale de Chartres : historique et description. Chartres: Éditons Houvet, 1926, 04 volumes.

43 DELAPORTE, Chanoine Yves Les Trois Notre-Dame de la cathédrale de Chartres. Chartres: Éditions Houvet, 1965, 2ª ed.; DELAPORTE, Yves. La cathédrale de Chartres et ses vitraux. Paris: Ed. du Chêne, 1946.; DELAPORTE, Yves. L’art du vitrail aux XIIe et XIIIe Siècle. Chartres: Éditions Houvet, 1963.

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iconográficos, fazendo do templo uma execução tridimensional da teologia; entendendo, portanto, a catedral como se fosse “a disposição em pedra” dos textos de Vincent de Beauvais45 em seu Speculum Historiale.

Especificamente voltado aos vitrais de Chartres, a referência primordial foi a pesquisa de Louis Grodecki46, a qual consistiu num grande avanço da identificação, catalogação

e periodização de Yves Delaporte, pois realizou um aprofundado estudo sobre os vitrais, sua fabricação e seus elementos estilísticos ao longo de sua produção; levantando, assim, as hipóteses para a possível (mas nem sempre) identificação dos ateliês que trabalharam em Chartres, bem como a elaboração de uma cronologia para os vitrais.

Grodecki fez a distinção47 entre os vitrais românicos remanescentes do incêndio de

1194 e os demais que foram fabricados ao longo do século XIII, percebendo uma influência do traço ou estilo: a composição formal dos primeiros fornecendo uma inspiração na execução dos segundos. Esse fato permitiria levantar a possibilidade de um grupo de ateliês (pelo menos seis) que tenham trabalhado em conjunto, muitas vezes numa mesma baia.

Seguindo a mesma linha de pesquisa, no estudo estilístico e formal sobre os vitrais, Claudine Lautier, envolvida com os processos de restauração, entre 1974-1976, procurou também estabelecer uma cronologia para os vitrais tendo, no entanto, em alguns momentos, uma posição diferente da apontada por Grodecki, como por exemplo, no caso dos vitrais românicos da fachada ocidental, que teriam sofrido perdas no incêndio de 1194 e teriam sido restaurados com a reconstrução da catedral. Outra divergência de Lautier48 em relação aos estudos de Grodecki está na possível

identificação dos ateliês, demonstrando que, em grande parte dos casos, os artistas utilizavam diferentes modelos e que eles conservavam sua expressão artística própria, fator que possibilitaria a compreensão de múltiplas sutilezas, mesmo que fosse um trabalho coletivo entre os mestres-vidreiros e seus aprendizes.

45 SCHNEIDER, Jean. Recherches sur une encyclopédie du XIIIe siècle: le Speculum majus de

Vincent de Beauvais. Dans «Comptes rendus des séances de l’année 1976», Académie des

Inscriptions et Belles-Lettres, Paris 1976, p. 174-189.

46 GRODECKI, Louis. A Stained Glass Atelier of the 13th century: a study of Windows in the Cathedrals

of Bourges, Chartres and Poitiers in Journal of Warburg and Courtauld Institutes, 11, 1948, p. 87-111.

47 GRODECKI, Louis. La chronologie des vitraux de Chartres in Bulletin Monumental 122, 1964, p. 99-103.

48 LAUTIER, Claudine. Les peintres-verriers des bas-côtes de la nef de Chartres au début du XIIIe siècle, Paris: Bulletin Monumental, nº 148, 1990, p. 7-45.

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Uma questão extremamente importante sobre os vitrais de Chartres é a discussão da existência ou não de um conjunto de programas iconográficos para a organização do que está representado nos vitrais e em que termos. Não só por esse aspecto, mas também pelo significativo número de trabalhos49 sobre os vitrais de Chartres, destaco

o estudo de Colette Manhes-Deremble, pois ela foi a responsável pela elaboração do volume dedicado a Chartres no projeto Corpus Vitrearum50.

Uma primeira hipótese, levantada por Manhes-Deremble51, é calcada na especulação

sobre a ideia de uma organização litúrgica a partir do calendário das festas dos santos, presentes nos manuscritos hagiográficos a qual poderia ter sido uma referência para a disposição dos vitrais.

A segunda hipótese pensada por Manhes-Deremble é o jogo de oposições simbólicas entre macrocosmos/microcosmos, norte/sul e leste/oeste, que também colaborariam para a disposição dos vitrais, além da oposição entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento.

Manhes-Deremble apresenta, como terceira hipótese, a ordem dos temas dos vitrais, que estaria relacionada à fusão entre elementos do culto local e os interesses pedagógicos do clero, fazendo com que alguns vitrais estivessem ligados do ponto de vista temático, compondo séries maiores ou menores e, nesse caso, permitindo associações tradicionais ou inéditas por parte de quem os observasse.

Entendo que, ao estudar o culto mariano e a organização de uma cultura visual na catedral de Chartres a partir de seus vitrais, urge fazer uma busca pelas relações imagéticas entre si e destas com o espaço da catedral, cujos referenciais litúrgicos e teológicos podem referendar as reflexões sobre a devoção mariana por meio de uma chave de leitura sustentada numa tríade articulada entre teologia, liturgia e arte sacra na sociedade medieval52.

49 MANHES-DEREMBLE, Colette. et DEREMBLE, Jean-Paul. Le vitrail du bon Samaritan: Chartres,

Sens, Bourges. Paris: Ed. Le Centurion, 1986; Les vitraux légendaires de Chartres: Des récits en images. Paris: Desclée de Brouwer Ed., 1988; MANHES-DEREMBLE, Colette. “Le vitrail gothique de la Passion à la Cathédrale de Chartres: Questions de typologie” in Monde medieval et société

chartraine, Actes du Colloque, 8e Centenaire de la Cathédrale 1194-1994, Éditions Picard, 1994; MANHES-DEREMBLE, Colette. et DEREMBLE, Jean-Paul. Vitraux de Chartres. Paris: Ed. Zodiaque, 2003, 1ªed.

50 MANHES-DEREMBLE, Colette. “Corpus Vitrearum France” Les vitraux narratifs de la cathédrale de

Chartres. Paris: Le Léopard d'Or, 1993,vol. II

51 MANHES-DEREMBLE, Colette. “Corpus Vitrearum France”, p.38-39.

52 ELLARD, Peter. The Sacred Cosmos: Theological, Philosophical, and Scientific Conversations in the Twelfth Century School of Chartres. Chicago: University of Chicago Press, 2008.

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A devoção envolve conteúdos cognitivos e afetivos, não sendo necessariamente um fenômeno uniforme, por mais que a Igreja o pretendesse. É exatamente nesse ponto nevrálgico que se encontra o processo de elaboração das representações marianas: numa fronteira muito tênue daquilo que é a área estável (sob o controle da ortodoxia) e o que está na área instável (recepção pelos fiéis).

Para a reflexão sobre a dimensão devocional e litúrgica, recorri às pesquisas que pudessem direcionar o debate que observa as sutilezas da elaboração das imagens do sagrado feminino53 no universo católico dos séculos XII e XIII como um processo

dinâmico e difuso ao se registrarem distintas devoções, geralmente vinculadas a aparições e/ou milagres de determinada imagem em pontos distintos da França54,

bem como em vários outros pontos da Europa.

O plano desta dissertação contempla três capítulos: o primeiro, “Notre-Dame de Chartres”, destina-se ao histórico da catedral: uma breve narrativa sobre a construção da catedral e sua ampliação. A atenção maior estará voltada para os vitrais (datação e restaurações).

O segundo capítulo, “Luz, Imagem e Visualidade”, prioriza o papel da imagem no espaço sagrado, no qual apresento a relação da arquitetura gótica com a metafísica da luz a partir da análise do pensamento de Dionísio Pseudo-Areopagita e de Suger de Saint-Denis.

No terceiro capítulo, “A luz, a liturgia e as horas da Virgem”, apresento a relação das horas canônicas dedicadas à Virgem, apontando como estas se fazem presentes nos vitrais da catedral de Chartres e como a questão da luminosidade se articula no campo imagético, teológico e litúrgico. Concluído esse percurso, apresentarei as considerações finais.

53 KATZ, Melissa & ORSI, Robert (org.) Divine mirrors: The Virgin Mary in the visual arts. Oxford: Oxford University Press, 2001; RUBIN, Miri. Emotion and Devotion: The Meaning of Mary in Medieval Religious Culture. New York: CEU Press, 2009;FASSLER, Margot E. Virgin of Chartres: Making History through Liturgy and the Arts. Yale: Yale University Press, 2010; ROTHENBERG, David J. The flower of Paradise: Marian Devotion and Secular Song in Medieval and Renaissance Music. Oxford: Oxford University Press, 2011; RITCHEY, Sara. Holy Matter: The Re-Creation of the World in Later Medieval Christianity. Ithaca: Cornell University Press, 2014. (INHA)

54 Santuários como Chartres existiam em vários lugares da França: Longpont, Auxerre, Châlons-sur-Marne, du Puy, Rocamadour, entre outros, os quais anteriormente ao cristianismo foram dedicados à Cibele, Isis e outras deusas-mães por diferentes culturas.

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Capítulo I: Notre-Dame de Chartres

“O que explica que o belo tenha sido percebido pelos homens do século XII como o claro, o luminoso, o brilhante? A obra de arte surge do escuro. Ela o renega. Ela é um jorro em direção da luz, isto é, da mais sensível manifestação do divino. Através dela se realiza a junção entre o céu e a terra, assim como do ético com o estético, pois o belo se liga ao bom, ao verdadeiro, ao puro.”55

Georges Duby. São Bernardo e a Arte Cisterciense

O presente capítulo tem por objetivo desenvolver uma breve narrativa relacionada à cidade de Chartres, às várias reconstruções pelas quais a catedral passou, destacando-se a igreja que foi construída após o incêndio de 1194, para fazer a apresentação do conjunto dos vitrais, acompanhados de suas respectivas datações e restaurações.

A riqueza imagética e a grandeza do templo podem também ser interpretadas, ao se apontar o conjunto de transformações do papel das cidades no medievo. O crescimento econômico, materializado na expansão das terras cultiváveis, incentivou a criação de muitos vilarejos, a fim de fixar comando sobre as “novas” terras. Segundo Duby, houve dois momentos, com características diferentes cada um deles, no processo de surgimento de novos agrupamentos humanos a partir do século XI. O primeiro, praticado por volta do ano mil, consistiu-se em iniciativas camponesas de assentamento em terras que margeavam os limites agrícolas até então vigentes; ou em migrações espontâneas, que levaram populações de uma área para outra da Europa.

O caráter autônomo desse movimento é explicitado pelo autor: “alguns vilarejos assim se formaram por eles mesmos.”56 O segundo, crescente no século XII (mas de modo

algum ausente anteriormente), foi marcado pela iniciativa de senhores, os eventuais proprietários das terras onde as novas aglomerações se formavam.57 Os interesses

jurídicos e tributários permitem entender porque alguns aristocratas, laicos ou eclesiásticos, lançaram-se, muitas vezes em pariage, em tais empreitadas. Visando

55 DUBY, Georges. São Bernardo e a Arte Cisterciense. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 10-11. 56 “Quelques villages ainsi se formèrent d’eux-mêmes.” DUBY, Georges. L'économie rurale et la vie

des campagnes dans l'Occident médiéval (France, Angleterre, Empire, IXe- XVe siècles). Essai de synthèse et perspectives de recherches. Paris: Aubier, 1962, p. 160.

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atrair um número maior de pessoas para uma dada localidade e assim aumentar sua renda proveniente daquele espaço. O senhor local passou a garantir a paz por meio de instrumentos jurídicos. Com essa segurança, ainda que relativa, uma vez que a população continuaria sujeita à violência de seus próprios senhores, foi possível, por um lado, criar novos assentamentos em lugares ermos onde saques e assaltos eram frequentes e, por outro, aumentar o número de habitantes de um determinado núcleo habitacional já existente.

Observo, então, o crescimento urbano dos séculos XI-XIII, questão bastante conhecida pela historiografia, mas que me interessa aqui somente na medida em que tal espaço surge, de certo modo, contraposto ao mundo rural.

O distanciamento entre o mundo rural e o urbano, que alguns documentos claramente trazem aos historiadores, não deve fazê-lo confundir com a cisão hoje existente. A cidade era também um espaço agrícola. Ela não estava completamente apartada do mundo rural que a circundava. Esses dois meios se fundiam, sendo até mesmo difícil apontar seus limites no âmbito espacial. “A cidade medieval é toda ela penetrada pelo campo. Os habitantes levam aí uma vida semi-rural no interior de muralhas que albergam vinhas, hortas e até prados e campos cultivados, gado e estrume”.58 A

despeito dessa afirmação, o meio urbano apresenta em si uma organização diferenciada em relação ao campo. Foi no meio urbano que se instalaram as oficinas artesanais, sobretudo a têxtil, e o comércio. Na cidade, concentrava-se um número cada vez maior de práticas econômicas.

Uma vez que as generalizações a respeito da velocidade e da intensidade com que as aglomerações se organizaram escamoteiam as diferenças regionais desse processo, tratarei especificamente da cidade de Chartres.59

A partir de 1070, essa cidade começou a crescer rapidamente, processo que durou mais de um século, quando as muralhas que circundavam a aglomeração tiveram de ser ampliadas. Os ofícios têxteis constituíam a grande força produtiva chartrense. Eles aparecem mencionados ao longo de todo século XII às margens do Eure, região que já concentrava boa parte da população. De fato, toda a parte sudeste da cidade aproveitava as águas para movimentar moinhos e tingir tecidos. A essas profissões se juntaram outras como, vidreiros, curtidores, taberneiros, peleteiros e forjadores que

58 LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2005, p. 294.

59 CHEDEVILLE, André. Chartres et ses campagnes XIe-XIIe siècles. Chartres : Garnier, 1991. p. 411-504.

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se organizaram em corporações a fim de garantir seus interesses. Porém, o poder condal se impunha, de modo significativo, sobre essas corporações de ofícios pelo fato de nomear seus mestres.

A produção atendia às necessidades locais. Não há muitas menções aos produtos chartrenses em feiras distantes. A cidade estava fora das principais vias comerciais medievais. Outro indício da modesta importância econômica dessa região no comércio inter-regional do período é o fato de a moeda local não possuir grande valor de troca quando comparada, por exemplo, ao denário angevino. Tais limitações não impediram, de forma alguma, o estabelecimento de feiras importantes dentro das muralhas. As atividades comerciais se localizavam na região sudoeste, onde habitavam homens de diferentes ofícios e onde foi estabelecido o mercado. No período, não é possível separar completamente o artesão e o comerciante. Aquele que fazia era o mesmo que vendia o produto. Havia, portanto, um mercado interno de considerável pujança, alimentado, sem dúvida, pelos peregrinos que buscavam a catedral cotidianamente e, principalmente, nos dias santos, quando, não por acaso, aconteciam as maiores feiras.

Por esses motivos, a burguesia de Chartres, diferentemente da de Flandres, ou da italiana, era mais administrativa do que comercial. A cidade estava governada pelo conde, através de seu preboste, exceto a área da catedral e dois burgos (Muret e Saint-Père). Apesar disso, ao longo do século XII, gradativamente, a população urbana alcançou relativa liberdade com cartas de franquia, o que pode ser visto como um processo de consulta aos citadinos sobre alguns contextos. Os clérigos detinham certas ressalvas ao universo urbano dada à sua proximidade com o dinheiro e suas tentações. Todavia, o motor desse processo de tensão estava relacionado, pelo menos até 1150, aos interesses comuns dos condes de Chartres e à burguesia local, que por vezes se via contemplada tendo alguns dos seus nomeados para o cargo de preboste. A efervescência urbana, nesse contexto de meados do século XII, promovia alguns focos de animosidade entre o Capítulo da catedral e o poder condal, reflexos de um burgo em expansão.

Chédeville explica que a prosperidade chartrense tinha um epicentro: “Na realidade, Chartres deveu seu brilho a seu santuário, lugar venerado de peregrinação.”60 O

caráter religioso relacionado à cidade fomentou dois aspectos que vieram agregar

60 “En réalité, Chartres dut son rayonnement à son sanctuaire, lieu vénéré de pèlerinage.” in CHEDEVILLE, André. Chartres et ses campagnes XIe-XIIe siècles. Chartres : Garnier, 1991, p. 507.

Referências

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ter se passado tão lentamente como muda uma montanha, aos nossos olhos eternamente parada e cujas mudanças só são percebidas pelos olhos de Deus” (DOURADO, 1999, p.