• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 REFLEXÕES SOBRE O CONSENTIMENTO LIVRE E

4.1 O instituto no direito comparado

4.1.1 Living Will: a realidade estadunidense

Conforme mencionamos, as Diretivas Antecipadas de Vontade surgiram nos Estados Unidos, no ano de 1967, sob a denominação living will. Sua origem está ligada à Sociedade Americana para a Eutanásia, que adotou e disseminou a ideia de utilização de um documento no qual a pessoa poderia expressar sua vontade com referência a cuidados futuros de saúde, demonstrando seu desejo de não receber intervenções médicas de manutenção da vida.7

A evolução do instituto teve importante colaboração de Louis Kutner, um advogado que no ano de 1969, propôs um novo modelo com o escopo de evitar conflitos na relação médico-paciente, envolvendo pacientes terminais e seus familiares. O documento versava acerca de decisões prévias sobre os tratamentos pelos quais eram submetidos pacientes que padeciam de doença em estágio terminal.8

O advogado defendeu a existência do documento que, além de bastante claro, satisfazia quatro importantes finalidades: a) auxiliar no julgamento jurídico de processos envolvendo homicídio privilegiado por relevante valor moral e homicídio qualificado por motivo torpe, servindo como prova da conduta; b) preservar a autonomia e autodeterminação do paciente que deseja morrer; c) servir como instrumento de declaração de vontade, segundo o qual o paciente manifesta seu desejo de morrer, inclusive na eventualidade de futura incapacidade de expressar seu consentimento; e d) representar uma garantia do cumprimento futuro da vontade do paciente.9

A primeira disposição legal sobre o instituto foi o Natural Death Act, elaborado na Califórnia, pela Faculdade de Direito da Universidade de Yale. Após sua aprovação, algumas associações médicas locais elaboraram um Guidelines and Directive, com objetivo de orientar a conduta médica frente às diretivas.10

A norma exige que seu subscritor seja uma pessoa maior e capaz, portanto exige capacidade e discernimento, são necessárias também duas testemunhas que devem presenciar o ato. O documento ganha eficácia 14 dias após sua lavratura. A diretiva tem validade limitada ao prazo de cinco anos, período a partir do qual necessita ser renovada. As diretivas não serão válidas durante o período de gravidez. A revogação do documento pode ser

7 LEÃO, Thales Prestrêlo Valadares. Da (im)possibilidade do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3626, 5 jun. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/24638>. Acesso em: 23 jun. 2014.

8 KUTNER, Louis. Due process of euthanasia: the living will, a proposal. Indiana Law Journal, Bloomington, v. 44, p.539-554, 1969.

9 Ibid.

efetuada a qualquer tempo. Como particularidade, a lei exige que o estado de terminalidade seja atestado por dois médicos.11

As testemunhas não podem ter vínculos sanguíneos ou matrimoniais com o declarante, nem mesmo serem beneficiárias de quinhão sucessório de qualquer natureza, situações em que estarão impedidas de participar do ato. O médico assistente, pessoas vinculadas ao médico assistente, ou ao estabelecimento de saúde em que o declarante é um paciente também não poderão figurar como testemunha.

A lei entende que pessoas maiores e com discernimento têm direito de decidir quanto ao recebimento de cuidados de saúde, incluindo a decisão de retirar ou suspender tratamento de suporte de vida, nas hipóteses de doença terminal acompanhada de condição de inconsciência permanente. Desta forma, preserva a autonomia do paciente em relação ao prolongamento do processo de morte, pois acredita que o avanço biotecnológico na área médica tornou possível dilatar artificialmente a vida humana, além dos limites naturais.

Enfim, a norma reconhece a Diretiva Antecipada de Vontade, com escopo de instruir a equipe médica a manter ou suspender tratamento de suporte de vida no caso de doença terminal.

A lei também reconhece a figura do mandatário ao estabelecer a respeito da possibilidade da pessoa escolher um representante para controlar as questões referentes à sua saúde, o denominado procurador de cuidados de saúde.

A elaboração da lei californiana serviu de inspiração para o reconhecimento por outros estados norte-americanos do living will.

Anos depois, em 1991, por meio do caso Cruzan, o living will foi analisado pela primeira vez em um tribunal estadunidense. Nancy Cruzan sofreu um acidente automobilístico e ficou em estado vegetativo persistente. A família de Cruzan requereu a interrupção de procedimentos de nutrição artificial que a mantinham viva, o caso teve grande repercussão e causou comoção na sociedade americana.12

Devido ao clamor público gerado pelo caso Cruzan, as Diretivas Antecipadas de Vontade do Paciente ganharam importância no país, que aprovou a primeira lei federal que

11 BAUDOUIN, Jean-Louis; BLONDEAU, Danielle. Éthique de la mort et droit à la mort. Paris: Press Universitaires de France, 1993.

12 MARKUS, Karen. The law of advance directives. Disponível em: <http://www.scu.edu/ethics/publications/ iie/v8n1/advancedirectives.html>. Acesso em: 23 jun. 2014.

dispunha sobre o direito de autodeterminação do paciente, o Patient Self-Determination Act (PSDA).13

O Patient Self-Determination Act (PSDA), embora seja uma lei federal dever ser interpretada apenas como uma diretriz que estabelece conceitos e versa sobre algumas questões específicas, que devem ser tratadas de modo semelhante em todo território americano, vez que trinta e cinco estados dos Estados Unidos já legislaram sobre o living will.14

Naquele país, o paciente ao dar entrada em algum dos centros de saúde deve ser informado sobre seus direitos enquanto paciente, entre eles o de expressar sua vontade quanto a opções de adesão, ou recusa, a procedimentos e terapias na hipótese de incapacidade superveniente de manifestar seu consentimento. Esse documento recebe o nome de Advance Directives, que no Brasil recebe o nome de Diretivas Antecipada de Vontade15, documento em que o paciente manifesta sua autodeterminação. As Advance Directives são gênero, que apresentam três espécies: Living Will; que corresponde a declaração prévia para o fim da vida; Durable Power of Attorney for Health Care, semelhante ao mandato duradouro16, que nomeia representante para administrar a saúde; e o Advanced Care Medical Directive.17

Discute-se, nos Estados Unidos, a ampliação das diretivas de vontade, propondo que não fiquem restritas aos pacientes terminais, mas que abranjam de modo indistinto todos os pacientes, por meio do Advanced Care Medical Directive, ou planejamento antecipado de tratamentos médico-hospitalares, segundo o qual, por meio do mandato duradouro.18 Nessa hipótese, o representante de saúde nomeado será responsável por cumprir a vontade determinada no Advanced Care Medical Directive e, na omissão do documento, o mandatário expressará, com base em seu convívio com o mandatário, qual seria a vontade do outorgante, caso pudesse manifestá-la.

13 PENALVA, Luciana Dadalto. As contribuições da experiência estrangeira para o debate acerca da legitimidade do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 17, 2008, Brasília. Anais .... Brasília, DF: CONPEDI, 2008. p. 516-538.

14 EMANUEL, Ezekiel J.; EMANUEL, Linda L. Living wills: past, present, and future. The Journal of Clinical

Ethics, Hagerstown, v.1, n.1, p.1-19, 1990.

15 Assunto que será tratado a continuação.

16 Previsto nas resoluções brasileiras, que será abordada a continuação.

17 NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Da relação jurídica médico-paciente: dignidade da pessoa humana e autonomia privada. In: SÁ, Maria de Fátima Freire de (Org.). Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. v. 1