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3. SOBRE LIVROS DE ARTISTA

3.4. DERIVAÇÕES POÉTICAS

3.4.2. Livro-obra

Quando constrói seus livros, Lygia Pape não faz uso de uma única palavra. Esta é uma postura que é utilizada em outras escalas, que vão da negação de uma necessidade linguística, até a dissolução da palavra enquanto imagem e aparato semântico. A diminuição da necessidade de uso da palavra em livros de artista é possível ser percebido ao olharmos o suceder histórico. Iniciemos com o exemplo de Ruscha. Edward Ruscha, artista norte americano, produziu em 1962 o livreto Twentysix Gasoline Stations, onde compila fotografias de postos de gasolina ao longo de seu país e sem a presença

humana. Neste trabalho, o artista nos apresenta as imagens juntamente com legendas, que se destinam a designar o onde e quando das fotos. Neste caso, a palavra se encontra subordinada à imagem, já que sua função narrativa é mesmo pragmática dentro da relação estabelecia no livro, de localizar o percurso do artista. Do mesmo artista, o livro Crackers (1969), é construído apenas com a palavra que compõe seu título.

A quantidade mínima de palavras, e seu valor, dentro de proposições artísticas que possuem no livro seu aporte material podem ser menores do que um (SILVEIRA, 2007). Esta pode esmaecer, ser etérea, gradualmente perder sua forma visual, sua forma semântica, e deixar de ser o que é. Do ponto de vista linguístico, se não for mais possível atribuir um som ou significado, quando não puder mais se construir um enunciado, quando não mais puder ser lida, a palavra deixa de ser palavra. Poderá se tornar uma outra coisa que foi ou irá ser uma palavra. Para que haja sua compreensão, se faz necessário ler seu entorno, seu contexto, “porque ele determinará a forma, indicará a serialidade, sugerirá um sentido de direção, proporá um ritmo” (SILVEIRA, 2007, p. 476).

Observando o trabalho de Waltercio Caldas, intitulado Velázquez, de 1996, podemos clarear um pouco nossa ótica sobre tais possibilidades: supressão da palavra no livro; construções de livros-obra; apropriação dentro de construções de livros de artista.

O trabalho, ao qual nos referimos, é um livro-obra que emula livros de luxo – como os grandes livros de mesa -, cujas biografia e análise de obras são tratadas em um exemplar de grande formato e geralmente com excelente qualidade de reprodução de imagens. Estas obras são frequentemente monográficas e destinadas ao leitor que gostaria de um acesso rápido à obra de um determinado artista ou à arte de alguma tendência. Nesta obra, Waltercio Caldas retira todo o foco das páginas; folha após folha, o texto não pode mais ser lido, e das imagens, é suprimida toda e qualquer representação humana. A palavra some. O humano some. O livro não pode mais ser lido enquanto obra literária, enquanto texto apenas. Se a palavra só é palavra enquanto pode ser lida, as imagens continuam imagens, mesmo desfocadas. Estas, por sua vez, devido sua possibilidade em se tornar ícone, possivelmente pode ser reconhecida por seus arranjos de cor e algumas formas ainda

Figura 24 - Edward Ruscha, Crackers (1969).

Fonte: Disponível em: <http://www.johandeumens.com/artists/59-ed- ruscha/artworks/711-ruscha-edward-->mason-williams-crackers.html>.

Figura 25 - Waltercio Caldas, Velázquez (1996)

reconhecíveis. Este reconhecimento se daria pela memória do “leitor”, que teria que possuir um repertório relativamente específico da obra de Velásquez. Mesmo que a invisibilidade neste caso não negue a existência do conteúdo do livro, as figuras não estão lá: “a condição de invisibilidade difere da ausência: eu não vejo o que de fato está ali” (SILVEIRA, 2007, p. 478).

Anteriormente mencionamos que a artista Marilá Dardot desenvolveu o trabalho Sob Neblina (em segredo), de 2007, a partir de outro trabalho realizado em 2004. Sob neblina é um conjunto de vinte livros com dez páginas de vidro jateado. Este foi o primeiro trabalho que a artista realizou a partir de seus catálogos de frases que possuem a palavra silêncio ou a ele fazem referência. A partir da própria prática de catalogar, ocorreu à artista a ideia de construir este livro (NEVES, 2011). Para ela, o silêncio é algo misterioso, que pode aparecer em diversas situações e jamais se pode adivinhar o que viria após ele, e isto “passava uma ideia de neblina, de privação da visão: “O vidro jateado tem o mesmo embaço da neblina e gera uma tensão na manipulação do objeto” (DARDOT apud NEVES, 2011, p. 1784).

O processo de construção de uma obra de arte é parte constituinte de uma rede interminável de conexões. Esta rede é alimentada pelas possibilidades que os nós e amarrações desta rede nos oferecem para que façamos outros nós, independente da direção ou da secção que vamos amarrar. Gostamos de pensar que uma obra acabada, ou mesmo um esboço ou estudo tem potencial de alargamento construtivo e criativo para o artista. Marilá Dardot, a partir de seus registros de silêncio e suas categorias - como esquecimento, segredo, calma inquietação, terror, etc. (NEVES, 2011) – e suas materializações nos livros Sob neblina e Sob Neblina (em segredo), acabou desenvolvendo outras obras que fazem parte do mesmo “volume”. Sob neblina

(em segredo) transformou-se num livro editado, parte integrante de uma caixa

chamada Arquivo, que possui outros dois volumes: Arquivo livro 2: Sob Neblina

[2004-2007], com toda sua coleção de silêncios até aquele momento; e Arquivo Livro 3: Sebo, com uma coleção de objetos e carimbos esquecidos dentro de livros. Este terceiro volume foi elaborado em parceria com o artista Fabio Morais. Assim como o trabalho Atlas volume um e Atlas volume dois (2003) - resultado da participação do público a partir da Exposição: Modos de Usar,

Figura 26 - Marilá Dardot e Fábio Morais, Sebo (2007).

onde os visitantes construíam mapas que foram compilados nestes livros -, a caixa Arquivos constitui a categoria que optamos por chamar de Apenas Livros.

Não se podem apagar as fontes de relações, arquivos, mentais e materiais, que sedimentam os sentidos e estabelecem as relações entre a gramática visual e simbólica do artista. Os fragmentos da criação, aqui simploriamente descritos com os trabalhos de Marilá Dardot, constituem os repertórios, que são somados às vivências e frequentemente processados, capazes de detonar processos de construção auto-referentes.