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4. SEBASTIÃO PEDROSA: ENTRE A ARTE E A DOCÊNCIA

4.1. SURGE A ESCRITA

Pedrosa, mesmo não tendo consciência do suporte como linguagem artística, desenvolve atividades sobre livros antes de se interessar pelo uso plástico da escrita e do texto. Mesmo tendo, cronologicamente, iniciado o interesse plástico nos livros antes da escrita e dotexto, optamos por tratar primeiro da escrita em seu trabalho artístico. Nossa escolha se dá pelo desejo de não interromper no leitor uma progressão em torno dos primeiros passos de Pedrosa em direção ao livro de artista e das leituras realizadas por nós de seus trabalhos livro-referentes.

Pedrosa nem sempre produziu obras nas quais a escrita, o gesto e o texto possuíam lugar de destaque em suas composições. Seus primeiros trabalhos, como brevemente vimos, possuíam uma inclinação figurativa:

Os primeiros trabalhos que mostrei ao publico eram figurativos: xilogravuras com uma figuração situada entre o naif e o surrealismo, figuras de animais e arvores que sugeriam germinação, gravidez; uma certa aproximação ao desenho de criança na fase dos chamados “desenhos raio-X”.40

As aulas de desenho do modelo vivo e de desenho de observação, que tivera na Itália, contribuíram para uma modificação substancial de deus trabalhos. Neste período, ele passou a tratar de diferentes temas e formas de representação, redirecionando sua produção “para outros questionamentos e interesses na busca de uma visualidade mais centrada na auto-referencia” 41. Foi apenas entre 1980 e 1982 que ele passa a usar a escrita em seus trabalhos.

Ao que nos parece, quando Pedrosa inicia seus trabalhos mais gestuais, desconfigurando o sentido comunicacional estrito que a escrita verbal possui, ele reverbera em uma prática desenvolvida na adolescência:

Eu fazia minhas anotações assim, de código para ninguém ler. Deixava ali, deixava assim. Porque eu inventava ali um negócio. Não tinha ideia jamais da escrita de Leonardo (Da Vinci), ele fazia umas coisas assim, invertia. Mas você faz essas coisas intuitivamente. [...] eu me lembro que no grupo de Maria42 a gente conversava essa coisa do ser acessível, do

revelar e não revelar, do mistério.43

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, em sua Gaia Ciência, originalmente publicada em 1882, em muitos de seus aforismos e poemas, pontua a respeito da necessidade que os artistas e, principalmente, os filósofos possuem de “se livrar” de seus pensamentos. No aforismo de número 93 do Livro II, intitulado “Mas por que você escreve?”, o filósofo desenvolve um diálogo consigo:

A: Eu não sou daqueles que pensam tendo na mão a pena molhada; tampouco daqueles que diante do tinteiro aberto se abandonam a suas paixões, sentados na cadeira e olhando fixamente para o papel. Eu me irrito ou me envergonho do ato de escrever; escrever é para mim uma necessidade impiedosa – falar disso, mesmo por imagens, é algo que me desgosta. B: Mas por que você escreve então? A: Cá entre nós, meu caro, eu não descobri ainda outra maneira de me livrar de meus pensamentos. B: E por que você quer se livrar deles? A: Por

41 Entrevista concedida ao autor em 19 de Julho de 2014.

42 Professora Dr. Maria do Carmo Nino é docente do Programa de Pós-Graduação em Letras e do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco. O grupo de pesquisa ao qual Pedrosa se refere é o Tecnologia e Produção

Artística, tendo como líder do Grupo a Professora Dra Maria do Carmo de Siqueira Nino. O

grupo possuía como área de atuação a Lingüística, Letras e Artes e as seguintes linhas de pesquisas: Arte, Ciência e Tecnologia; Processos e Discussão sobre Arte.

que eu quero? E eu quero? Eu preciso. – B: Basta! Basta! (NIETZSCHE, 2012, p. 111).

Nietzsche nos proporciona a compreensão de que existe certa agonia em seu ato criador e que talvez seja uma necessidade pouco prazerosa; talvez. O que nos interessa é compreender que o indivíduo criativo possua necessidade de “se livrar” de pensamentos, sejam eles filosóficos, visuais ou estéticos. Pedrosa elabora seus primeiros trabalhos, tanto utilizando a escrita, quanto pensando a respeito do livro, devido a esta sua necessidade visual e construtora. Como ele mesmo afirma: “era uma atividade que eu desenvolvia naturalmente, pela própria necessidade de criar algo plasticamente” (PEDROSA, 2014)44.

Não apenas Nietzsche e Pedrosa compreendem, claro, a necessidade que o artista possui de produzir, de “se livrar” dos pensamentos. Hélio Oiticica, Lygia Clark, Ferreira Gullar, entre tantos outros já escreveram a respeito. E é, justamente devido a esta necessidade, que surge em Pedrosa os trabalhos utilizando-se da escrita incorporada como elemento visual, assim como os primeiros experimentos com os livros de artista.

Enquanto cursava o mestrado na antiga Birmingham Polytechnic, Inglaterra, entre 1980 e 1982, Sebastião Pedrosa costumava trocar cartas com amigos, familiares e colegas. A coleção de objetos afetivos é prática recorrente em sua vida. Não diferente neste momento, ele seguiu guardando estas cartas. Geralmente, quando resolvemos guardar qualquer material afetivo que seja, o fazemos com o cuidado de mantê-los intactos; talvez o fetiche humano do

original, do intocado. Mas Pedrosa trata seus objetos de afeto de maneira

outra. Em determinado momento, ele resolveu se apropriar destas cartas de forma plástica. Sob necessidade de criar e reformular plasticamente, ele empenhou sua atenção em reformular estas cartas: “como não queria descartá- las eu as guardava. Aos poucos eu comecei interferir nas mesmas, pintando com aquarela, guache, ou colagem; assim, o processo de simbiose entre escrita e artes plásticas teve inicio na minha produção artística, mesmo sem ter

ainda consciência desse processo”45. A simbiose se deu de forma

despretensiosa, liberta de qualquer necessidade estilística ou comercial.

Sua pesquisa no mestrado, como vimos, buscava pensar o desenho e o repertório visual infantil. Sendo o fazer criativo, assim como o viver, uma rede interconectada de informações e relações, talvez tenha sido mesmo inevitável o desenvolvimento de trabalhos que dialogassem com o desenho infantil, a memória e a escrita.

Mas não figura apenas o desenho infantil no hall das influências das pesquisas visuais com a escrita desenvolvidas por ele. Paul Klee, Cy Twombly, Kurt Schwitters e Leon Ferrari são grandes influências para ele, além, claro, de línguas extintas, inscrições rupestres, etc. (PEDROSA, 2008; 2009; 2010):

Na busca de encontrar as motivações próprias para a construção de imagens que deveriam ou se espelham no gesto ancestral próximo ao da escrita, encontro artistas com os quais me identifico e partilho, de certo modo, de suas ideias e construções (PEDROSA, 2008,p. 2086).

A influência de Paul Klee parece ser uma das maiores nos trabalhos de Pedrosa, e podemos perceber estas influências em diversas pintura, gravuras, livros e objetos. Um exemplo é a série de pinturas que Pedrosa nomeia de

Escrita Secreta, iniciada no final dos anos 1990. O título é emprestado de uma

pintura sobre papel que Klee produziu em 1934; Secret Writing. Tanto a Escrita

Secreta de Pedrosa, quanto a Secret Writing de Klee, possuem elementos

aproximados: elementos que se comportam como uma escrita, composta por signos inventados, justapostos e que ocupam toda ou boa parte das superfícies (PEDROSA, 2008).

Schwitters desperta um senso de reaproveitamento em Sebastião Pedrosa. A partir dos trabalhos do artista Alemão, ele passa a reaproveitar não somente “fragmentos de palavras encontradas em coletas esporádicas e lhes dar novo significado quando transpostos para um novo contexto, criando uma nova imagem impregnada de elementos da escrita” (PEDROSA, 2008, p. 2087), mas também desempenha um papel importante nos seus livros de artista. É graças às experiências de Schwitters que Pedrosa desenvolve diversos trabalhos, os quais realiza coletando material descartado por

supermercados na construção de seus livros de artista. Isto resultou não apenas na construção de um livro de artista, de tiragem única, chamado This is

not a Merzbau (1996), mas torna-se impregnado em seu fazer artístico e

característica recorrente em boa parte de sua produção biblio-referente.

Mas é, certamente, Cy Twombly que o desafia a tratar as garatujas como elemento gráfico e visual: “sinto-me impulsionado a desconstruir a imagem criada para em seguida reconstruí-la num ato em que o olho não tem responsabilidade sobre o olho” (PEDROSA, 2008, p. 2087), e certamente a mão não reproduz os signos textuais/verbais regidos pela consciência de uma necessidade objetiva e comunicacional. É sob a influência da prática do desenho no total escuro, desempenhada por Twombly, que Pedrosa realizou, e ainda realiza, alguns trabalhos:

Mas não me atenho ao método dos expressionistas abstratos nem permaneço simplesmente no desenho guiado pelo automatismo psíquico adotado pelos surrealistas. Num segundo momento a folha de papel é quadriculada sistematicamente, numerada e recortada em pequenos módulos. Numa outra superfície a imagem é reorganizada com a sequência numeral alterada. Às vezes são justapostos o primeiro e o último módulo e assim sucessivamente, às vezes obedeço a um movimento pendular ou espiralar na reorganização dos módulos. E assim o processo se torna um continuum (PEDROSA, 2008, p. 2088).

Parece mesmo ser recorrente, em seus trabalhos, a ideia de reordenação e ressignificação, tanto do que ele aprendeu com outros artistas, a partir de seus estudos teóricos, quanto do reaproveitamento de suas próprias obras: “neste repensar e recriar metodologias e na visitação de processos criativos de outros artistas encontro a visualidade da escrita como possibilidade de construção de uma poética visual” (PEDROSA, 2008, p.2088).

A grafia feita por Pedrosa é da ordem do sensível, e não do semântico. Esta escrita, por não ser objetiva, sêmica, propõe um olhar outro, que não o objetivo, que busque adentrar tanto o campo visual e gestual, quanto poético em seu trabalho. Ele cria inspirado por uma linguagem existente, mas não decifrada, como encontramos na Pedra Roseta, na tábua de Uruk, no Disco de Phaistos ou na Pedra do Ingá, que “têm provocado as mais diversas emoções em pesquisadores” e alimentado sua escrita secreta própria (PEDROSA, 2011, p. 288). Esta escrita reverbera em sua prática pedagógica, tanto no ensino

Figura 28 - Sebastião Pedrosa, Eudóxia (2003), da série Secret Writing.

Fonte: Disponível em:

<https://www.pinterest.com/sebastiopedrosa/prints-made- by-myself/>.

Figura 29 - Sebastião Pedrosa, Laudônia (2003), da série Secret Writing.

Fonte: . Disponível em:

<https://www.pinterest.com/sebastiopedrosa/prints-made-by- myself/>.

quanto no estudo - da observação de desenhos infantis, suas garatujas e movimentos gráficos -, quanto em sua memória.

Os trabalhos de Pedrosa, os quais a escrita aparece como elemento visual, são também muito ricos de memórias suas. Absolutamente consciente de seu trabalho hoje, diferente das primeiras experimentações na escrita e com os livros de artista, ele é bastante dedicado ao fazer artístico, o que podemos perceber em sua produção textual e através das inúmeras conversas realizadas. Em texto de 2009, ele comenta a respeito da memória e do fazer artístico no direcionamento de suas obras:

Meu trabalho tem uma relação constante com a parte prática -

a prática artística no ateliê, somada à necessidade criativa, estética e poética que o move46 - e com as experiências

pessoais vividas através de diferentes estímulos: memórias da infância, imagens vistas em livros de arte e de história, viagens, lugares visitados. São imagens congeladas de situações que devo ter visto, memorizado e desenvolvido através da imaginação para tomarem forma posteriormente, na intimidade do ateliê, em pequenas gravuras, colagens, livros de artista, objetos/caixa” (PEDROSA 2009, p. 1208).

Recorrer a obras realizadas e eventos vividos, como vimos, aparece de forma recorrente na produção dele. Um bom exemplo disto é a exposição

Letters Abroad. Inicialmente planejada para ser elaborada em calcogravura, a

série precisou tomar outros rumos por conta de problemas operacionais: a prensa de metal, que ele utilizaria para a impressão das gravuras, apresentava desgaste, suficiente para interromper o trabalho. Assim sendo, a gravura em metal foi substituída pela xilogravura, mesmo esta forma de gravar apresentando dificuldades expressivas que o incomodaram:

Tive de redesenhar o projeto, como também me adequar aos novos materiais: usar uma matriz de madeira ao invés de placas de metal, gravar com as goivas ao invés das pontas secas sobre o verniz, o que forçosamente interfere no conceito estético e visual da obra (PEDROSA, 2009, p. 1208-1209). Problemas estéticos e poéticos contornados, a série de gravuras foi produzida. O título que a série recebeu é fruto desta prática de retomar o passado na construção de novas perspectivas no presente: as cartas que guardava e interferia plasticamente no tempo em que viveu no exterior, na

década de 1980. Como a série de gravuras produzidas eram destinadas à exposição Parallèles 22ºS – 50°N47 (2009), no Museu de Belas Artes de

Verviers, Bélgica, e como os elementos visuais dos trabalhos remetiam a textos e a um alfabeto indecifrável, ele decidiu intitular de Letters Abroad (PEDROSA, 2009, p. 1209). Muitos destes trabalhos foram expostos também em uma mostra individual em Letters Abroad e Outras Escrituras (2009), na galeria Dumaresq, em Recife.

Outro exemplo significativo em que o artista recorre à memória e a uma espécie de documentação são os trabalhos da série Palimpsestos, de 2010. Para construir as 54 obras que compõem a serie, Pedrosa se apropriou de materiais que continham anotações, textos manuscritos e realizados mecanicamente, marcas, gráficos, desenhos, etc., transformando-os a partir da sobreposição deste material e de interferências sobre eles: “o trabalho [...] faz uso das relações formais entre cores, linhas e superfícies na criação de imagens não representacionais. O título da série veio previamente à sua execução; palimpsesto é um termo grego que designa “riscar de novo”, eram superfícies feitas de couro animal onde textos manuscritos eram escritos, apagados e reescritos (PEDROSA, 2009). O título da série reflete exatamente o que a materialidade das obras apresentam: escritos são sobrepostos a escritos com a transformação da imagem em outras imagens, textos e significados pelas sobreposições.

Entre o material utilizado na construção dos Palimpsestos, constam páginas de anotações de diversos momentos da vida dele e do trabalho: “esboços de reuniões, anotações de planejamento, listas de tarefas a serem executadas, desenhos mecânicos feitos em reuniões burocráticas, planejamento de alguma ideia criativa plástica a ser realizada” (PEDROSA, 2009, p. 1721), assim como “uma pagina de minha dissertação de doutorado corrigida pelo meu orientador, um rascunho de relatorio de projetos trabalhados na Universidade, uma nota pessoal com nomes ou lembretes de situações vividas”.48

47 A exposição Parallèles 22ºS – 50°N foi uma parceria entre o Museu de Belas Artes de Verviers, Bélgica, e o Museu de Arte Contemporânea de Campinas. Exposição de intercâmbio de artistas do Brasil, Bélgica e Luxemburgo. Pedrosa participou desta exposição com xilogravuras e Livros de Artista.

Figura 30 - Sebastião Pedrosa, Palimpsestos (2010).

Fonte: Disponível em: <https://www.pinterest.com/sebastiopedrosa/grid- on-paintings/>.

Figura 31 - Sebastião Pedrosa, Palimpsestos (2010).

Fonte: Disponível em:

Esta prática de reordenar ou realocar materiais, textos ou quaisquer outras coisas, continua, ainda hoje, presente nas elaborações e pesquisas plásticas de Pedrosa, fundamentalmente em seus livros de artista. Pedrosa possui um trabalho, seja com seus livros de artista, pinturas, objetos ou relicários, nos quais se projeta e entrega de forma inteira em seus projetos poéticos. As práticas de sua juventude, de esconder os materiais, criações, segredos escondidos e criptografados, em transformar, já na maturidade, objetos impregnados de memórias e ativações afetivas, em obras de arte, em

pérolas para si mesmo 49, possuem um fim, mesmo que não intencional, de

mitificar, de levar à preservação seus tesouros, perpetuando suas relações e, em última análise, sua própria existência no mundo.