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I | 1817 [54]

O ano de 1817 foi aquele que Luís XVIII, com certa pose real não isenta de arrogância, denom inava com o o vigésim o segundo de seu reinado.[55] É o ano em que Bruguière de Sorsum [56] era pessoa célebre. Todas as loj as dos cabeleireiros, desej ando novam ente o uso de pós e a volta do pássaro real, estavam pintadas de azul e cobertas de flores de lis. Tem po singelo em que o Conde Ly nch,[57] todos os dom ingos, se apresentava com o tesoureiro do banco de Saint-Germ ain-des-Prés, vestido com o Par de França, com seu cordão verm elho, seu nariz m uito com prido e a m aj estade de porte particular a quem j á havia feito algum a ação digna de nota. O incom parável feito de Ly nch era o seguinte: tendo sido Maire de Bordeaux, aos 12 de m arço de 1814, entregara a cidade, um tanto apressadam ente, ao Duque de Angoulêm e.[58] Daí é que lhe proveio o pariato. Em 1817, a m oda fazia sum ir os m eninos de quatro a seis anos sob enorm es bonés de m arroquim , com orelheiras m uito sem elhantes às m itras dos esquim ós. O exército francês, im itando a Áustria, vestia-se de branco; os regim entos cham avam -se legiões; em lugar dos núm eros, levavam o nom e dos departam entos de onde provinham . Napoleão estava em Santa Helena e, com o a Inglaterra se negava a enviar-lhe tecidos de cor verde, m andou virar do avesso as velhas roupas. Em 1817, Pellegrini cantava, Bigottini dançava, Potier reinava, Odry ainda não existia.[59] Mm e. Saqui tom ava o lugar de Forioso.[60] Ainda havia prussianos pela França. Delalot era gente im portante.[61] A legalidade acabara de se consolidar, cortando, prim eiram ente, as m ãos e, m ais tarde, a cabeça de Pleignier, de Carbonneau e de Tolleron. O Príncipe de Talley rand, Cam areiroMor, e o Padre Louis, indicado para Ministro das Finanças, olhavam -se risonhos com o dois áugures; am bos haviam celebrado, a 14 de j ulho de 1790, a m issa da federação no Cham p de Mars; Talley rand a havia oficiado com o Bispo, Luís a servira com o Diácono.[62] Em 1817, nas avenidas paralelas a esse m esm o Cham p de Mars, viam -se grandes cilindros de m adeira, abandonados à chuva, apodrecendo em m eio à erva, pintados de azul, com alguns resquícios das águias e abelhas douradas que neles haviam sido im pressas. Eram as colunas que, dois anos antes, serviram de base ao estrado do Im perador no Cham p de Mai. Estavam enegrecidas aqui e ali pelas fogueiras do acam pam ento austríaco erguido perto de Gros-Caillou. Duas ou três dessas colunas haviam servido de lenha, aquecendo as largas m ãos dos kaiserlicks. O Cham p de Mai teve de interessante o ter sido reunido em j unho ao Cham p de Mars. Nesse ano, 1817, havia duas coisas populares: Voltaire-Touquet e as tabaqueiras à la charte.[63] A em oção parisiense m ais recente era o crim e de Dautun, que havia j ogado no

tanque do Mercado das Flores a cabeça do próprio irm ão.[64] O Ministério da Marinha com eçava a se inquietar pela falta de notícias da fragata Medusa, que deveria cobrir Chaum areix de vergonha e Géricault de glória.[65] O Coronel Selves dirigia-se ao Egito para se tornar Solim ão-Pachá.[66] O Palácio das Term as, na Rue de La Harpe, servia de oficina a um tanoeiro. Ainda se podia ver, sobre a plataform a da torre octogonal do hotel de Cluny, a pequena cabina de m adeira que havia servido de observatório a Messier, Astrônom o da Marinha sob Luís XVI.[67] A Duquesa de Duras lia para três ou quatro am igos, em seu apartam ento forrado de cetim azul-celeste, Ourika, ainda inédito.[68] No Louvre, raspavam -se as iniciais de Napoleão. A ponte de Austerlitz abdicava e passava a se cham ar ponte do Jardim do Rei, duplo enigm a que alterava de um a só vez a ponte de Austerlitz e o Jardim Botânico. Luís XVIII, m uito atento em anotar em Horácio, com o canto da unha, os heróis que se tornam im peradores e os tam anqueiros que se transform aram em delfins, tinha duas preocupações:

Napoleão e Mathurin Bruneau.[69] A Academ ia Francesa dava com o tem a a ser prem iado: A felicidade que nos vem do estudo.[70] Bellart era a eloquência social.[71] Via-se germ inar à sua som bra o futuro Advogado-Geral De Broë, destinado aos sarcasm os de Paul-Louis Courier.[72] Havia então um Chateaubriand cham ado Marchangy, à espera de que aparecesse um pseudo-Marchangy cham ado Arlincourt.[73] Claire d’Albe e Malek-Adel eram obras-prim as; Madam e Cottin foi declarada a m aior escritora da época.[74] O Instituto deixava riscar de sua lista o acadêm ico Napoleão Bonaparte. Um a ordem real elevava Angoulêm e a escola naval[75] porque, se o Duque de Angoulêm e era um alm irante extraordinário, era evidente que a cidade de Angoulêm e tinha, por direito, todas as qualidades de um porto de m ar, sem o que o princípio m onárquico ficaria prej udicado. No Conselho dos Ministros, discutia-se se era perm itido ou não continuar tolerando as vinhetas que representavam funâm bulos que adornavam os cartazes de Franconi e atraíam os garotos de rua.[76] Paër, autor de Agnese, bom hom em de rosto quadrado, com um a verruga no rosto, dirigia os pequenos concertos íntim os da Marquesa de Sassenay e, na Rue Ville-l’Évêque.[77] Todas as m ocinhas cantavam “l’Erm itte de Saint-Avelle”, com a letra de Edm ond Géraud.[78] Le Nain Jaune passou a cham ar-se Miroir.[79] O café Lem blin era pelo Im perador e contra o café Valois, partidário dos Bourbon.

O Duque de Berry, que Louvel j á espreitava na som bra, acabava de se casar com um a princesa da Sicília.[80] Havia um ano m orrera Madam e de Staël.[81]

Os guardas do Rei pateavam Madem oiselle Mars.[82] Os m aiores j ornais eram ainda pequenos. O form ato era restrito, m as a liberdade era grande. Le Constitutionnel era realm ente constitucional. La Minerve cham ava Chateaubriand de Chateaubriant. Esse t provocava o riso dos burgueses à custa do grande escritor.[83] Nos j ornais vendidos, j ornalistas prostituídos insultavam os proscritos de 1815; David não tinha m ais talento; Arnault perdera o espírito; Carnot não tinha m ais probidade; Soult não havia ganho nenhum a batalha, e era fora de

dúvida que Napoleão não tinha gênio algum .[84] Ninguém ignora ser coisa rara que cartas endereçadas pelo correio cheguem às m ãos de um exilado, j á que a polícia cum pre o religioso dever de interceptá-las. O fato não constitui absolutam ente um a novidade; Descartes j á se queixava disso quando fora banido de sua terra.[85] Ora, tendo David dem onstrado, num j ornal belga, certa irritação por não receber as cartas que lhe eram escritas, deu m otivo a que j ornais realistas o ridicularizassem . Dizer regicida, em vez de votantes; dizer inimigos, em vez de aliados; dizer Napoleão, em vez de Buonaparte, era quanto bastava para abrir um abism o entre duas pessoas. Qualquer um que tivesse bom -senso estava de acordo em que a era das revoluções tinha sido encerrada para sem pre pelo Rei Luís XVIII, cognom inado de “im ortal autor da carta”. Ao lado da Pont Neuf esculpia-se a palavra Redivivus sobre o pedestal preparado para receber a estátua de Henrique iv.[86] Piet delineava, na Rue Thérèse, núm ero 4, seu conciliábulo para consolidar a m onarquia.[87] Os chefes da direita costum avam dizer nas ocasiões m ais im portantes: – É preciso escrever a Bacot.

[88] – Canuel, O’Mahony e Chappedelaine esboçavam, com certa aprovação de Monsieur, o que m ais tarde deveria ser a “conspiração à beira da água”.[89]

L’Épingle Noire, por sua vez, conspirava.[90] Delaverderie conferenciava com Trogoff.[91] Decazes, espírito de certa form a liberal, dom inava.[92]

Chateaubriand, todas as m anhãs, de pé, à frente de sua j anela no núm ero 27 da Rue Saint-Dom inique, calçando chinelas, com os cabelos grisalhos cobertos com um lenço de Madras, os olhos fixos no espelho, um estoj o com pleto de cirurgião dentista à frente, cuidava de seus belos dentes, enquanto ditava a seu secretário, Pilorge, a Monarquia Segundo a Carta.[93] A crítica autorizada preferia Lafon a Talm a,[94] Féletz assinava A. F. Hoffm an assinava Z.[95] Charles Nodier escrevia Thérèse Aubert.[96] O divórcio tinha sido abolido. Os liceus eram cham ados de colégios. Os estudantes, tendo nas golas um a flor de lis, esm urravam -se pelo Rei de Rom a.[97] A contrapolícia do palácio denunciava a sua Alteza Real, Madame, o retrato por toda parte exposto do Duque de Orléans, m uito m ais sim pático em uniform e de Coronel-General dos hussardos que o Duque de Berry em uniform e de Coronel-General dos dragões; inconveniente de sum a gravidade. Paris m andava redourar, à sua custa, o zim bório dos Invalides.

Os hom ens de responsabilidade perguntavam uns aos outros com o agiria Trinquelague nesta ou naquela ocasião; Clausel de Montals divergia, em vários pontos, de Clausel de Coussergues; Salaberry não se sentia satisfeito.[98] O com ediógrafo Picard, m em bro da Academ ia a que Molière não pudera pertencer, fazia representar Les Deux Philibert no Odéon, em cuj o frontispício as letras arrancadas ainda deixavam ler distintam ente: THÉÂTRE DE

L’IMPÉRATRICE.[99]

Era-se ou pró ou contra Cugnet de Montarlot. Fabvier era faccioso; Bavoux, revolucionário.[100] O livreiro Pelicier publicava um a edição de Voltaire com o título: Oeuvres de Voltaire, da Academ ia Francesa.[101] – Isso atrai com pradores

– dizia o ingênuo editor. Era opinião geral que Charles Loy son seria o gênio do século; a invej a alheia com eçava a m ordê-lo, sinal de glória, e faziam sobre ele versos com o este:

Même quand Loyson vole, on sent qu’il a des pattes.[102]

Com o o Cardeal Fesch se recusava a pedir sua dem issão, o Arcebispo de Am asie, de Pins, adm inistrava a diocese de Ly on.[103]

A querela sobre o Val de Dappes iniciava-se entre a Suíça e a França por um m em orial do Capitão Dufour, m ais tarde General.[104] Saint-Sim on, desconhecido, deixava naufragar seu sonho sublim e.[105] Na Academ ia das Ciências estava o célebre Fourier, ignorado pela posteridade, e em não sei que sótão, um Fourier obscuro, de que o futuro se recordará.[106] Lord By ron com eçava a aparecer; um a nota de um poem a de Millevoy e o anunciava à França nestes term os: “certo lord Baron”.[107] David d’Angers esforçava-se para criar o m árm ore artificial.[108] O abade Caron elogiava, num a pequena reunião de sem inaristas na Rue des Feuillantines, um padre desconhecido cham ado Félicité Robert, que foi m ais tarde Lam ennais.[109] Um a coisa qualquer que deitava fum o e quebrava o silêncio do Sena com o barulho de um cão a nadar ia e vinha sob as j anelas das Tuileries, desde a Pont Roy al até a Pont Luís XV; era um m ecanism o quase inútil, um a espécie de brinquedo, ilusão de um inventor m elancólico, um a utopia, enfim : um barco a vapor. Os parisienses olhavam essa coisa inútil com indiferença. Vaublanc, reform ador do Instituto por golpe de Estado, decreto e suborno, distinto criador de m uitos m em bros da Academ ia, depois de criar tantos não pôde chegar a sê-lo.[110] O bairro Saint-Germ ain e o pavilhão Marsan desej avam Delaveau para Chefe de Polícia, por causa de sua devoção.[111] Dupuy tren e Récam ier discutiam no anfiteatro da Escola de Medicina e quase chegavam às vias de fato, por causa da divindade de Jesus Cristo.[112] Cuvier, com um olho no Gênesis e o outro na natureza, esforçava-se para contentar à reação hipócrita pondo os fósseis de acordo com os textos bíblicos, fazendo Moisés ser acariciado pelos m astodontes.[113]

François de Neufchâteau, louvável conservador da m em ória de Parm entier, fazia enorm es esforços para que pomme de terre fosse pronunciado com o parmentière, e nada conseguiu.[114] O Padre Grégoire, Bispo, ex-Convencionalista e ex-Senador, passara, na polêm ica realista, ao estado de “o infam e Grégoire”.[115] A locução que acabam os de usar – passar ao estado de – foi denunciada com o neologism o por Roy er Collard.[116] Podia-se ainda distinguir por sua brancura, sob o terceiro arco da Pont d’Iéna, a pedra nova com a qual, dois anos antes, se havia tapado o buraco feito por Blücher para fazer voar a ponte. A j ustiça cham ava ao tribunal um hom em que, vendo entrar em Notre-Dam e o Conde d’Artois, dissera em voz alta: – Com a fortuna! Que saudade do

tem po em que eu via Bonaparte e Talm a, de braço dado, entrar no Bal-Sauvage.

– Intenções revolucionárias! Seis m eses de prisão. Os traidores m ostravam -se às claras; hom ens que haviam passado para o inim igo na véspera das batalhas não procuravam esconder a recom pensa recebida e andavam

desavergonhadam ente, em plena luz do dia, no cinism o das riquezas e das dignidades; desertores de Ligny e de Quatre-Bras, em toda a indecência da torpeza subvencionada, exibiam em toda a sua nudez seu devotam ento à m onarquia, esquecendo-se do que está escrito na Inglaterra pelas paredes internas dos m ictórios públicos: “Please adjust your dress before leaving”.[117]

Eis, confusam ente, o que acontecia em 1817, coisas de que hoj e j á não nos lem bram os. A história negligencia quase todas essas particularidades, e não poderia fazer de outro m odo; a infinidade dos detalhes a sufocaria. Contudo, esses porm enores, erradam ente cham ados de pequenos – não existem pequenos fatos na história, com o não existem pequenas folhas na vegetação – são úteis. As feições dos anos é que com põem a fisionom ia dos séculos.

Justam ente nesse ano de 1817, quatro rapazes de Paris pregaram um a “boa peça”.