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CAPÍTULO 7 – A REGRESSÃO À DEPENDÊNCIA ABSOLUTA EM WINNICOTT: A CLÍNICA DA NECESSIDADE

7.2. Psicanálise de dois corpos

7.3.1. Loucura original

O que dá suporte à afirmação da necessidade do paciente de regredir à dependência é o fato de ele achar-se compelido a chegar à “loucura original”, que nele habita sem ter sido experimentada.

Elsa Oliveira Dias O que seria essa loucura original a que Dias se refere? Lembramos aqui do que Winnicott denominou “agonias impensáveis”53 – experiências que excedem a capacidade emocional do

bebê naquele devido momento. Experiências que, por não poderem ser vividas pelo ego frágil, perseguem ao longo da vida na forma de um medo de colapso iminente. Winnicott nos recorda que tal colapso já ocorreu, e que muitas vezes é necessário lembrar isso ao paciente. É uma experiência paradoxal, que ocorreu, mas não foi vivida de fato pelo indivíduo devido à sua imaturidade egoica. Aqui percebemos o inconsciente como o não acontecido e a angústia de aniquilação – em contrapartida com o inconsciente reprimido e a angústia de castração. Ou seja, o trauma primitivo deverá ser integrado com auxílio do analista em sua função de sustentar a situação ao longo do tempo (holding). A integração da falha e consequente reconhecimento de que a falha foi do ambiente (analista), e não do indivíduo, faz parte do processo de cura da regressão à dependência. Atentamos de que haverá um período de enlouquecimento temporário (the patient goes mad), com prevalência do caos; o manejo para fora do consultório muitas vezes se faz necessário.

Notamos na clínica que há dois tipos de pacientes: o primeiro conta com um suporte ambiental estendido da família, cônjuge etc., que dá apoio à experiência de regressão; o segundo tipo, não. O analista deverá levar isso em consideração, além de suas predisposições pessoais que o habilitam ou não a favorecer clinicamente a regressão. O paciente que conta com suporte ambiental fora do consultório tem melhor condição de lidar com a sofrida experiência de regredir à dependência.

Voltando ao nosso bebê/paciente: um bebê que precisa reagir ao ambiente invasivo, em vez de ser no tempo, fica diante do imprevisível: “não sabendo o que esperar, ele não acumula experiências que constituam um passado e não pode projetar um futuro. Ele fracassa na mais importante das três tarefas básicas da primeira mamada teórica: não se temporaliza” (DIAS,

53 Ao longo de sua obra, Winnicott mudou da expressão “angústia” para “angústia impensável” e, finalmente,

para “agonia primitiva”. No entanto, preferimos “agonias impensáveis”, por considerarmos que caracteriza melhor a natureza de tal sentimento ou emoção experienciados.

2006, p. 6). Justamente, é esse fracasso na temporalização que gostaríamos de destacar. É nessa dependência máxima que a continuidade de ser do bebê pode ocorrer; em casos de falhas nesse processo, haverá reação contra a intrusão por parte do bebê. “A morte, para um bebê nos estágios iniciais, significa algo bem definido, ou seja, a perda do ser em razão de uma reação prolongada contra a intrusão ambiental (o fracasso total da adaptação suficientemente boa)” (WINNICOTT, 1990, p. 156). A morte (psicose) como perda da continuidade de ser poderia estar relacionada à impossibilidade de esse bebê temporalizar-se nesse momento inicial da vida, ou seja, ser no tempo subjetivo. Acreditamos que a morte do ser, nesse estágio de dependência absoluta, equivale à perda ou ao não estabelecimento do EU SOU, já que reagir ao imprevisível é ter de começar tudo de novo.

A loucura original e a falha no processo de temporalização estão intimamente ligadas. Remetemos o leitor à frase citada no início da introdução e que sintetiza a implicação desses dois elementos (WINNICOTT, 1975b, p. 136).54

Começar tudo de novo é estar privado da raiz pessoal e da espontaneidade; é não poder juntar experiências, não formar passado, não poder projetar o futuro, não adquirir a crença num mundo encontrável e perdurável; é dispersar-se num presente eterno, em que a luta para nunca mais sofrer a agonia impensável priva o indivíduo da liberdade de deixar acontecer, de recepcionar acontecimentos (DIAS, 2006, p. 6).

Em suma, a incapacidade de recepcionar acontecimentos paralisa o indivíduo no tempo, já que o indivíduo perde sua espontaneidade55. As questões sobre a temporalidade no início da

vida aparecem também no encontro entre o ritmo do bebê com sua mãe, que pode apresentar dificuldades: “Não há dúvida que muitas dificuldades da adaptação materna estão relacionadas precisamente ao tempo” (DIAS, 2003, p. 201).

Se as dificuldades maternas de adaptação ao bebê estão intimamente ligadas à questão do tempo, podemos inferir que a tarefa do analista também – é bastante ancorada nas questões temporais. Podemos destacar a pontualidade, a capacidade de esperar, a capacidade de reconhecer a circularidade do tempo, expresso nas múltiplas idades e maturidades de seu paciente etc.56.

54 “A loucura, aqui, significa simplesmente uma ruptura do que possa configurar na ocasião, uma continuidade

pessoal da existência” (WINNICOTT, 1975b, p. 136).

55 Conforme discutido no capítulo 5: “Espaço potencial como continente do trabalho clínico”. 56 Aprofundaremos esse tópico a seguir, ao darmos atenção à figura do analista.

Em seguida, tentaremos nos aproximar do campo das experiências vividas pelo bebê no núcleo de intimidade de sua relação com a mãe. Claramente, utilizaremos do exemplo do bebê para procurar compreender o paciente regredido na clínica e o que ele vive.

As experiências de um bebê no início da vida podem ser pensadas a partir dos estados relaxados e dos estados excitados. Nos estados excitados, poderíamos pensar num tempo entre o impulso e o encontro com o seio: esse tempo do impulso instintivo (fome) até o encontro com objeto (seio) deve ser rápido para que o impulso não se perca. Quando o seio é encontrado (como objeto subjetivo), temos o tempo da presença, ou seja, o tempo da permanência do objeto. Depois de saciar a fome, o bebê pode descansar; durante seu sono, temos um tempo em que ele é cuidado pelo ambiente. A mãe cuida para que façam silêncio e não acordem o bebê, sua comida é preparada e assim por diante. O ambiente cuida para que o bebê tenha as experiências necessárias para a constituição de um senso de continuidade de si- mesmo. Esses cuidados ambientais são oferecidos ao bebê durante os estados excitados e os estados relaxados. A totalidade dos cuidados ambientais que cuida do bebê durante os estados relaxados e excitados no ritmo do próprio bebê será a base para o estabelecimento de uma temporalidade subjetiva, ou seja, o tempo que o bebê tem para viver essas experiências com os objetos subjetivos de “ponta a ponta”.

Se essas experiências se repetem de modo previsível, a continuidade de ser é preservada e começa a formar-se um estoque de experiências cada vez mais consistentes; isto permite expectativas mais configuradas sobre o futuro imediato. Gradualmente, o bebê torna-se capaz de prever e a confirmação regular das expectativas forma uma base para a confiança. O bebê vai sendo “datado”, conquista que, no início, ocorre necessariamente em termos da temporalidade do mundo subjetivo (DIAS, 2006, p. 5).

Pensando em nossos pacientes, os acompanhamos entre a relação com objeto objetivamente percebido e objeto subjetivamente percebido. Aceitamos permanecer na posição que ele necessita a cada momento. Permitimos que a experiência seja vivida de “ponta a ponta”.

Com o apoio do analista, o paciente viverá a loucura originária para a qual precisava retornar e do qual se defendeu por não ter maturidade egoica na ocasião do colapso para viver. É como se ele não estivesse lá.

Na psicanálise do caso bem escolhido para a análise clássica, a aflição clínica vem na forma de ansiedade, associada com lembranças, sonhos e fantasias. Como analistas, porém, nos envolvemos no tratamento de

pacientes cujo colapsos clínicos reais da primeira infância têm de ser relembrados através de sua revivência na transferência. Em todos os casos, o alívio vem apenas através da revivescência da agonia impensável original ou do colapso mental original. O colapso está associado a um fator ambiental que, na época, não podia ser reunido na área da onipotência da criança, como eu disse. A criança não conhece nenhum fator externo, bom ou ruim, e sofre uma ameaça de aniquilação (WINNICOTT, 1989, p. 60; grifos no original). Para que a agonia impensável volte ao passado, ela precisa, antes, ser vivida no presente (DIAS, 2011, p. 44). Novamente, aqui nos deparamos com o inevitável caráter temporal da clínica da regressão à dependência.

Vale lembrar, caso não tenha ficado claro, que o paciente que regride tem esperança de encontrar um ambiente bom, portanto, de certo modo, não é tão doente assim. Um caso de esquizofrenia grave dificilmente poderá ter organização egoica suficiente para regredir à dependência.