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Héstia e Hermes formam um casal na mitologia grega, ela simboliza o lume circular situado no centro da casa, o espaço fechado do grupo voltado para si mesmo, enquanto Hermes, deus do umbral e da porta, também das encruzilhadas e das entradas das cidades, representa o movimento e a relação com o outro.

(AUGÉ, 1994).

Héstia (ou Vesta) é o fogo doméstico, deste sentido polarizador do fogo que coze os alimentos e aquece a família adveio a concepção de lar – de lareira. Simboliza a moradia estável, onde se celebram as festas e acolhem os hóspedes. Héstia, por extensão, protege a cidade, no centro das antigas cidades do império romano ardia seu fogo sagrado. Hermes (ou Mercúrio), por sua vez, é o deus dos viajantes, protetor das estradas, por isso possui asas nos pés, tornou-se também o deus do comércio (RICCI, 1976).

Estas duas personagens mitológicas ilustram a temática dual do lugar, sua essência endógena e estável, em permanente relação com o que é lhe externo e dinâmico, que acaba por defini-lo.

A sociedade produz uma hierarquia de escalas espaciais – como nações, comunidades, lugares, lares –, com a qual organiza suas atividades e compreende seu mundo. Desse modo, o caráter das coisas afigura-se distinto quando analisado nas diversas escalas (global, continental, nacional, regional, local, ou do lar/pessoal).

O que parece relevante, ou faz sentido, numa determinada escala pode não se manifestar automaticamente em outra. Entretanto, não se pode entender o que acontece numa dada escala espacial fora das relações de acomodamento que atravessam a hierarquia de escalas. Há uma interação dinâmica entre os planos escalares.

Entendendo as escalas não como imutáveis, ou “naturais”, mas como produtos sistêmicos de mudanças tecnológicas (em destaque as

relativas a transporte e comunicações), de formas de organização dos seres humanos e das lutas políticas (HARVEY, 2004).

As escalas, portanto, podem ser constantemente redefinidas, contestadas e reestruturadas, em relação ao seu alcance, seu conteúdo e sua importância relativa.

O lugar comparece nesse estudo como uma escala espacial, não fixa, e em constante inter-relação com as demais escalas, na qual seres humanos buscam a realização de suas metas e organizam seus comportamentos coletivos.

Para Santos (1985), cada lugar atribui aos elementos do espaço um valor particular, devido ao fato de que as relações entre homens, instituições, meio ecológico e infra-estruturas são em grande parte ditadas pelas condições do lugar.

Cada lugar combina, de maneira particular, variáveis que podem ser comuns a vários outros lugares (SANTOS, 1997).

Segundo Massey (2000), o que dá a um lugar sua especificidade é o fato de que ele se constrói a partir de uma constelação particular de relações sociais, que se encontram e se entrelaçam num locus particular. Cada lugar é o centro de uma mistura distinta das relações sociais mais amplas com as relações sociais locais.

Para Harvey (2004), há uma série de efeitos e processos que produzem diferenças geográficas nos modos de vida, nos padrões de vida, nos usos de recursos, nas relações com o ambiente e nas formas políticas e culturais.

Sendo, portanto, possível considerar o lugar como o espaço diferenciado, ou seja, diferenciado dos outros lugares por seu meio ecológico, pelas possibilidades técnicas disponíveis e desenvolvidas, pelas relações sociais estabelecias e pelos padrões culturais próprios.

Claval (2007), por outro lado, acrescenta que o espaço não é um suporte neutro da vida social, desempenha também um papel na estrutura das personalidades e está intimamente associado ao mundo dos valores e aos fatos da cultura. O espaço é, assim, um elemento constitutivo do eu e seus grupos.

Também Santos (1985) identificou o lugar como um repositório de valores, mesmo que imaginários e simbólicos. O homem, de certa forma, guarda os lugares em suas emoções e lembranças, podendo identificá-los com afetos e experiências de vida, o que faz com que os lugares compareçam na formação complexa do seu próprio ser (SANTOS, 1985).

A partir dessas colocações, pode-se considerar o lugar como, de certo modo, fazendo parte do ser humano, contribuindo para sua

formação. Constata-se, dessa forma, que a abordagem do lugar é bastante permeada de subjetividade.

Ao apresentar o sistema de ações, Santos (1999) considera três tipos de agir: técnico, formal e simbólico. O agir simbólico compreende as formas afetivas, emotivas e rituais24. A força de transformação, de mudança, ou a recusa ao passado, vem desse agir simbólico, dos modelos de significação e representação. A importância do lugar na formação da consciência (dos indivíduos) vem do fato de que essas formas do agir são inseparáveis.

Na construção do lugar observam-se variações locais de modos de vida, de estruturas de sentimentos, de formas de relacionamento social e de produção, de estruturas sociológicas e de valores e crenças (HARVEY, 2004).

Contextualizando essa relação entre espaço e grupo social, que se auto-influenciam, Corrêa (1995) argumenta que, na década de 1970, houve uma retomada da Geografia Cultural e o surgimento da Geografia Humanista, inspirada nas correntes filosóficas do existencialismo e da fenomenologia25, com atenção voltada para a subjetividade, intuição, sentimentos, experiências e simbolismos. O espaço passou a ser considerado a partir dos sentimentos ou idéias de um grupo, nesse contexto, o lugar tornou-se um conceito-chave para a Geografia.

Também a idéia de lugar antropológico contribui para o enfoque proposto, conforme entendido por Marc Augé (1994):

[...] o lugar antropológico é simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa [...] Eles (os lugares antropológicos) se pretendem identitários, relacionais e históricos [...] O habitante do lugar antropológico não faz história, vive na história. (AUGÉ, 1994, p.52 e 54).

Os lugares são constituídos por diferentes atores sociais, tanto por aqueles que os criam, os habitam, como por aqueles que os visitam, todos participando ativamente da construção de seu sentido.

Dessa forma, segundo os autores estudados, o conceito de lugar expressa um espaço identificado com grupos sociais definidos,

24 O agir técnico é relativo às técnicas e o formal refere-se aos formalismos jurídicos e

econômicos.

25

Basicamente, as correntes do existencialismo enfatizam o indivíduo e sua experiência de escolha, enquanto a fenomenologia refere-se à consciência, à intencionalidade e ao mundo da experiência (BLACKBURN, 1997).

contextualizando suas atividades. Pode-se depreender que o lugar contém um componente subjetivo que o identifica com um grupo e, por outro lado, o lugar está presente na própria subjetividade dos indivíduos. Doreen Massey (2000), por outro lado, questiona como é possível pensar sobre localidade e sentido de lugar no mundo globalizado.

Para a autora, o espaço, o lugar e os tempos pós-modernos são vistos como uma nova fase, que coincide com o que Marx chamou de “a aniquilação do espaço pelo tempo”.

Fenômeno também chamado por Harvey (1992) de “compressão tempo-espaço”, advindo das experiências de globalização, aceleração do tempo e superação das barreiras espaciais. Sendo conformado um mundo que, gradativamente, comprime o tempo, dissolve as fronteiras e promove o fenômeno das identidades múltiplas, não mais ancorado nos valores iluministas26, mas na abertura e fragmentação da chamada pós- modernidade.

Nesse contexto, sociedades, instituições, grupos e indivíduos contemporâneos vivenciam uma abertura, que em grande parte deriva das práticas do mercado, que impulsiona o consumo incessante, a necessidade de constante renovação e de crescente expansão.

Dessa compressão tempo-espaço decorre, como alegada conseqüência, um sentimento de insegurança e vulnerabilidade na sociedade pós-moderna. Essa sensação tem remetido, nas últimas décadas, a uma busca do sentido de lugar, como forma de escapismo ou refúgio.

Passando a haver, assim, uma valorização muitas vezes idealizada dos lugares. De maneira que algum tipo de localismo, ou comunitarismo, tem sido considerado como um ideal de vida (por vezes utópico) a que deveríamos aspirar (HARVEY, 2004).

Via de regra, essa busca de identidade dos lugares tem se construído a partir de uma história particular, baseada na sondagem do passado e na procura de origens internalizadas. Essa concepção do lugar parece exigir um traçado de fronteiras, que distingue interior de exterior, numa contraposição entre “nós” e “eles”.

Tal postura acaba por enfatizar alguns sentidos problemáticos de lugar, como antagonismos aos “estranhos”, localismos competitivos e obsessões introvertidas com a “herança” (MASSEY, 2000).

26 Harvey refere-se aos fortes sentidos de identidades nacionais, em meio ao conhecimento das

Posto que muitas vezes, a ligação com esse “exterior”, é importante para a constituição do próprio lugar, na interação das escalas espaciais.

Massey (2000) chama atenção também para o equívoco de se identificar o lugar com a comunidade, a partir de uma noção idealizada desta como se fosse um grupo social coerente e homogêneo. A autora argumenta que as comunidades podem existir independentes do lugar.

Para Harvey (2004), comunidades bem fundadas na maioria das vezes excluem os forasteiros e definem-se em oposição a estes, erigem sinais de afastamento, internalizando a vigilância, os controles sociais e a repressão. A comunidade acaba por se configurar como uma barreira à mudança.

É, desse modo, necessário atentar para utilização de uma abordagem adequada dos lugares e das comunidades, sem que os mesmos sejam tomados como estereótipos vazios de conteúdo, ou em seu sentido reacionário.

Pontuados tais limites, a busca de um sentido adequado de lugar para o Ribeirão da Ilha deve considerá-lo como não estático, mas a partir das relações sociais e espaciais que o conformam, as quais são processos.

Assim, o lugar Ribeirão da Ilha pode ser compreendido como a espacialização das relações sociais, sendo que todas essas relações interagem com a história acumulada do lugar e com o que lhe é externo.