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A memória é irmã do tempo.

Gaia (Terra) e Urano (Céu) tiveram inicialmente 12 filhos, seis homens e seis mulheres, os Titãs e as Titânias. Alguns dos filhos sobressaíram-se pelo poder, outros se destacaram pela tragédia. Representam as forças violentas que povoaram o mundo e iniciaram a longa e penosa História da humanidade, afirma o poeta grego Hesíodo, no século VIII a.C.

Mnemósine, uma das filhas, é a poderosa deusa da memória, conserva a lembrança na alma dos homens. Mnemósine é também mãe das nove musas, que inspiram a criação, protegem a arte e a História.

Cronos, deus do tempo, é um Titã trágico, possui um destino atarefado e desesperado. Cabe-lhe criar uma nova ordem, revolucionar constantemente a natureza e alterar o palco da vida.

Cronos é insaciável. O tempo devora tudo: seres, momentos, destinos, sem piedade e sem apego ao que passou.

Só Mnemósine contesta Cronos, preservando, quando pode, a lúcida matéria sobre a qual reina.

(RICCI, 1976)

A morte diferencia os homens dos deuses, que possuem um tempo eterno. A noção de tempo é fortemente marcada pela consciência da morte, que delimita a dimensão humana (WHITROW, 1993).

A constatação feita pelo homem de que ele, como todas as criaturas vivas, nasceu e vai morrer parece tê-lo conduzido a tentar sustar o fluxo incessante do tempo, buscando de algum modo prolongar sua própria existência.

O cuidado tomado com a rememoração dos mortos sugere uma forma de permanência. Na mesma medida em que seu esquecimento

está associado a desrespeito ou desonra. De tal modo que, na Idade Média, uma das punições impostas aos excomungados era que, após sua morte, nada pudesse ser escrito em sua memória e que seus nomes não poderiam ser mencionados nos altares (LE GOFF, 2003).

O silêncio relacionado ao banimento, assim como seu inverso, revelam a íntima relação entre linguagem e memória.

No nível da linguagem oral, a permanência de algo depende exclusivamente da memória. Na busca de um maior grau de permanência, os símbolos transitórios da fala foram convertidos nos símbolos da escrita. “As palavras e os pensamentos morrem, os escritos permanecem” (HALBWARCHS, 2004, p.85).

O aparecimento da escrita funda a História e está ligado a uma profunda transformação da memória coletiva. A escrita, o alfabeto e a impressão sobrepuseram-se aos suportes humanos das sociedades orais, ampliando a capacidade de armazenamento de informações e permitindo a comunicação através do tempo e do espaço, além dos limites físicos do corpo. A escrita expandiu a exteriorização e o registro da memória.

A alusão à memória parece, à primeira vista, remeter a uma capacidade inerente ao indivíduo, de forma que tal faculdade não possa existir a não ser em relação ao cérebro individual, como expressa Santo Agostinho.

Eis-me nos campos da minha memória, nos seus antros e cavernas sem número, repletas ao infinito, repletas de coisas que lá estão gravadas, ou por imagens, como os corpos, ou por si mesmas, como as ciências e as artes, ou então, por não sei que noções e sinais, como os movimentos da alma, os quais, ainda quando não a agitam, se enraízam na memória, posto que esteja na memória tudo o que está na alma (SANTO AGOSTINHO, 1999, p.277)21

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Entretanto, a memória, assim como o tempo, é também uma experiência social. Maurice Halbwachs (2004) em seu estudo sobre a memória coletiva insere a memória individual no âmbito social. Afirma o autor, que o homem está só apenas na aparência, pois seus pensamentos e seus atos explicam-se pela sua natureza de ser social, e

21 Para Santo Agostinho (1999), a memória é como o ventre da alma, a alegria e a tristeza

que em nenhum instante o homem deixa de estar inserido em alguma sociedade. Nem mesmo no âmbito de sua memória.

Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós (HALBWACHS, 2004, p.30).

Também para Augé (1994, p. 23) “a individualidade absoluta é impensável: a hereditariedade, a herança, a filiação, a semelhança, a influência, são categorias por meio das quais se pode apreender uma alteridade complementar e, mais ainda, constitutiva de toda individualidade”. Para o autor, toda representação do indivíduo é, necessariamente, uma representação do vínculo social que lhe é consubstancial.

Assim, a evocação e a localização das lembranças têm como ponto de aplicação os quadros sociais reais, os quais servem de referência na reconstrução do que chamamos de memória. De forma que a memória individual não pode ser tomada como uma tabula rasa.

Entretanto, ainda na concepção de Halbwachs (2004), toda memória coletiva tem por suporte um grupo social limitado no espaço e no tempo.

Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum (HALBWACHS, 2004, p.38).

Desse modo, a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, de indivíduos que se lembram, como membros de um grupo, constituindo uma massa de lembranças comuns, que se apóiam umas sobre as outras. Pode-se dizer que cada memória individual possui um ponto de vista sobre a memória coletiva.

Cabe destacar, nessa linha, a correlação e a delimitação estabelecidas para a memória coletiva, ou seja, a memória coletiva está condicionada à permanência das relações sociais. Pode-se, então, depreender que a memória não reside nos objetos ou no passado, mas na vivência do grupo.

A memória coletiva é a memória da sociedade, da totalidade significativa em que se inserem e transcorrem as micromemórias pessoais, elos de uma cadeia maior (DUARTE, 2003).

Da memória de um grupo destacam-se as lembranças dos acontecimentos e das experiências que concernem ao maior número de seus membros e que resultam quer da sua própria vida, quer de suas relações com os grupos mais próximos, com os quais têm contato mais freqüente (HALBWACHS, 2004).

Também nesse sentido, Pierre Nora define a memória coletiva como “o que fica do passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do passado” (LE GOFF, 2003, p. 467).

Além de ser necessário que esta reconstrução se opere a partir de noções comuns, ela só é possível se as lembranças fizerem e continuarem a fazer parte de uma mesma sociedade.

Dessa forma, é pertinente relacionar memória coletiva com o conceito geográfico de lugar, o qual expressa um espaço identificado com grupos sociais definidos, contextualizando suas atividades. O lugar contém um componente subjetivo que o identifica com um grupo, ao mesmo tempo em que participa, em alguma medida, da conformação de seus integrantes.

A delimitação e a relação entre grupos sociais vinculadas à memória coletiva são condicionantes bastante pertinentes e relevantes para compreender seu co-relacionamento com o espaço, aspectos importantes para este trabalho.

Para Le Goff (2003), a falta ou a perda da memória coletiva nos povos e nas nações pode determinar perturbações graves da identidade coletiva, como a amnésia pode causar perturbações graves na personalidade de um indivíduo.

De maneira análoga, afirma Milton Santos (1999, p. 263) “quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação”.

Sendo assim, a memória é também um elemento essencial da identidade, individual ou coletiva, e sua busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades.

Lembrar e esquecer são atos pertinentes a todas as culturas, entretanto, para algumas sociedades o lembrar pode ocupar uma centralidade estruturante, enquanto que em outras a memória possui menor importância.

De acordo com Chauí (2005), o processo de renovação muitas vezes destrói os suportes materiais da memória e bloqueia os caminhos da lembrança. Deste ponto de vista, o resultado passa a ser a negação do próprio passado e a não-identificação, ou a desvalorização de quem o vivenciou.

Esta questão é bastante pertinente para balizar os efeitos das transformações urbanas que tem ocorrido, recentemente, no Ribeirão da Ilha em relação às memórias de seus habitantes.