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A LUTA DOS TRABALHADORES RURAIS NO BRASIL E O MST: GÊNESE, AÇÃO, BANDEIRAS

2 EFETIVIDADE E CRÍTICA ANTICAPITALISTA DOS DIREITOS HUMANOS

3 A CONCEPÇÃO DE DIREITOS HUMANOS DO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA

3.1 A LUTA DOS TRABALHADORES RURAIS NO BRASIL E O MST: GÊNESE, AÇÃO, BANDEIRAS

Nascido em 1984, o MST é ele mesmo fruto das contradições encontradas, e desenvolvidas, na sociedade brasileira desde o início de sua formação. A história do Brasil, enquanto tal, é a história de uma dependência que tem deixado ao largo da vasta riqueza produzida a imensa maioria de seus habitantes. No campo ou na cidade, as elites econômico- políticas nacionais, submetidas ao movimento mundial de desenvolvimento da economia capitalista, submetem os trabalhadores a uma espoliação duplicada, e obstruem a passagem mesmo de avanços que, sob outras condições, poderiam compatibilizar-se com a ordem burguesa95.

Somos, sem dúvida, herdeiros da exploração do trabalho escravo nas minas de ouro e nos canaviais; do trabalho escravo e também do “trabalho livre” dos imigrantes em meio às plantações de café. Nossos problemas não podem ser entendidos sem que essa ponte histórica seja consistentemente construída. Se a ideologia burguesa trata de separar o que é inseparável e unificar o que é impossível de se unificar, o papel da crítica deve ser o de estabelecer as conexões históricas que permitam que a reflexão situe a condição nacional em um todo coerente, que não pode apontar para outro significado de nossa história senão como uma história de permanente negação ao atendimento das necessidades de quase todo o conjunto do povo brasileiro.

Como se sabe, o latifúndio finca suas raízes como modelo de exploração agrícola no Brasil em seu período colonial. O regime das sesmarias é a forma jurídica adotada para atender a necessidade de inserção do Brasil, de modo subordinado, na divisão internacional do trabalho. Nas sesmarias ganha corpo, por isso, o monocultivo em grandes extensões de terra, que se serve do trabalho escravo para assegurar ao capitalismo europeu produtos primários. É esse um importante momento da acumulação de capital sobre a qual se apoiará o desenvolvimento das forças produtivas no centro capitalista96. Não se trata, portanto, de um

95 Quanto a essas questões, ver FERNANDES (1981a; 1981b) sobre o modelo dependente de desenvolvimento

capitalista no Brasil.

96 É notável o impacto do papel assumido pela economia brasileira na divisão inernacional do trabalho sobre a

formação da legalidade no país. Esta última só se dá a partir dos contornos estabelecidos por esse papel: “A legalidade como instância da neutralização técnica, advinda dos primórdios do capitalismo mercantil, encontra,

feudalismo brasileiro, mas do modo específico através do qual a nação toma parte no conjunto das relações econômicas capitalistas estabelecidas entre os povos.

Com o progressivo fortalecimento do capitalismo e a formação de um “mercado mundial”, os antigos laços dão sinais de esgotamento. O pacto colonial e o trabalho escravo definham, em nome dos vínculos sustentados precipuamente na compulsão econômica – tanto entre as nações como entre os produtores diretos e o apropriadores. É assim que, já no Brasil imperial, no ano de 1850, é decretada a Lei de Terras, estabelecendo-se que apenas através da compra ou da doação do Estado seria viabilizado o acesso à terra – e não através da posse. Diante da possibilidade de ampliação do acesso à terra por ex-escravos, posseiros e imigrantes, a lei garante os interesses dos grandes proprietários (MORISSAWA, 2001, pp. 69- 70; MARTINS, 1995, p. 41). Em 1888, a proclamação da República tampouco implica em alteração substancial do conjunto das relações de poder e da estrutura fundiária brasileira97.

Não é difícil, portanto, entender porque os trabalhadores lutam pela terra. O messianismo e o cangaço aparecem como formas de resistência de classe ao longo da República Velha98; e, já no período pós-45, a emergência das organizações de trabalhadores rurais99, principalmente as Ligas Camponesas e os sindicatos, processo no qual é preciso considerar o impulsionamento exercido pelo PCB e a Igreja Católica (FERNANDES; MEDEIROS; PAULILO; 2009, pp. 24-25). A reforma agrária se consolida como “bandeira política que sintetiza o desejo de ter acesso à terra, de eliminar o latifúndio” (FERNANDES; MEDEIROS; PAULILO, 2009, p. 25) Quanto às Ligas Camponesas, é interessante perceber já o uso do direito na luta pela terra, em sua ligação com os projetos políticos que atravessavam a reivindicação por reforma agrária, bem como a relação dos movimentos do

desde o seu ínicio, uma realidade peculiar no caso brasileiro. A exploração econômica inicial, tanto do extrativismo quanto depois das culturas agrícolas, e posteriormente da exploração do ouro, estava voltada a uma lógica plenamente integrada ao capitalismo europeu. O processo da construção de uma instância jurídica técnica e legalista, que desse conta da transação comercial dos produtos brasileiros, vai-se formando na metrópole para a mercancia, mas sempre devido à demanda dos centros econômicos mais avançados, e enfrentando, ainda, formas jurídicas não plenamente autônomas (...)” (MASCARO, 2003, p. 81).

97 Também na recém-nascida república brasileira, é possível notar o descompasso entre igualdade para a troca e

igualdade política. Conforme MARTINS (1995, p. 45), “no plano político, a República concretizava a ampliação da cidadania implícita na abolição da escravatura. (...) instituía a restrição do voto aos analfabetos, mantendo a que se referia ao voto dos mendigos. Isso de fato ampliava a participação eleitoral, mas não na mesma extensão da igualdade formal decorrente da generalização do trabalho livre”. (MARTINS, 2005, p. 45).

98 “Tanto o messianismo quanto o cangaço indicam uma situação de desordem nos vínculos tradicionais de

dependência no sertão. A apropriação da terra pelos grandes fazendeiros, que fora subproduto da escravidão, passa a ser condição da sujeição do trabalho livre, instrumento para arrancar do camponês mais trabalho. A característica violência pessoal e direta, que confrontava os camponeses entre si e entre eles e os fazendeiros, começa a se transformar numa resistência de classe” (MARTINS, 1995, p. 63).

99 Sobre as determinações desse processo, MARTINS (1995, p. 66) localiza a expulsão dos foreiros, quanto às

Ligas, e as “restrições à roça do morados das usinas”, “o aumento dos dias de serviço” que o trabalhador deveria “oferecer à usina para permanecer na terra” e a “conversão [do trabalhador] em assalariado”, no que se refere à sindicalização.

campo com a religiosidade camponesa, o que também deve ser observado em relação ao MST.

Esssas noções [os projetos políticos que se ligavam à luta camponesa] se amalgamavam com a legislação existente, na qual buscavam suporte, e com a atualização política de concepções religiosas, legitimando reivindicações. No início dos anos 60, Francisco Julião, principal porta-voz das Ligas Camponesas do Nordeste, por exemplo, afirmava que seus instrumentos de trabalho eram a Bíblia e o Código Civil. Tanto ele como os militantes do Partido Comunista faziam dos advogados que aderiam à causa dos camponeses mediadores essenciais dos conflitos em curso. (FERNANDES; MEDEIROS; PAULILO, 2009, p. 26)

Como resultado da pressão popular por reforma agrária, o Governo Jango anuncia, em 1964, que enviaria ao Congresso um ousado projeto de lei de reforma agrária; dezenove dias depois, é desferido o golpe militar (STÉDILE, 2005, p. 146). Uma brutal repressão se abate sobre as Ligas Camponesas. O marechal Castelo Branco põe em vigor o Estatuto da Terra, uma legislação relativamente progressista100, mas que tem sua efetividade contida pela correlação de forças em que está imbricada a ditadura cívico-militar, em processo de enrigecimento (STÉDILE, 2005, p. 146). A “reforma agrária pontual”, não foi capaz de conter os conflitos.

Quando a ditadura militar começa a dar sinais de crise a partir de 1976 (...) invoca-se o Estatuto da Terra para realizar desapropriações em algumas áreas de conflito social. Inaugura-se, então,a reforma agrária pontual (...) Esse artifício não funcionou, e o que vimos no período de 1979-1983 foi a eclosão de muitas lutas de posseiros na Amazônia e o ressurgimento da luta “massiva” pela terra em praticamente todo o território nacional. (STÉDILE, 2005, p. 152)

A reforma agrária pontual, entendida como distribuição de terras aos trabalhadores em casos de conflito, é parte do projeto militar de reforma agrária, que consistia não na distribuição rápida e massiva de terras aos trabalhadores, mas na modernização conservadora do campo, servindo à apropriação da terra pelo capital. Assim, existem dois projetos em jogo: um projeto popular de reforma agrária, fundado no amplo acesso à terra para quem nela trabalha; e um projeto burguês de reforma agrária, que mantém a concentração da propriedade e funda-se sobre a reprodução de capital a partir da empresa agrícola.

O objetivo do projeto militar de reforma agrária está claro. É criar condições para o avanço do capitalismo no campo brasileiro, seja através da grande empresa agrícola, seja por meio da moderna empresa de produção familiar com alto nível de produtividade. Essa empresa familiar, no entender dos planejadores, deve funcionar

100 O Estatuto da Terra previa, por exemplo, a desapropriação das terras classificadas como latifúndios, no que

utilizando capital (...). Está claro, portanto, que, para o Projeto Militar de Reforma Agrária, o fundamental é a expansão do capitalismo no campo (...) (CPT, 1984, p. 02)

A reforma agrária reivindicada pelos trabalhadores, obviamente, é a primeira. Mas é preciso compreender que há uma disputa em torno da expressão. A chamada “reforma agrária de mercado”, que se coaduna com a proposta de desenvolvimento da grande empresa agrícola, e se apoia no mercado de terras, ou seja, na terra como mercadoria, conta com diretrizes formuladas cuidadosamente pelo Banco Mundial, constituindo uma verdadeira proposta global de “contra-reforma agrária101”.

É bebendo dessa fonte histórica, e como síntese desse conjunto de fatos históricos que o MST nasce, em 1984. Como colocado, as lutas camponesas ascendiam. Na cidade, igualmente, a conjuntura de crise econômica internacional e a crise do regime cívico-militar no Brasil impulsionavam as lutas operárias, e urbanas em geral. É nesse período que são forjados o PT, a CUT, o Movimento Sem Terra.

Tendo em vista as ocupações de terra, que antecedem ao surgimento do MST; a crise dos sindicatos, burocratizados; e as limitações do trabalho realizado através da Igreja, o Movimento surge como alternativa de auto-organização dos trabalhadores do campo. O MST não deixa de tomar as experiências dos sindicatos e da Igreja Católica102, nem de buscar articulação com os sindicatos combativos e com os espaços da Igreja, mas compreende a necessidade de um novo instrumento organizativo. Diversos militantes do MST vinham da militância sindical, e a CPT contribuiu com o processo de formação do próprio MST (STÉDILE; FERNANDES, 1999, p. 20 e ss.).

De forma sintética, pode-se apontar que a intensificação da modernização (conservadora) da agricultura – expulsando do campo um grande contingente de trabalhadores; o próprio trabalho ideológico da CPT; e esse ascenso das lutas no campo e na cidade num contexto de abertura política foram os fatores determinantes para a gênese do MST, cf. STÉDILE; FERNANDES (1999, pp. 15-22).

A estratégia da ocupação coletiva de terras, que precede a organização do MST, é adotada pelo Movimento. O acesso à terra deve ser alcançado “através da pressão e da luta” (MST, 1984, p. 178). A base social do movimento é definida: “parceiros, meeiros, arrendatários, agregados, chacreiros, posseiros, ocupantes, assalariados permanentes e temporários e os pequenos proprietários com menos de 5 hectares” (MST, 1984, p. 177); seu

101 Ver MARTINS (2004).

102 Que aqui cumpre papel bem distinto do que cumpria nos anos 50-60, quando se pautava pelo medo do avanço

caráter anticapitalista é afirmado: “lutar por uma sociedade igualitária, acabando com o capitalismo” é um dos princípios gerais do MST quando de sua fundação, em 1984, no I Encontro Nacional do MST, relizado em Cascavel, Paraná (MST, 1984, p. 178). Ao longo da década de 80 e sobretudo na década de 90, a luta do MST por terra e contra a ofensiva neoliberal se torna referência não só em meio às lutas populares no Brasil, mas também para os movimentos populares latino-americanos e em todo o mundo. O lema “ocupar, resistir e produzir” é elaborado pelo MST no início dos anos 90 e se converte em uma importante estratégia de enfrentamento ao latifúndio103.

Resistindo à repressão, sobretudo ao longo dos governos Collor e FHC, e alcançando conquistas materiais, sobretudo nas segundas metades das décadas de 80 e 90 (cf. STÉDILE; FERNANDES, 1999, p. 67), o movimento encara, durante o governo Lula, um conjunto de novos desafios. O desenvolvimento do agronegócio104; as políticas compensatórias aplicadas pelo governo; o discurso democrático-popular e a trajetória junto a organizações populares que carrega o Partido dos Trabalhadores; a constante criminalização do Movimento; a retirada de pauta da reforma agrária são os fatores colocam diante do MST problemas novos. A luta pela terra é ressignificada. O senhor de engenho, o coronel, em boa medida, se converte em empresas multinacionais e nos novos empresários agrícolas. A antinomia entre as classes não se dissolve, permanece.

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