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NA LUTA PELA TERRA A ação pastoral da Igreja Católica junto aos posseiros

No início da década de 1970, agentes de pastorais, padres, freiras e bispos da Igreja Católica de diversas regiões do Brasil, colocando em prática as orientações do Concílio Vaticano II (1962-1965) e da Conferência do Episcopado Latino-Americano, de Medellín (1968), já vinham prestando diversos serviços com teor político- pedagógico junto às populações do campo, como educação sindical, saúde popular, direitos sociais e trabalhistas, cooperativismo e outros.1 Na Amazônia brasileira, esse trabalho estava sendo realizado, especialmente, nas comunidades de posseiros,2 sobretudo aquelas envolvidas em intensos conflitos de terra. Entendia-se que os trabalhadores rurais, a partir de seus próprios problemas e dificuldades, poderiam se organizar e buscar alternativas para superar a situação de opressão e exclusão em que estavam vivendo.3 Foi nesse ambiente do trabalho da Igreja na Amazônia que a

Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi criada – em junho de 1975, no Encontro da

Pastoral da Amazônia Legal, em Goiânia – apresentando-se com o propósito de

interligar, assessorar e dinamizar esse trabalho no campo.4 Em Marabá e Conceição do

Araguaia, as CPTs locais foram criadas no ano seguinte com o objetivo de articular as práticas político-pedagógicas que diversos padres, freiras e agentes de pastorais ligados

1 ROTHMAN, Franklin Daniel. Political process and Peasant Opposition to Large Hydroelectric Dams: the case of the rio Uruguai Movement in Southern Brazil, 1979 to 1992. Tese (Doutorado em Sociologia), University of Wisconsin-Madison, 1993; MARTINS, José de Souza. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais no campo. São Paulo: Hucitec, 1989.

2 Vale considerar que o conceito de posseiro trabalhado nesta tese abrange tanto o trabalhador rural que há muito tempo ocupava áreas de terras devolutas na Amazônia e ali vivia sem nenhum documento que o legitimasse como proprietário de terra, quanto o trabalhador migrante de diversas regiões do País que chegou ao sul e sudeste do Pará, disputando, palmo a palmo, com fazendeiros, comerciantes e empresários a ocupação de uma mesma área de terras devolutas e, sobretudo, o trabalhador que passou a ocupar grandes imóveis improdutivos com títulos definitivos ou de aforamentos. Cf. a discussão realizada no capítulo 1 desta tese.

3 BOFF, Leonardo & BOFF, Clodovis. Como fazer Teologia da Libertação. 8ª edição. Petrópolis: Vozes, 2001; COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conquistar a terra, reconstruir a vida. CPT - dez anos de caminhada. Petrópolis: Vozes, 1985; GAIGER, Luiz Inácio German. A participação da Igreja Católica nos conflitos sociais pela terra. In: ____. Agentes Religiosos e Camponeses Sem Terra no Sul do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 29-125; IOKOI, Zilda Grícoli. Igreja e Camponeses: teologia da libertação e movimentos sociais no campo Brasil e Peru, 1964-1986. São Paulo: Hucitec, 1996; POLETTO, Ivo. A Igreja, a CPT e a mobilização pela reforma agrária. In. CARTER, Miguel (Org.). Combatendo a

desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010, p. 137-158.

4 PEREIRA, Airton dos Reis. Op. Cit., 2008; POLETTO, Ivo. A terra e a vida em tempos neoliberais: uma releitura da Historia da CPT. In: Secretariado Nacional da CPT. A luta pela terra: a Comissão Pastoral da Terra 20 anos depois. São Paulo: Paulus, 1997; POLETTO, Ivo e CANUTO, Antônio. Nas

às paróquias e ao Movimento de Educação de Base (MEB) vinham desenvolvendo junto aos trabalhadores rurais envolvidos na luta pela terra. Os agentes do MEB, além de seus trabalhos na alfabetização de adultos por meio das escolas radiofônicas e nos cursos de corte e costura, marcenaria, sindicalismo, cooperativismo, produção agrícola, saúde (alimentação, problemas de verminoses, malárias etc.) e teatro popular, em diversas comunidades urbanas e rurais,5 passaram a contribuir diretamente na estruturação das CPTs. Ou seja, essa entidade nos primeiros anos de sua existência, em Conceição do Araguaia e Marabá, constituía a articulação dos trabalhos de pastoral da terra que poucos padres, freiras e agentes de pastorais das paróquias e do MEB vinham desenvolvendo no campo. Esses agentes passaram a se defrontar com situações de violência pelas quais passavam muitos trabalhadores rurais. Eram posseiros despejados de suas terras, ameaçados de morte ou amedrontados pela onda de assassinatos no campo ou eram peões fugitivos dos trabalhos forçados e degradantes no interior das grandes fazendas de criação de gado bovino. Contudo, só mais tarde, a partir do início dos anos 80, com base em outra estrutura administrativa, que a CPT passou a ter agentes com dedicação exclusiva às suas ações, escritório, estrutura financeira, veículos e equipamentos próprios.

Nesse período, os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STRs)6 eram coordenados por pessoas que tinham ligações com os proprietários rurais e com os aparelhos de Estado. Quando se envolviam nas questões agrárias, eram normalmente a

5 BALDUINO, Frei Tomás. Rádio-Escolas no Vale do Araguaia. Conceição do Araguaia, s/d (Datilografado); O Estado de São Paulo. “Rádioescolas” para a região do rio Araguaia. São Paulo, 12/09/1961; O Globo. O rádio levara a educação a 500 km no Araguaia. Rio de Janeiro, 21/09/1961; Missões do Araguaia. Exposição para reunião dos Padres Dominicanos em Juiz de Fora, 2, 3 e 4/07/1963(Datilografado); Diocese de Santíssima Conceição do Araguaia. Revelando o rosto de Deus na

terra das “bandeiras verdes”. Conceição do Araguaia, julho de 2011 (org. Manuel Martins de Almeida).

6 Os primeiros Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) criados no Brasil datam da década de 1930, no período do governo de Getúlio Vargas, como o STR de Campos, no Rio de Janeiro, fundado em 1932, e durante as décadas de 1950 e 1960 quando aumentaram as lutas pela sindicalização. No estado do Pará, embora o surgimento dos primeiros sindicatos tenha ocorrido na década de 1960, foi nos anos de 1970 que foram criados o maior número de STRs. Cf. WELCH, Clifford Andrew. Movimentos sociais no campo até o golpe militar de 1964: a literatura sobre as lutas e resistências dos trabalhadores rurais do século XX. Lutas & Resistências, Londrina, v.1, p. 60-75, set. 2006; COSTA, Luiz Flávio de Carvalho & MARINHO, Ricardo José de Azevedo. A formação do moderno sindicalismo dos trabalhadores rurais no Brasil. In: COSTA, Luiz Flávio de Carvalho; FLEXOR, Georges; SANTOS, Raimundo (Orgs.). Mundo

rural brasileiro: ensaios interdisciplinares. Rio de Janeiro: Mauad X; Seropéica-RJ: EDUR, 2008, p. 119-

147; GUERRA, Gutemberg Armando Diniz Guerra. Organizações rurais e camponesas no estado do Pará. In: FERNANDES, Bernardo Mançano; MEDEIROS, Leonilde Servólo de; PAULILO, Maria Ignez.

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas. São Paulo: Editora UNESP;

Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009, p. 117-137; AMARAL, Waldiléia Rendeiro da Silva. Do jirau ao geral: mulheres nos sindicatos de trabalhadores rurais no Estado do Pará, Brasil. Dissertação (Agriculturas Amazônicas), Belém (PA): UFPA. Centro de Ciências Agrárias: Embrapa Amazônia Oriental, 2007

favor dos grandes proprietários rurais.7 O STR de Conceição do Araguaia, foi criado,

em 1971, com apoio dos padres, do MEB e do advogado Paulo Botelho de Almeida Prado8. Contudo, entre 1975 e 1985, foi presidido por Bertoldo Siqueira Lira,

interventor nomeado pelo Exército, homem de confiança do tenente-coronel Sebastião Rodrigues Moura, o Curió, do INCRA/GETAT e dos proprietários rurais. Os STRs de São João do Araguaia e de Itupiranga foram criados e organizados pelo INCRA durante a colonização às margens da rodovia Transamazônica, em 1974 e 1976, respectivamente. Enquanto que o STR de Itupiranga passou por tumultos internos, com intervenções do INCRA e da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) e mudanças da diretoria até setembro de 1986, o STR de São João do Araguaia contou com a supremacia de Arlindo Lopes até novembro de 1985, presidente desde a primeira gestão. Já o STR de Jacundá foi criado em 1980 e dirigido até 1985 por pessoas ligadas ao GETAT e aos proprietários rurais.

Estes Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, assim como os de quase todas as regiões do Brasil, estavam submetidos aos critérios legais, regulados pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social, e foram órgãos de colaboração do Estado,9 sobretudo quando foram transformados em núcleos de atendimento médico e odontológico por meio do FUNRURAL (Fundo de Assistência do Trabalhador Rural), do PRORURAL (Programa de Assistência ao Trabalhador Rural).10 Por esse meio, os órgãos oficiais acabaram não só desmobilizando a atuação desses Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, mas despolitizando os conflitos pela terra em várias regiões do Brasil. No sul e sudeste do Pará, ao transformar os STRs em núcleos assistencialistas, os aparelhos de Estado

7 STR de Jacundá. Ata de Fundação do Sindicado dos Trabalhadores Rurais de Jacundá. Jacundá, 13/01/1980; GUERRA, Gutemberg Armando Diniz. Op. Cit., 2001; ASSIS, William Santos de. A

construção da representação dos trabalhadores rurais no Sudeste Paraense. Tese (Doutorado em

Ciências Sociais), Rio de Janeiro: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura, 2007; SILVA, Ronailde Lima. A formação política dos

trabalhadores rurais do sudeste do Pará. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia),

Marabá: Universidade Federal do Pará/Faculdade de Educação, 2011.

8 Segundo o padre Ricardo Rezende Figueira, o advogado Paulo Botelho de Almeida Prado trabalhou, na década de 1970, como gerente da Fazenda Agropecuária Nazaré, em Conceição do Araguaia, e era considerado um homem sensível à causa dos trabalhadores rurais. Cf. FIGUEIRA, Rezende Figueira. Rio

Maria: canto da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

9 MEDEIROS, Leonilde Servólo de. História dos Movimentos Sociais no campo. Rio de Janeiro: FASE, 1989; GUERRA, Gutemberg Armando Diniz; ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. Das associações de lavradores aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais - o caso do Pará. Caderno do CEAS, Salvador, nº 126, mar./abr., 1990, p. 47-56; GUERRA, Gutemberg Armando Diniz Guerra. Organizações rurais e camponesas no estado do Pará. In: FERNANDES, Bernardo Mançano; MEDEIROS, Leonilde Servólo de; PAULILO, Maria Ignez. Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009, p. 117-137.

conseguiram torná-los um organismo de delegação de políticos clientelistas, detentores do poder local, além de tentar quebrar, com isso, as possíveis mediações da Igreja Católica.11 Percebe-se, assim, que as ações do Governo Federal da ditadura civil-militar

visavam despolitizar os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais enquanto órgãos de encaminhamento das reivindicações que os trabalhadores faziam, principalmente, por terra. Isso se dava à medida que transformavam os sindicatos em núcleos de atendimentos assistenciais, ligados a políticos locais que procuravam resolver as questões agrárias de forma harmoniosa, sem ferir os interesses dos grandes proprietários de terra. Desse modo, as reivindicações dos posseiros, sobretudo daqueles envolvidos diretamente na problemática da luta pela terra, normalmente, não passavam pelos sindicatos, mas, quase sempre, pelos padres, pelos agentes de pastorais ou pelo bispo. Quer dizer, a Igreja Católica acabou suprindo a lacuna deixada pela não-atuação política dos STRs, nas questões agrárias.

A Comissão Pastoral da Terra que, a partir dos meados da década de 1970, foi tomando corpo passou a atuar, principalmente, no acolhimento e no apoio aos trabalhadores vítimas da violência. Mas tão logo os seus membros compreenderam que era necessário registrar, com o máximo de detalhes, os conflitos e as violências que fossem tendo conhecimento e fazer relatórios com o maior número possível de informações. Além dos nomes dos trabalhadores assassinados, eram registradas as datas dos conflitos e dos assassinatos, mas também o número de famílias envolvidas e os nomes dos imóveis em litígios, dos executores e dos mandantes dos crimes. Em muitos casos, eram tomados os depoimentos de trabalhadores, escritos na primeira pessoa e autenticados em cartórios, como declaração pública da violência.

Esses relatórios subsidiavam não só o trabalho diário de padres, freiras e agentes de pastorais envolvidos diretamente nas questões de terras, mas reuniões e inúmeras denúncias de violências comedidas contra os trabalhadores rurais que a Coordenação Nacional da CPT e alguns bispos passaram a formalizar junto à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), à Anistia Internacional, à imprensa, à Presidência da República e ao Ministério da Justiça, entre outros.

Ainda, como parte da atuação da CPT, é possível constatar os serviços de arquivamento de diversos bilhetes e cartas de trabalhadores, de registros ou relatos de

agentes de pastorais, padres e freiras das diferentes paróquias e inúmeras matérias publicadas em vários jornais do Brasil sobre os conflitos e as violências, mas também o

trabalho de base no campo, principalmente nas comunidades de posseiros, com o

objetivo de animar e potencializar a luta dos trabalhadores pela posse da terra. Esse trabalho compreendia as visitas, às vezes, feitas a pé ou em lombo de cavalo, que os agentes de pastorais, os padres e as freiras faziam dedicando-se à evangelização dos posseiros: promovendo cursos bíblicos, celebrando missas, fazendo batizados e casamentos. Mas, ao mesmo tempo, se dedicavam à formação política dos trabalhadores com estudos sobre a estrutura sindical e agrária, participação das mulheres e dos jovens nos sindicatos, os direitos dos trabalhadores garantidos no Estatuto da Terra, no Código de Processo Civil e na Constituição etc. e sobre diversos temas ligados à situação vivenciada pelos posseiros naquele momento:

Na época, o coordenador da CPT aqui na região era o Mano [Emmanuel Wambergue]. A Igreja, era igual hoje. Ela ia para as áreas. Nós tínhamos o padre Roberto [Roberto de Valicourt] que apoiava a luta. Era igual hoje. A Igreja vai para as ocupações e os acampamentos através da CPT. Naquela época, o Mano era o celebrador. Inclusive na Igreja da Vila Santa Rita, na primeira vila que nós chegamos, quem celebrava de 30 em 30 dias em nossa Igreja era o Mano que era coordenador da CPT. Ele tinha uma relação muito forte com os trabalhadores. Naquela época, tinha muitas reuniões de orientação e de debate sobre os problemas que os posseiros enfrentavam. Sempre era informe jurídico da área, como estava o processo da área e tal. Era para celebrar, fazer informe como estava a coisa, fazer o debate jurídico da área. Nas comunidades mais avançadas, mais em nível de liderança tinha um processo formativo, os encontros de três a quatro dias com o Sindicato para formar as lideranças.12

Esse fragmento apresenta um pouco como a Igreja Católica, sobretudo por meio da CPT, investiu no processo de formação política dos trabalhadores rurais. Não só era importante a presença física de seus membros no meio dos posseiros, identificada como “presença solidária junto aos pobres da terra”, mas todo um tempo dedicado à formação e capacitação dos trabalhadores. Foi uma época em que seus membros passaram a reunir e, às vezes, adotar objetos e modos da “cultura camponesa”. Estes simbolizavam a “íntima ligação” com os trabalhadores rurais, denominados de pobres da terra, como, por exemplo, sandálias, bebidas, comidas, bancos e mesas toscas, pilão de socar arroz, tronco e casca de madeira, tipiti,13 paneiro,14 chapéus de palha, mesmo que fossem para

12 Francisco de Assis Soledade, o D’Assis, entrevista concedida em 01/12/2006.

13 Utensílio no formato de cesto cilíndrico extensível, de palha, com uma abertura na parte superior e duas alças, muito usado entre os povos indígenas e trabalhadores rurais da Amazônia para extrair, por pressão, o ácido hidrociânico da mandioca brava na fabricação da farinha.

enfeites de suas casas e capelas, e certas palavras e expressões e outros, alçados à condição de vestes litúrgicas etc.; além de ocorrer a politização dos rituais como “missa da terra”, “romaria da terra”, as “caminhadas” e as “santas missões populares”, em que as leituras bíblicas, os cânticos, o “Credo”, o “Glória”, o “Ofertório”, a “Ladainha” e outros momentos nas liturgias faziam referência à cultura e à luta dos trabalhadores rurais. Canções e poesias passaram também a ser incorporadas às celebrações, missas, ordenações sacerdotais, assembleias e reuniões, sobretudo nas comunidades de posseiros. Os ritos integravam o religioso e o político, momentos em que invocavam a proteção de Deus para participar da luta. Espaço este no qual se sacralizava a luta e se materializava o sagrado. Vale mencionar também que os instrumentos de trabalho dos trabalhadores rurais como foice, machado, enxada e os frutos da terra (as colheitas) faziam parte do ritual litúrgico.

Nesse período, também os espaços da Igreja (capelas, salões, barracões, casas paroquiais e a casa episcopal) foram utilizados para reuniões, cursos e treinamento sindical, numa reapropriação e redefinição dos espaços sagrados. Os seus veículos contribuíam para o deslocamento de trabalhadores das áreas em litígios para acompanhar o desdobramento jurídico em questão nas cidades e transportar sindicalistas para reuniões nas regiões de conflitos.

Foi nesse contexto que surgiram e se estruturaram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs),15 particularmente nas áreas litigiosas. Nessas comunidades, a leitura e a

reflexão bíblico-religiosa, com base na realidade ali vivenciada e por meio das celebrações, dos terços, das novenas e das festas, encorajavam os posseiros a resistirem em suas terras, além de animar outros a ocupar alguns imóveis improdutivos. A compreensão que passaram a ter, sobretudo, era que a terra havia sido criada por Deus, portanto para todos e não somente para algumas pessoas. Por isso, precisavam dividi-la. Mas, por outro lado, os posseiros sabiam e contavam com o apoio da Igreja Católica nas lutas, talvez a única instituição da sociedade civil, naquele momento, com projeção política nacional, envolvida nas questões de terra.

15 As CEBs se constituem de grupos de pessoas, geralmente católicas, que, morando na mesma localidade, se encontram para rezar e refletir, a partir da leitura da Bíblia, sobre os problemas e os desafios que enfrentam. As primeiras CEBs surgiram na década de 1960, no Nordeste, mas se espalharam por quase todo o Brasil nas duas decadas seguintes. Cf. Frei Betto: O que é Comunidade Eclesial de Base. 2ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981; MAUÉS, Raymundo Heraldo. Comunidades "no sentido social da evangelização": CEBs, camponeses e quilombolas na Amazônia Oriental Brasileira.Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(2): 13-37, 2010.

Nesses espaços, não só os pontos de vista dos trabalhadores com relação à posse da terra eram reforçados, a partir da leitura analógica da bíblia, mas seus entendimentos sobre os apoios que membros da Igreja Católica, principalmente aqueles que estavam diretamente ligados às suas comunidades, davam à luta pela terra e pela reforma agrária. Cada comunidade tinha uma ou mais lideranças denominadas de animadores de

comunidades encarregadas de coordenar as celebrações religiosas e promover espaços

de participação e de solidariedade entre os trabalhadores, indo desde solucionar conflitos entre vizinhos às resistências armadas contra pistoleiros. Esses animadores de

comunidades, normalmente, participavam junto com os agentes de pastorais, padres e

freiras das assembleias paroquiais e diocesanas, as chamadas Assembleias do Povo de

Deus, para discutir e encaminhar uma diversidade de questões relacionadas diretamente

à linha pastoral diocesana. Na Assembleia do Povo de Deus, da Diocese de Marabá, em 1979, por exemplo, elegeram-se como “prioridades pastorais”: “a formação de sindicatos e associações; caixas comunitárias; cursos bíblicos; e realização de encontros de conscientização prática de mutirões”.16 Já na 4ª Assembleia do Povo de Deus, realizada entre os dias 17 e 19 de outubro de 1980, foram assumidos os seguintes compromissos: cursos sobre prática de celebração para os animadores de comunidades; atuação nas questões sindicais; a prática do mutirão nas comunidades, que, segundo os participantes, era “uma prática comunitária com a qual as comunidades podem se valer para resolver em parte seus pequenos problemas”; “cursos, círculos bíblicos e encontros de conscientização” para “refletir, discutir e tomar decisões em comunidade”; “cursos sobre profetas fazendo ligação com a vida de hoje”; “curso sobre produção – o trabalho dos lavradores”; envolver-se nas questões de saúde, fazendo “abaixo-assinados para reivindicar postos de saúde e atendimento médico”; e organização das Caixas Comunitárias fazendo “reuniões com os associados e discussão sobre as necessidades e tomadas de atitudes” sobre a produção e comercialização dos produtos das roças.17

Os encontros e cursos para os animadores de comunidades e representantes das