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4. Os Assentamentos

4.1. Luta pela terra

De acordo com Ferrante (1994), a carestia e a fuga do fantasma da miséria são alguns dos motivos apontados como razão do interesse da luta pela terra. A terra representa uma alternativa ao desemprego e à baixa remuneração dos trabalhos assalariados, embora não se reduza a isso. A busca não é por qualquer trabalho, mas por um “trabalho autônomo”, um trabalho sem patrão, sem coação. Em resumo, o acesso à terra significa trabalho e liberdade. Mais ainda, significa a oportunidade de trabalhar para si e garantir a sobrevivência da família. Tal fato sugere a idéia de que os assentamentos são tidos como uma alternativa, em uma conjuntura específica, a essa miséria, portanto, uma construção simbólica da terra com uma heterotopia, ou seja, um lugar, simultaneamente real e imaginário, de oposição às tendências de homogeneidade do espaço na modernidade (FOUCAULT, 1984 apud SAUER, 2003).

Porém, é mais que isso. As pessoas que enfrentam as dificuldades da luta pela terra têm como desejo/projeto de vida a construção de um patrimônio como um lugar de trabalho e de vida, para o qual converge toda a família. Ao mesmo tempo, representa uma resposta à subordinação do uso da força de trabalho, aos limites impostos à reprodução física e social e contribui para o reconhecimento da autonomia e da dignidade pessoais. A luta pela terra representa, desse modo, a mudança de trajetória, a ruptura da condição social de desempregados, subempregados, explorados, enfim de sobrantes. Em síntese, é esse sonho que move os camponeses, no momento da luta e bem depois dela, sempre que reivindicam terra definitiva e trabalham para torná-la produtiva.

A terra aparece não apenas como elemento mediador para que esse projeto aconteça, mas como uma espécie de retorno, de reencontro com algo que, até então, parecia totalmente perdido.

Porém, a adesão a uma luta pela terra não é uma decisão simples de ser tomada. Segundo Wanderley (2003), deve-se considerar que tal adesão supõe uma avaliação das chances de sucesso e exige a execução de estratégias de ação eficazes, devendo, desse modo, oferecer alguma expectativa favorável que estimule os passos iniciais.

As experiências de luta, privações, desejos e sonhos – associadas às histórias de vidas, verdadeiros itinerários biográficos de deslocamentos26 em busca de sobrevivência – forjam novas identidades e perspectivas de vida. Esse processo social de luta e acesso à terra gesta valores e representações sociais, dá novas perspectivas ao mundo rural, permite inclusive transformações nas relações com o meio ambiente, com o lugar e entre as pessoas. (NOVAES, 1998).

A luta pela terra é um processo social, político e econômico, que abarca um conjunto de transformações no campo, redistribuindo a propriedade da terra e o poder, redirecionando e democratizando a participação da população rural no conjunto da sociedade brasileira. As experiências de luta e de acesso à terra, além de garantir bem-estar social e melhoria das condições de vida, são também impulsionadoras de transformações culturais, simbólicas e representacionais.

A busca/luta pela terra passa a ser vista não apenas como um processo de deslocamento do espaço do lugar, no qual a terra é representada como um local, geograficamente localizado, que possibilita trabalho e moradia (GIDDENS, 1991), mas por meio da luta e da construção simbólica, a terra passa a ter o sentido de um lugar de vida, uma moradia capaz de acolher e dar sentido à existência (SAUER, 2003).

Wanderley (2003) ressalta ainda que, muitas vezes, a decisão de participar da luta, de acampar, é uma decisão, ao mesmo tempo, coletiva, familiar e pessoal, já que, no processo de decisão, as opiniões de todos - parentes, vizinhos, compadres - são consideradas.

De acordo com Ortiz (1997), a luta pela terra constitui um processo social de reforço de vínculos locais e de relações de pertencimento a um determinado lugar, sendo um processo de reterritorialização que situa as pessoas em um espaço geograficamente bem delimitado. O assentamento (e as próprias parcelas e lotes) é caracterizado por limites e fronteiras, resultado de conflitos e lutas sociais que dão identidade e sentimentos de familiaridade a seus habitantes. O lugar define o pertencimento social, o enraizamento em um determinado

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Sauer em trabalho intitulado “A luta pela terra e a reinvenção do rural” explica que “os relatos biográficos das pessoas acampadas e assentadas são verdadeiros itinerários de deslocamentos em busca de sobrevivência ou simplesmente “sintaxes espaciais” (CERTEAU, 2000) e revelam uma série de desejos, imagens, sonhos e representações que desvelam a realidade social e política da luta pela terra, influenciadas pelos processos ampliados de transformações na sociedade brasileira” (SAUER, 2003:20).

território. Portanto, o território não diz respeito apenas ao espaço geográfico, físico, mas também ao espaço simbólico, que o envolve com significados da cultura e da vida social ali existentes. (SILVA, 2004).

O cotidiano das famílias que lutam por um pedaço de terra se modifica a partir da nova situação de vida - o acampamento. E essa nova realidade social, pelas suas dificuldades e pela necessidade de lutarem juntos por uma causa comum, faz com que alguns valores e o significado da luta pela terra sejam reorganizados, ganhando mais intensidade.

Cabe lembrar que há uma grande distinção entre o acampamento e o assentamento propriamente dito. O acampamento significa um momento de passagem, algo temporário, pleno de durezas; já o assentamento é o lugar de morar e viver, para ter sossego, constitui-se no projeto de vida.

Durante o percurso da conquista da terra, as práticas sociais e a forma dos assentados conceberem o mundo são reelaboradas em função das novas condições objetivas e subjetivas que as lutas engendram. Nesse sentido, o espaço de luta pela terra pode ser visto como um espaço fecundo de recriação cultural, em que as práticas cotidianas vividas pelos membros da unidade familiar são reelaboradas, o que não se limita apenas ao reconhecimento das suas condições materiais de existência, mas envolve também a questão dos valores políticos, morais, éticos, religiosos. Essa experiência de luta é uma construção social em todas as suas dimensões, possibilitando uma reconstrução do significado da terra.

Paulilo (1994) vem contribuir com esta discussão destacando que:

uma pessoa não entra numa luta dessas e permanece igual ao que era antes. Os que lutaram adquiriram uma consciência de si mesmos enquanto grupo, da origem social de problemas antes vistos como individuais e, mais que isso, adquiriram consciência de que é possível lutar e alcançar algumas vitórias. (PAULILO, 1994, p. 196).

Para Gohn (1997), os assentados constroem, na sua luta, um saber social, e se constitui, a partir do enfrentamento da luta pela terra, visto que cada etapa do processo de ocupação é permeada por novos desafios exigidos pela criação e recriação de novas soluções, pensadas e assumidas coletivamente, de acordo com a conjuntura mais ampla que vivenciam. Nesse processo, o campo do imaginário social também se altera.

Diante desse contexto de incertezas, fica mais expressa a necessidade de que a união, a solidariedade, a partilha, o companheirismo, a ajuda mútua, a democracia, sejam uma constante no dia-a-dia. Apenas a partir desses preceitos é que há condições de se lutar por um pedaço de terra que permita ao pequeno produtor e a sua família dar continuidade a um modo de vida e a uma identidade camponesa.

Assim, é a origem comum, como sem terra, a participação no acampamento e a perspectiva do recebimento de uma parcela que aproxima os assentados (WANDERLEY, 2003). A terra, ao mesmo tempo é parte do projeto de vida do agricultor familiar assentado, é um instrumento para alcançar tal projeto.

A luta faz parte da memória histórica dos assentados. Ela modificou suas representações, seus valores, sua maneira de pensar e dizer o mundo, seu modo de viver e trabalhar, os quais são criados e recriados na trama das relações sociais.