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3. A AÇÃO NO COLÉGIO DE APLICAÇÃO

3.1 Diário de campo

3.1.15 Luz, câmera e dança

Dia especial para mim e para os seis alunos que compõem a criação em dança-teatro. Há algumas aulas caminhávamos para o momento em que faríamos o registro em vídeo do trabalho que vínhamos criando. Os alunos chegaram na sala de aula dez minutos depois do sinal bater. Esse tempo foi utilizado para discussão com a cineasta sobre as escolhas de ângulos e ideias para o vídeo-dança, que se tornou um documentário.

Os alunos estavam entusiasmados; seus corpos encontravam-se alvoroçados. Uma aluna que se ausentara nos últimos dois encontros também compareceu, disposta a retomar as atividades. Conversamos sobre as suas possibilidades de participação e propus que ela integrasse as partes coletivas, retomando o trabalho que havia vivenciado há quinze dias atrás. Mas ela se

mostrou receosa, creio que insegura. Ofereci a ela figurinos pretos (que eu levara para o caso de alguém esquecer das combinações feitas em relação aos figurinos a serem usados na filmagem), mas ela não se motivou: disse achar todas as opções “feias”. Assim, decidimos que ela iria participar de outra forma, responsabilizando-se por operar o som, tarefa de extrema importância e sensibilidade dentro da nossa criação, pois era o pulso do que havíamos idealizado.

A equipe de gravação20 já havia colocado as câmeras em posição, mas

nem todos os participantes estavam presentes: duas alunas ainda não tinham chegado. Lamentamos muito, mas resolvemos iniciar as gravações assim mesmo. Afinal, estávamos no ambiente escolar e não em um ambiente profissional de criação artística, e precisávamos seguir em frente. Senti na pele a angústia de não ter o elenco completo para gravação, mas tive que pensar numa solução rápida, que evitasse ao máximo desestabilizar os outros participantes, que já estavam preocupados com o que fazer. Perguntei-me: o que faz um professor quando seus alunos (no seu direito) faltam uma aula/apresentação, se não agir criativamente dentro das condições que lhe são apresentadas? E decidi que eu mesmo as substituiria, dançando as partes criadas por elas na performance. Em poucos minutos, combinamos como seria, mas logo mudamos os planos, pois fomos surpreendidos com a chegada de uma delas. Respirei aliviado e feliz, pois sabia que o seu solo possuía uma delicadeza que se perderia sem a atuação da sua criadora, muito embora não tivesse me liberado totalmente de tornar-me parte da cena, pois a ausência da outra aluna exigia que eu mantivesse o combinado, suprindo as lacunas deixadas por ela nos momentos coletivos e tentando transpor corporalmente o seu momento individual. Sua participação faria muita falta no conjunto, pois ela fora uma das alunas que criou um solo a partir dos disparadores pedagógicos em dança-teatro. A narrativa dançada da aluna transformou-se numa narrativa minha naquele dia.

Como diretor de composição e de cena, eu estava a par de toda sua movimentação, pois havia orientado a aluna durante um mês até o momento da 20 A equipe foi coordenada pela cineasta Paula Martins, funcionária da produtora Ovo Mágico da cidade de Porto Alegre. Contratei a profissional por conhecer seu trabalho, pois havia sido seu colega de Mestrado.

gravação. Eu poderia ter deixado que os jovens resolvessem o problema, mas eles pediriam minha colaboração, pois queriam gravar todas as cenas, mesmo que a colega não estivesse. Tal fato é interessante, pois a poética da coreógrafa alemã que inspira o meu trabalho previa que tais situações acontecessem na criação. A cena criada por um ator-bailarino poderia ser dançada por outro se fosse o desejo de Bausch no espetáculo (GALHÓS, 2010).

Antes de iniciarmos a gravação fizemos uma roda e aquecemos os corpos realizando movimentos aleatórios sugeridos por cada participante alternadamente. Por meio da fala, busquei motivá-los a se entregarem às cenas e a procurarem o prazer e a diversão em estar naquele momento. Estávamos conectados.

A partir do momento seguinte, ficamos abertos aos pedidos da cineasta. Na sala havia uma mesa de luz. Fiquei responsável por acender as luzes antes de entrar no palco e apagá-las ao final da performance, após minha saída pela coxia. Assim, a luz de cena e o som foram acionados, e iniciamos.

Passamos as cenas uma primeira vez, para ensaio de câmera, e depois outras quatro vezes, para registros em diferentes enquadramentos. E os alunos mostraram-se motivados às repetições, pois havíamos construído esse hábito de revisitação das cenas no cotidiano da sala de aula. Ainda que, por estar em cena, eu não tivesse podido observar o trabalho de fora, foi possível constatar que a performance aconteceu sem maiores problemas de continuidade e, aparentemente, sem nervosismos, tensões ou inibições; e que os participantes estavam conectados.

Por fim, a cineasta solicitou a mim e aos alunos que fornecêssemos depoimentos a partir das questões trazidas por ela, referentes às nossas dificuldades e aprendizados no processo da disciplina21. Como participante da

proposta, optei por não interferir na condução das falas dos jovens. Para a gravação dos depoimentos, foi colocado um banco no meio do espaço cênico da sala de aula, iluminado pelos refletores. Um a um, fomos chamados a sentar 21 Questionário produzido pela cineasta: O que mais marcou vocês? Qual foi a maior dificuldade? Vocês já tinham experiência em dança? O que não deu certo? O que deu muito certo?

no banco, e, questionados pela cineasta, falamos sobre nossas vivências no semestre na poética formativa em dança-teatro.

Para que houvesse uma relação com as vozes da experiência, alguns dos depoimentos foram problematizados por mim ao longo da escrita desse diário. Foram ditas informações e relatos preciosos dos alunos, que apontaram pontos positivos e negativos da proposta, da minha condução das atividades, e dos seus próprios comportamentos no decorrer das aulas. Após a apresentação, decidi que iria escrever minha visão da nossa criação. Digo nossa, porque não há só ideais minhas presente nela. Ou melhor, a dramaturgia do experimento cênico e audiovisual partiu mais dos alunos do que de mim. Todavia, exerci a função de diretor, preenchendo as arestas e sendo o olhar externo, mas nem tanto, pois participei de algumas cenas do processo criativo.

O tema escolhido foram os entendimentos dos jovens sobre quem eles são e sobre o amor envolto na vida deles em diversas camadas de significados. A criação (vídeo dançada) foi composta por 7 cenas, sendo quatro coletivas e três individuais.

Imagem 3: Primeira cena. Fonte: Paula Martins, 2019.

A primeira cena é uma entrada em silêncio, na qual adentram no palco uma pessoa por vez, assim que as luzes começam a iluminar o tablado. O foco é a dramaticidade dos três gestos cotidianos que são usados.

O gestual trazia um contexto dramático à cena. O primeiro era olhar fixo para o público, o segundo, levar a mão direita ao rosto, perto dos olhos, e conduzi-la até o queixo, como se desse um tapa em sua face. Já o último, era o ato de estender o braço. Os movimentos indicam o posicionamento dos jovens em não se calar diante das adversidades na vida, que podem diminuir suas vozes.

A próxima cena representa um jogo de improvisação que fizemos: acumulação. Cada pessoa pode criar um movimento, que era somado ao de seu colega. Não há um significado dramatúrgico explicito, mas leio a cena como a edição de pluralidades. E como nossa ideia era dizer quem somos, a cena serve como uma exaltação à diferença. A música escolhida por eles foi

Baby Boy, da artista norte-americana Beyoncé (2003), uma das canções que

esteve presente nos aquecimentos de alguns dias de aula, e que representa o

pop, estilo musical de preferência na turma.

Imagem 4: Segunda cena. Fonte: Paula Martins, 2019.

Em seguida, o primeiro solo (terceira cena) inicia com uma transição do coletivo para o individual. O grupo de jovens toma direção da coxia e deixa uma das meninas para trás, como se a excluíssem do grupo. A exclusão reflete-se no corpo da performer e o sentimento de ser excluída dialoga com a dramaturgia do seu solo, que retrata as variações de humor vividas por ela no seu cotidiano. Esses aspectos observados na cena e presentes no corpo são evidenciados também no discurso da criadora da cena:

[...] comecei a pensar o que eu faço, o que tem de interessante na minha vida para mostrar e foi uma reflexão dos meus sentimentos, do que eu mais sentia e tentei colocar pra fora. E é uma pergunta muito

legal pra colocar em cena, porque a gente começa a pensar em tudo, tá, que eu não sou só feliz ou triste. Eu sou várias outras coisas.

Imagem 5: Terceira cena. Fonte: Paula Martins, 2019.

O próximo momento acontece em grupo, e é composto por uma sequência de dança contemporânea (momento das aulas descrito como aquisição de vocabulário no diário) criada por mim a cada aula, que foi acrescida de um significado dramatúrgico no final dos encontros. Numa conversa após o ensaio, perguntei aos participantes o que poderia significar aquela junção de passos, e a resposta foi que a cena representa a união do grupo no decorrer da disciplina eletiva de Teatro, pois, no CAp, eles não eram todos colegas; e que a superação de terem experimentado a dança-teatro e outras vertentes trabalhadas os inspirava na decisão. Assim, a ideia era de transformação de realidades.

O solo seguinte foi criado pela aluna que faltou no dia da apresentação. Nas gravações, eu apareço dançando em seu lugar. Conforme seu próprio relato, a cena retrata a forma de como ela se vê no mundo: tímida, mas com desejos de superação. Sobre o processo criativo da cena, ela revelou-me, numa conversa, que, num primeiro momento, teve dificuldades de se envolver com os disparadores em dança-teatro, mas que se sentiu mais confortável e motivada a investigar a partir da indagação “como eu me vejo”. Para a jovem, a tarefa de criar a partir do olhar sobre si, ainda que tenha sido complexa, constituiu uma atitude de liberdade.

Imagem 7: Quinta cena. Fonte: Paula Martins, 2019.

Na continuação da cena vê-se, novamente, a sequência em dança contemporânea. Contudo, são outros jovens a dançar, juntamente comigo (em substituição à aluna faltante).

A atmosfera da transição dessa cena é especial, pois reflete um ar de cumplicidade. Nos ensaios, a jovem autora da coreografia dançada por mim tinha dificuldade de estar no palco e acreditar em sua criação. Desse modo, a proposta da transição foi de dar suporte a ela através da troca de olhares e energia com os colegas de cena.

Imagem 8: Sexta cena. Fonte: Paula Martins, 2019.

O último solo é um momento de entrada da aluna na música que mais gosta. Ela criou a partir das provocações que a fiz sobre dançar através das batidas da canção. A aluna compartilha seu desejo de criação a seguir:

Como eu sou mais alegre, eu pensei em algo mais rápido no quesito agilidade. E ao mesmo tempo, têm aquela parte que eu viro a cabeça e fico meio perdida. A parte do chão é um momento triste, que é só meu.

Imagem 9: Sétima cena. Fonte: Paula Martins, 2019.

Como apreciador de dança e teatro, identifico uma estratégia cênica que considero interessante, tal seja, a finalização do discurso cênico através da repetição da cena inicial. Escolhi experimentar esse recurso no encerramento do vídeo-dança para suscitar a ideia de fechamento de um ciclo. A movimentação cotidiana do início e a entrada de uma pessoa por vez é repetida, bem como a iluminação, que, tal como fora acesa, é apagada num corte abrupto.