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3. A AÇÃO NO COLÉGIO DE APLICAÇÃO

3.1 Diário de campo

3.1.16 Rastros da experiência

O encontro de encerramento da disciplina ocorreu no dia dez de julho, uma tarde fria, em que a cor cinza predominava no céu da cidade. Estiveram presentes sete participantes.

Assim, chegamos ao último encontro da disciplina: momento de desapego e de fazer emergir aspectos das vivências propiciadas pelas relações travadas entre nós e a experiência com a dança-teatro. Vivenciamos esse momento banhados a chocolate: presenteei cada um dos participantes com uma barra. Sentados em roda, com pouca luz, fomos cunhando aos poucos um espaço de troca, um momento de intimidade, de descontração, de conversa fluida sobre o processo vivenciado.

Levei algumas questões para o debate, tais como: o que poderia ter sido diferente? O que desagradou vocês? O que irão guardar do aprendizado? De modo geral, as respostas mais recorrentes nas falas dos participantes foram as mudanças de compreensão sobre o que é a dança; o ato de compor; a perspectiva da autonomia; a desconstrução do corpo na escola; e a criação de um coletivo de trabalho. Percebemos juntos que tivemos obstáculos devido às paralisações na escola e à falta de comprometimento de alguns alunos, mas que, ainda assim, conseguimos caminhar. Na posição de professor, pedi desculpas pelos momentos de ansiedade, ao que eles responderam não ter percebido, visto terem gostado muito da parte mais diretiva da criação.

Uma fala dita por um dos discentes no decorrer da conversa levou-me a refletir sobre o que poderia ter sido melhor, pois se refere a ações que, segundo ele, vivenciamos em excesso:

Eu acho que a gente tinha concentração demais, Sor [professor]! Às vezes era muito parado. Excesso de concentração faz as pessoas perderem o interesse às vezes. Ficava robotizado, sabe! Algo mais livre, até por ser dança, a gente se solta mais.

A fala do discente dialoga, de certa forma, às minhas indagações sobre a falta de concentração e de comprometimento de alguns jovens em relação às atividades de sala de aula. Mas como afirmou o aluno, ele estava, sim, dando o seu máximo, mas eu não percebera.

Minha ideia era inserir os alunos num ambiente pulsante de criação, para ao qual considero a concentração uma premissa. No entanto, custei a

compreender as diferenças que separam a minha noção de “concentração”, construída ao longo de uma experiência prática e teórica relacionada à dança, das noções dos meus alunos, em processo de descoberta de uma atividade nova e inusitada na sua formação escolar.

Spolin (2010) teoriza sobre o foco nos jogos de improvisação, relacionando-o ao estado de atenção, à concentração no problema a ser solucionado em cena e na relação estabelecida com os outros jogadores. No trabalho com os jovens do CAp, tomei a noção de concentração como um conteúdo de aula.

Ao ouvi-los sobre sua formação na disciplina, vejo conexão com os estudos de Josso (2007). Para a autora a (auto)formação de si é constituída por momentos em que o sujeito, ao falar de experiências formativas em espaço de ensino, permite olhar para si como parte de tal processo, realizando o que a autora chama de “tomada de consciência”. A teoria de Josso mostra-se em prática para mim na escuta e leitura dos depoimentos dos meus alunos acerca do que se transformou em fagulhas de aprendizado em suas vidas:

Uma das coisas que eu achei bem legal na eletiva foi quando o sor [professor] nos perguntou ‘como a gente se via’. Eu falei: ‘mas é impossível, o que eu vou falar de mim?’. E eu comecei a pensar sobre mim. E foi muito interessante, porque eu comecei a ver toda minha vida e a começar a pensar nessa pergunta. Na coreografia, eu tentei passar um pouco de mim e o que acontece na minha vida. Parar para pensar sobre quem eu sou, em como eu sou e o meu jeito. Na Tese, discuto a respeito da transformação de um movimento quando uma pessoa o aprecia por meio da aquisição de vocabulário e o recria, fazendo com que a troca seja um ato de autoria na dança, pois não entendo que se trate de uma cópia, mas sim de uma atualização do movimento. Essa ideia foi expressa, de algum modo, nas conversas com os alunos.

Aprendemos novos passos e, também, fizemos nossos passos. Ele [o professor Jeferson] passou uma coreografia. Aprendi a passar bastante significados a partir da dança também. E não só falando, fazendo uma cena, como se faz no teatro.

Ao dar início ao processo junto aos alunos do CAp, preocupei-me em compartilhar minuciosamente as bases teóricas e artísticas com as quais iríamos trabalhar, salientando que essas mesmas bases compunham os eixos teórico-práticos da minha pesquisa no campo das artes cênicas. Buscava, então, materializar a noção denominada pelo filósofo Rancière (2005) de

partilha do sensível. Assim, expus ao grupo de alunos a forma pedagógica que atribuo e vejo na dança-teatro, bem como as metodologias encontradas por mim para esse compartilhamento. Rancière aponta que há diversas partilhas e formas de partilhar na sociedade, mas somente é sensível aquela que envolve elementos artísticos. Sob essa perspectiva, a sensibilidade é partilhada quando um artista mostra para pessoas e as envolve no seu modo de fazer arte. Nos registros produzidos ao final da experiência realizada no CAp, constam falas interessantes dos participantes nesse sentido:

Eu achei a pesquisa dele bem interessante, porque ele trouxe o que ele tá estudando/fazendo. Ele nos falou, mostrou e nos trouxe coreografias, que ao longo do tempo a gente foi adaptando para ser a nossa coreografia. Aí a gente adaptou com a dele, colocando os nossos sentimentos e os nossos gestos.

Em suma, a poética formativa sofreu diversas mudanças ao adentrar no Ensino Médio. Este diário de campo, traça os pontos desde o primeiro encontro, até o momento em que nos despedimos da vivência. As expectativas morrem diante da materialidade e da realidade dos encontros e afetos. Portanto, saio feliz pelos aprendizados.

3.2. Um olhar às juventudes com as quais convivi

Nas reflexões deste trabalho que envolvem o tema “juventudes”, o termo é utilizado no plural a partir da leitura dos referenciais que evidenciam a necessidade de um olhar mais aberto, múltiplo, a essa fase da vida, e, logo, de modos diferenciados para contemplar sua pluralidade. Ou seja, a ideia aqui não é traçar considerações acerca de uma juventude de via única, mas afirmar a existência de um elemento vivo, repleto de atravessamentos, como apontam os pesquisadores que fundamentam as reflexões.

Nesse sentido, afasto-me da noção da existência de uma única juventude, “pois são muitas as formas de ser e de se experimentar o tempo de juventude. Assim, como digamos: juventudes” (CARRANO; DAYRREL, 2014, p. 103). Da mesma maneira, não intento escrever um tratado sobre o tema, mas enunciar alguns pressupostos que me possibilitam refletir com mais abertura a respeito da relação estabelecida com os jovens estudantes do CAp no decorrer da experiência sobre a qual reflito nesta Tese.