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Desfiando a tradição desafiamos a sua interpretação. Como? Desven- dando a trama com que ela se tece, trama feita de fios entrelaçados, em que se jogam os desafios da interpretação. E que desafios são esses? Os da descoberta da tradição como um processo de tecelagem de factos, mitos e representações. A trama da tradição não consiste numa mera tes- situra de fios. Os fios com que a tradição se tece são elementos de uma matriz de sentido cuja complexidade importa desfiar, isto é, decompor e analisar, indo nos rastos desses fios. A metáfora do fio e dos rastos vem a propósito. Ela foi desenvolvida por Carlo Ginzburg,1inspirando-se na

mitologia grega. Teseu recebeu um fio de Ariadne para não se perder no labirinto, onde reinava o monstro Minos, rei de Tebas. Dos rastos que Teseu deixou no labirinto o mito não fala. Porém, somente a partir dos rastos é possível desvendar os meandros do labirinto. É com esta posição metodológica que vamos na peugada das máscaras. Que poder elas têm? O de revelarem na medida em que ocultam. As máscaras representam uma obscura encarnação do caos. A materialidade figurativa que impõem aos rostos que ocultam, descaram-nos mas acentuam-lhes, também, um sentido profundo, embora oculto, de natureza enigmática.2

No Brasil, mais propriamente no sul do estado do Ceará, há uma re- gião povoada por portugueses, entre finais do século XVIIe inícios do sé-

culo XVIII, portando uma designação que arrasta uma figuração equívoca

em relação aos seus habitantes. Refiro-me a Cariri, nome que tem origem nas tribos kairiris que ocupavam a serra de Araripe e que em tupi significa tristonho e calado, pois desse modo o índio era visto pelos colonizadores portugueses. Mas quem visita Cariri descobre o lado festeiro dos seus ha-

1Carlo Ginzburg, O Fio e os Rastos...

2Georges Bataille, «Le masque». In Oeuvres Complètes, orgs. Albert Camus e Jacqueline

bitantes. Na semana entre o Domingo de Ramos e o de Páscoa, quando a cidade Jardim é invadida por «caretas», rapazes que espalham as suas diabruras carnavalescas pela cidade, esta transforma-se num espaço ritual de festa e fantasia, dando lugar à subversão da ordem. Decorrendo de uma velha tradição – a malhação do Judas – com origem em práticas medievais da Inquisição, os caretas, portando chocalhos à cintura, em- polgam de colorido e zoadas a pacata cidade Jardim.3Tudo começa com

o carregamento do pau de Judas, um mastro de cerca de 15 metros de al- tura, onde um boneco, representando o Judas, será dependurado.4O

mastro de Judas é transportado para um sítio – sítio do Judas – cercado de corda ou arames com revestimento de palha de coco. O Judas aparece personificado com vestes apropriadas, musculadas com trapos e jornais. Ele pode representar qualquer político vestindo a pele do diabo: Collor, Lula, Sadam Hussein ou Bin Laden. Pela calada da noite, os caretas rou- bam milho, feijão e galinhas que levam para o sítio do Judas. Quem quer que se atreva a invadir o sítio leva «lapada», sendo açoitado pelos caretas com uma chibata de couro com o nome de «relho» ou «macaca». Por aqui vemos que o «sentido lúdico da festa» está centrado num confronto que provoca uma divisão de águas: de um lado, os caretas; de outro lado, os alvos de troça dos caretas e os que ameaçam assaltar o sítio de Judas. Sob a ocultação das máscaras, os caretas envolvem-se em disputas várias, desde logo de natureza político-partidária. A «teatralização desta divisão» – os de lá (eles) e os de cá (nós) – aparece em alguns versos de cordel:

Se os de lá querem assim, Os de cá querem assado; Se misturar lá com cá Puxa-saco é machucado [...].5

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3Há outra cidade nordestina, no sertão de Pajeú, a cerca de 450 quilómetros de Recife,

onde os caretas marcam presença. Trata-se da cidade de Triunfo onde, durante os festejos de Carnaval, os caretas surgem munidos de uma espécie de chicote, com a designação de relha, fazendo-o estalar no chão ou no ar, com sonoridades singulares. Nas rondas pelas casas são presenteados com bebidas, frutas e mugunzá salgado.

4As moças preferem o pau de Santo António, objecto de fervoroso culto em festejos rea-

lizados noutra região do Cariri (Barbalha). O pau de Santo António é obviamente a metáfora de um poder oculto que, a um simples toque, desencadeia enlaces, namoros, casamentos. À passagem do séquito, as mulheres solteiras aproximam-se do pau do santo para o acariciar, convictas de que desse modo arranjarão marido ou companheiro: «quem quiser casar venha no pau do santo pegar». Luiz Gonzaga eternizou o frenesim provocado pela passagem do pau do Santo António numa cantiga célebre: «A festa de Santo António / Em Barbalha é de primeira / A cidade toda corre (É um fuzuê medonho) / Pra ver o pau da bandeira»...

5Cláudia Sousa Leitão, Por uma Ética da Estética: uma Reflexão acerca de «Ética Armorial»

No Sábado de Aleluia o Judas é queimado, sendo lido um testamento. Antes, o jornal da caserna revela segredos escondidos de comportamentos duvidosos ou comprometedores que se passam na cidade: «A moça Pe- drita, de beata não tem mais nada, depois de ter feito uma turnê em For- taleza»; «O cartório de registros solicita, para conclusão de um registro de nascimento, o nome do pai do filho de Tanana»; «Cuidado com o Jorge Tadeu! Ele é brecheiro! Vive olhando em cima dos muros as mulheres to- mando banho ou trocando de roupa! Cuidado com ele!» Depois segue-se a leitura do testamento: «a minha fazenda deixo pró meu amigo Jonas Agostinho... o meu lenço dou para Damiana limpar as lágrimas do João- zinho de Exu... a minha cachaça deixo pra Tiãozinho... a minha noiva eu deixo prós 2 conquistadores de Jardim: Baú e António Lucena»...6 Entre-

laçando aspetos sagrados e profanos, a festa dos caretas possibilita uma crí- tica satirizada dos costumes políticos e sociais dos habitantes da cidade Jar- dim. O Judas denuncia as tramoias que, em sussurro, correm de boca em boca, sem que ninguém se atreva a publicitá-las ou delas dar testemunho. Por exemplo, a história daquele político que organizou um peditório para a construção de uma estátua em homenagem ao padre Cícero e que se abotoou com o dinheiro, tendo a estátua acabado por ser construída por um ferreiro da cidade. Finalmente, no Domingo de Páscoa há um almoço- -banquete em casa de Judas e, finda a festa, a teatralização do quotidiano segue o seu curso normal com o regresso das máscaras triviais do dia a dia. A cidade Jardim é vista como uma cidade de duas faces, «cara de anjo e coração do diabo».7Desta ambivalência da máscara – ser o que parece no

que mostra e parecer o que é no que esconde – resulta o seu fascínio, dado por um poder de metamorfose que joga com arquétipos e personagens míticas. Há a máscara quotidiana que oculta e protege, promovendo co- nivências e salvaguardando conveniências. Mas o avesso dela é outra más- cara que mostra a essência das pessoas ordinariamente mascaradas. Não por acaso o termo personalidade vem do grego persona cujo significado é precisamente o de máscara. Nesta ordem de ideias, todos nós somos care- tas, visto mudarmos de máscara de acordo com as circunstâncias.

As festas dos caretas de Cariri são herança de uma longínqua tradição do nordeste de Portugal, as conhecidas festas dos caretos ou dos rapazes, que decorrem no chamado ciclo dos doze dias (do Natal aos Reis) e também no Carnaval.8 De facto, também em Portugal, principalmente em Trás-os-Mon-

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6Cláudia Sousa Leitão, Por uma Ética da Estética..., 399-401. 7Idem, 209.

8Em Rebordãos, no concelho de Bragança, os mascarados também são designados

tes, os caretos personificam personagens ambivalentes, ora ao lado de Deus ora do Diabo, servindo-se da desordem para impor a ordem, apesar da sua imagem histriónica e demoníaca. Por outro lado, o martírio de Judas, em Cariri, tem correspondência com o «julgamento do Entrudo», em Portugal. Tal como o Judas, também o Entrudo é condenado à morte, depois de jul- gado, sendo espancado, arrastado e incendiado até se esfumar. O ritual pode justificar-se a partir da crença de que a queima afasta os poderes maléficos.9

Por sua vez, os caretos de Trás-os-Montes terão as suas origens em celebra- ções pagãs do solstício de inverno, de origens celtas, continuando a cele- brar-se em regiões outrora ocupadas pelos Celtas: nordeste transmontano de Portugal, norte de Espanha, Gália e Itália. Nas origens, terá sido um rito de fertilidade, talvez mesmo uma farsa, de natureza carnavalesca. Nos cultos pagãos, o solstício de inverno era celebrizado com rituais que valorizavam o renascimento da vida, embora os mortos fossem também lembrados. Este renascimento da vida era ritualizado com orgias e excessos, sugerindo a ce- lebração da fertilidade. Não é também de menosprezar a possível relação da festa dos caretos com as festas saturnais celebradas pelos romanos durante cinco ou sete dias, e que se iniciavam em 17 de dezembro, em honra de Sa- turno. Às festas saturnais agregavam-se as juvenais, celebradas por gente moça, no dia 24 de dezembro, com «canto bródio» e «patuscada». Estes fes- tejos atingiram o apogeu na Idade Média, na Festa dos Loucos, celebrada por clérigos de ordens menores, diáconos e sacerdotes, do Natal aos Reis. Também eram conhecidas por Festas das Calendas pelo facto de as suas ce- lebrações culminarem no 1.º de janeiro. As festas tinham por finalidade a esconjuração das forças maléficas do inverno, adversas à fertilidade. O nome de janeiro deriva de Jano, personagem idolatrado dos pagãos (de pagus, al- deia). O culto a Jano envolvia espetáculos e excessos de comida, bebida e outros. Os participantes do culto, também envolvendo cristãos, mascara- vam-se com aparências extravagantes, incorporando figuras de monstros e animais selvagens; os homens também se mascaravam de mulheres. Desfi- lando ruidosamente, dançavam, batendo palmas, cometendo travessuras e provocando hilaridade. Estes excessos levaram a Igreja Católica a instaurar o «jejum das Calendas de Janeiro» como forma de reparação de todos esses excessos. O cristianismo, por seu lado, deu a estes festejos uma conotação religiosa, associando a Festa dos Rapazes a um patrono, Santo Estêvão.

Nas descrições do ritual tenhamos presente que o que nelas sobressai são narrativas montadas numa retórica cerimonial que «fixa» o que Paula

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9Jorge Barros e Soledad Martinho Costa, Festas e Tradições Portuguesas (Mem Martins:

Godinho10 designa por «gramática para as festas». Embora cada terra

tenha as suas especificidades – por exemplo, em Torre de Dona Chama (Mirandela) e Rebordelo (Vinhais) há lutas de cristãos e de mouros – as festas têm aspetos comuns, a começar pela expressividade visual dos ca- retos. Eles vestem trajes coloridos, de lã grosseira, predominando as tra- mas de cor vermelha. As máscaras são feitas de couro, madeira, cortiça ou folhetas de latão, pintadas com corres garridas (vermelhas, pretas, amarelas ou verdes). Por vezes, representam configurações grotescas imi- tando animais, como bois, bodes ou serpentes. Os caretos ou os «más- caras», como também são designados, são detentores de um poder reco- nhecidamente incomum, perseguindo toda a mulher que vislumbram, com sonoridades estridentes produzidas pelos chocalhos que portam à cintura. Em suas tresloucadas correrias, invadem casas, roubando alimen- tos que consomem ou vendem em leilões. As raparigas são o alvo das loucuras dos caretos. Elas são perseguidas em correrias desordenadas e, quando alcançadas são chocalhadas, em simulações de um ato sexual. Elas riem quando fogem e voltam a rir quando são chocalhadas. O riso liberta o medo dos diabólicos caretos. A transgressão subverte a norma- lidade quotidiana para melhor a revelar porque tudo o que se opõe se pode combinar. Estamos perante uma cosmovision carnavalesque11gera-

dora de um mundo às avessas que não existiria sem o seu avesso. A igreja encontra-se interdita aos máscaras, considerados símbolos pagãos, por representarem o Mal e o Demónio. Quando perseguidas pelos máscaras, as moças correm para a igreja pois sabem que aí estão em segurança. As más-línguas sempre vão dizendo que elas se entregam a Deus quando o diabo já não quer nada com elas. Os máscaras apontam a igreja como um espaço de refúgio, onde o culto à Virgem Maria representa uma in- versão do mito obscuro da carne tentadora e pecaminosa.

Em contrapartida, as velhas são desprezadas, sendo objeto de outro ri- tual, a «serração da velha», que ocorre na Quarta-Feira de Cinzas. Elas são atazanadas e assuadas ao som de chocalhos e de batimento de latas:

Vamos serrar esta velha, Que já não tem serventia, A ver se bota a madeira Para os calços duma pia.12

Máscaras, diabos à solta e feiticeiras

10Paula Godinho, Festas de Inverno no Nordeste de Portugal: Património, Mercantilização e

Aporias da «Cultura Popular» (Castro Verde: 100Luz, 2010), 23.

11Mikhail Bakhtine, La poétique de Dostoievski (Paris: Seuil, 1970). 12 A. M. Pires Cabral, A Loba e o Rouxinol...

A serração da velha pode também ser dilucidada como um castigo di- rigido às bruxas, todas elas representadas por uma velha, incorporadora de todos os males,13de entre eles os males de inverno e de infertilidade,

males da terra mãe e da mãe da terra.14A serração da velha poderia assim

interpelar-se como uma purga social que não deixaria de ter em mira transgressões, tensões e convulsões sociais. Sempre a problemática da ordem como pano de fundo destes rituais.

Além dos caretos – também designados chocalheiros, carochos, caro- chas, zangarrões, máscaras, mascarões ou tamborileiros –, da festa dos rapazes fazem parte um rei, dois vassais, por vezes um bispo, gaiteiros e mordomos (também designados meirinhos ou juízes). A liderança da festa cabe aos rapazes solteiros, tendo os mordomos as principais respon- sabilidades de organização da festa. O envolvimento dos rapazes implica provas de resistência física, rondas ou visitas aos moradores de aldeia (as chamadas «alvoradas»), roubos simbólicos, peditórios e ofertas a Santo Estêvão, considerado o seu patrono. Um momento alto da festa dos ra- pazes é constituído pelas «loas», récitas públicas também designadas co- médias ou colóquios, e que se traduzem em versos satíricos de críticas e maldizeres a deslizes comportamentais ou a situações caricatas da vida social. Nas loas – designadas «pulhas» no Alto Douro – o que predomina é a troça, a vindicta popular que origina casamentos e testamentos bur- lescos. A festa dos rapazes pode interpretar-se como um rito de iniciação à virilidade, onde a identidade masculina é celebrada de forma festiva, transgressora e orgiástica. As máscaras garantem a clandestinidade dessas práticas, encobrindo a identidade dos transgressores. Subversivamente, as máscaras permitem uma superação do real, desempenhando uma fun- ção mediadora entre o realizado e o possível, entre um real encarcerado e a liberdade que o fantasia.

É neste reino de sociabilidades mascaradas que se vai construindo a identidade masculina, feita numa trama de cumplicidades mais ou menos visíveis e que, mais tarde, se prolongarão nas tabernas, nos cafés ou nas casas de putas. Aliás, a festa dos rapazes é uma oportunidade para que, afastando-se das «saias das mães», se iniciem em vícios de homem: «Os jovens que se iniciam bebem, fumam, comem com exagero, demons- trando as suas potencialidades viris, a capacidade de se afastarem tem- porariamente do núcleo doméstico.»15Esta afirmação de virilidade su-

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13Julio Caro Baroja, La Estación de Amor (Madrid: Taurus, 1985 [ed. or. 1979]). 14Nieves de Hoyos Sancho, «La muerte del Carnaval y el serrar de la vieja», Revista de

Antropología y Etnologia, V (1951): 393-420.

gere, precisamente, a transição do mundo das «saias da mãe» para o mundo de outras saias, onde a sexualidade possa ser vivida. As provas de virilidade são também ritualizadas nas «corridas da rosca» ou na «queima do cepo», provas de risco e destreza que levam os rapazes, or- ganizados em milícias, a roubarem lenha para se aquecerem nas noites gélidas. Para o efeito organizam-se em autodenominadas «milícias». Pa- ralelamente, a festa dos rapazes propicia uma iniciação às bebedeiras: «A ronda pelas adegas assume um carácter de destaque numa festa em que o consumo excessivo de vinho pelos neófitos constitui uma garantia de adesão aos valores grupais e uma marca ritual de masculinidade.»16Por

vezes, são os próprios adultos que incentivam as crianças a beber ou a fumar, num rito de iniciação em que o limite de idade não para de baixar. Os critérios iniciáticos sobrepõem-se aos geracionais. Em algumas aldeias, o requisito mínimo é ter dois anos de idade para começar a fumar. Uma avó, em entrevista a um jornal, gabava-se de seu neto de cinco anos: «Não é por ser meu neto, mas tem muito jeito para pegar no cigarro, nem imagina!» – e virando-se para ele: «Fuma lá, meu filho!»17

O rei da festa é obrigatoriamente um homem mas, atualmente, as ra- parigas já participam tranquilamente no batismo do tabaco, como se a tradição da festa se adaptasse a uma relativa democratização nas relações de género. Aliás, na descrição das festas, coloca-se o dilema de saber se imputar o relato a uma tradição passada ou reinventada. Aspetos formais do ritual repetem-se no decurso do tempo. Porém, o seu significado não coincide no contexto de um processo de transformações sociais que im- plicam também uma folclorização ou «retradicionalização festiva».18

O que interessa é estabelecer relações de inteligibilidade entre aconteci- mentos presentes e estruturas simbólicas tradicionais, sendo certo que a essência significativa da máscara tende a dissimular-se na aceitação gene- ralizada de que é alvo pela força lúdica do ritual. Do mesmo modo que a linguagem, o ritual converte-se num jogo que nega a sua própria essên- cia. De esta autonegação emerge a persistência da máscara, ou da tradi- ção. O próprio ritual é uma máscara através da qual se vislumbra um passado projetado no presente. Mas nem por isso a compreensão antro- pológica do rito deixa de passar pela contemplação do seu valor referen-

Máscaras, diabos à solta e feiticeiras

16Paula Godinho, «A Festa dos Rapazes..., 243. 17Público, 7 de Janeiro de 2007.

18Paula Godinho, «As ‘loas’..., 52; Paulo Raposo. «Do ritual do espectáculo. ‘Caretos’,

intelectuais, turistas e media», em Outros Trópicos. Novos Destinos Turísticos, Novos Terrenos

cial. As máscaras têm vida na medida em que são ecos da sociedade.19

Aliás, na sua origem etimológica, a pessoa era uma máscara, aparecendo esta como uma espécie de ressonância da voz dos sujeitos (per-sonare). Os rituais tornar-se-iam vazios se não existisse a magia representacional que os faz simbolicamente eficazes. Eles persistem se novos sentidos os justificam. Uma vez que a passagem do tempo reforça os aspetos formais e repetitivos do rito, não é descabido ancorá-los a uma tradição passada que, todavia, é o que é pelo que foi e pela forma como é vista do pre- sente. O que importa é ressaltar as descontinuidades verificadas entre a tradição passada (mesmo quando vista do presente) e a tradição reinven- tada, por efeito da passagem do tempo. O passado é um reservatório de ação para o presente mas isso não significa que no presente a tradição seja uma simples reposição do passado.

De acordo com a tradição, as festas carrilam em prol de uma integração comunitária,20em quatro dimensões: geracional, sociabilística, religiosa e

moral. Na dimensão geracional a integração social dá-se quando os rapazes são compelidos, através da denominada festa dos rapazes, a uma inserção na sociedade adulta e, desse modo, a festa pode interpretar-se como um «rito de puberdade»,21daí a liderança que é atribuída aos rapazes e as provas

de resistência física a que se submetem. Trata-se de um rito de passagem, com iniciações que contemplam buscas sexuais, bebedeiras e provas de vi- rilidade, como a «galhofa», espécie de luta livre que ocorre em aldeias como Parada e Grijó de Parada. A dimensão sociabilística é assegurada por refei- ções coletivas – onde não falta a vitela, o bacalhau e o vinho – e um am- biente festivo e galhofeiro, com urros estridentes e coletivos: «hi, gu, gus». Os urros acompanham as diabruras dos rapazes, de entre as quais os roubos

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