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Enredos sexuais, tradição e mudança: as mães, os zecas e as sedutoras de além-mar

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José Machado Pais

Enredos Sexuais,

Tradição

e Mudança

As Mães, os Zecas

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Capa e concepção gráfica: João Segurado Revisão: Vasco Grácio

Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda. Depósito legal: 408311/16

1.ª edição: Abril de 2016

Instituto de Ciências Sociais — Catalogação na Publicação

PAIS, José Machado,

1953-Enredos sexuais, tradição e mudança : as mães, os zecas e as sedutoras de além-mar / José Machado Pais. -

Lisboa : Imprensa de Ciências Sociais, 2016. ISBN 978-972-671-369-2

CDU 316.3

Imprensa de Ciências Sociais

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 9

1600-189 Lisboa – Portugal Telef. 21 780 47 00 – Fax 21 794 02 74

www.ics.ulisboa.pt/imprensa E-mail: imprensa@ics.ul.pt

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Índice

Preâmbulo . . . 9

Capítulo 1

Mães de Bragança . . . 23

Capítulo 2

A todo-o-terreno: subir ou não subir . . . 51

Capítulo 3

A casa, as cabras e as cercas . . . 91

Capítulo 4

Os desapossados: «Queres ou não queres, Maria?» . . . 117

Capítulo 5

Máscaras, diabos à solta e feiticeiras . . . 147

Capítulo 6

O chá de amarração . . . 183

Capítulo 7

A brasileira no imaginário luso . . . 227

Capítulo 8

O macho lusitano: graças e desgraças . . . 247 Conclusões . . . 277

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Preâmbulo

Beijavam-nos, diziam: tão novinho! Suportavam-nos insultos e arremessos. Com a mão experiente (mas não habituada) guiavam-nos na bela, impreterível, urgente aprendizagem,

concediam-nos crédito e carinho – as tão castas mulheres,

as prostitutas.

A. M. Pires Cabral

Quando me confrontei com a necessidade de dar um título a este livro lembrei-me dos sábios pensamentos de Schopenhauer (Parerga und

Para-lipomena, 1851) ao sugerir que o título de um livro deveria cumprir a

mesma função que numa carta desempenha o endereço do destinatário, encaminhando os seus potenciais leitores para o conteúdo do mesmo. Pensei então que Enredos Sexuais, Tradição e Mudança cumpriria satisfato-riamente esse objetivo, livrando o livro do mesmo destino equívoco das cartas com o endereço do destinatário errado. Na verdade, o presente livro pode ser lido por quem, por razões diversas, se interessa pelo des-conhecido mundo dos enredos sexuais. Por outro lado, também pode in-teressar a todos os que se interrogam sobre o que as ciências sociais têm a dizer sobre uma temática que, com algum desprezo, tem sido varrida para os recônditos lugares do desconhecido mundo das intimidades. Porém, uma vez que os valores sociais, de entre os quais os morais, mo-delam a sexualidade, ao mesmo tempo que se vão adaptando à forma como ela é vivida, o debate em torno da sexualidade não pode esquivar--se à problemática da mudança social. Daí que o título do livro nos con-vide a refletir em enredos sexuais que tanto mais se enredam quando mais as forças da tradição se enfrentam com as da mudança. Algumas «mães», muitos «zecas» e umas quantas «sedutoras de além-mar» chegam a este livro como as suas principais personagens. Na sua descrição, de cuja iden-tidade enigmática e dilemas existenciais irei dando conta ao longo das páginas que se seguem, procurei guiar-me por um obsessivo sentido do

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real, na linha do naturalismo de Zola. Não tanto pelo simples prazer da descrição como, sobretudo, pela necessidade de explorar, circunscrever e contextualizar as redes de relacionamento entre essas personagens, de entre as quais os zecas arrastarão a mais forte carga enigmática. Quem são? Adiante os conheceremos, mas sempre adiantarei que eles são a razão de uma bazófia de cunho machista, independentemente das façanhas dos referidos zecas. Esta e outras expressões nativas, que recenseei no decurso da pesquisa que dá corpo a este livro, representam muito mais do que simples palavras. Aliás, não as uso com o propósito de meramente escla-recer os seus sentidos literais, mas para ver e descrever o que elas podem representar, para além das suas concatenações imediatas.

O leitor ou a leitora deste livro cedo descobrirão que a pesquisa em que se baseia aparece fortemente ancorada a um estudo de caso, o tão propa-lado movimento das Mães de Bragança. O movimento irrompeu, em 2003, na cidade de Bragança (Trás-os-Montes), em defesa dos bons costu-mes e da moralidade. Um grupo de aguerridas mães ajuntou-se para ex-pulsar as sedutoras de além-mar, brasileiras que aportaram às chamadas «casas de alterne»1como trabalhadoras de sexo. Uma primeira

consequên-cia do movimento das Mães de Bragança foi o empolamento mediático do conflito, galgando fronteiras nacionais, nomeadamente por efeito de uma reportagem da Time, em outubro de 2003. Curiosos vindos de Espa-nha, mas também de outros países europeus, passaram a frequentar a pe-quena cidade de Bragança e a desfrutar dos prazeres de alterne numa cidade tradicional que passou a estar no mapa das rotas do turismo sexual, tam-bém por efeito da sua localização geográfica e rodoviária. Uma segunda consequência foi a onda de protestos reativos em defesa das «brasileiras» ou de crítica à suposta incapacidade de as «pudicas mães» darem plena sa-tisfação sexual aos seus maridos. De facto, quando na viragem do século, em pacatas cidades do norte de Portugal, começaram a surgir discotecas, bares e casas de alterne, promovendo o comércio sexual às descaradas, a novidade transformou-se em falatório e confrontos verbais que ecoaram por cafés, esquinas de rua e homilias. Os ânimos exaltados rodopiavam em torno de baluartes fundamentalistas de uma tradição difícil de sustentar e de uma modernidade onde todas as liberdades se poderiam alcançar. Pelo facto de uma grande parte das empregadas de alterne ter nacionalidade brasileira, gerou-se uma forte animosidade por parte das Mães de Bragança contra as brasileiras, muitas delas imigrantes em situação ilegal.

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1Estabelecimentos noturnos onde mulheres contratadas aliciam clientes para o con-sumo de bebidas e, frequentemente, para encontros sexuais.

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Preâmbulo Quando eclodiu o movimento, foi enorme a minha tentação de viajar até Bragança, para ver o que se passava. Pesquisas deste tipo, movidas por uma lógica de descoberta, são as que mais me entusiasmam, não tanto aquelas em que as agências de financiamento pedem uma antecipação de resultados mesmo antes de iniciada a pesquisa, na pressuposição de que tudo o que se deve questionar é tão-só o que se pressupõe. Não resisti à tentação e lá fui para Bragança,2 sem saber se aportava a um reduto do

«catolicismo obscuro» que, supostamente, determinaria, inevitavelmente, o movimento retrógrado das mães, como alguns sustentavam. Para quê fazer sucessivas viagens de cerca de 400 quilómetros de Lisboa a Bragança, ida e volta, pagas do meu bolso, para comprovar a versão prática de um preconceito, sobretudo quando ganhava direito de irrefutabilidade no universo das convicções do senso comum? Alguns amigos, no entanto, avisavam-me: «Não te metas por esses terrenos, são muito escorregadios»; «não vais agradar nem a gregos nem a troianos»; ou mais ameaçadora-mente: «arriscas-te a ser perseguido por mães, maridos delas, proprietários de casa de alterne, putas, polícias, bispos e até pela tua própria mulher...» Pesquisas etnográficas sobre trabalho sexual sempre levantam dilemas éti-cos mas raramente sobre eles se escreve.3 Não esperem que tome partido

a favor das mães ou dos seus maridos. Nem que me apresse a defender a legalização da prostituição ou a sua proibição. A objetividade analítica impõe que a realidade seja analisada tal como ela é, não como deveria ser. Por essa mesma razão, não me apegarei a saberes tautológicos que apenas olham o «lado fácil» da vida de prostituta ou, no extremo oposto, o seu «lado podre». Desde cedo meti na cabeça que teria de dar testemu-nho de realidades que são percecionadas de modo muito diferente por parte de quem as vive. A meu favor tinha a lentidão do tempo que carac-teriza as pesquisas de pendor artesanal.4Com efeito, sobre o movimento

2Em Bragança, o trabalho de campo mais intensivo decorreu entre 2003 e 2008, período em que efetuei duas a três deslocações por ano, com estadias de uma a duas semanas. Pos-teriormente, as visitas tornaram-se mais esporádicas. Para além de Bragança, deambulei por outras regiões de Trás-os-Montes, como Mirandela, Macedo de Cavaleiros e Vinhais. Quando as rusgas policiais às casas de alterne se intensificaram, tendo muitas das trabalha-doras de alterne rumado para Espanha, realizei algumas incursões por Alcanizes, Verin e Zamora. Ver José Machado Pais, «“Mães de Bragança” e feitiços: enredos luso-brasileiros em torno da sexualidade», Revista de Ciências Sociais, Universidade Federal do Ceará, vol. XLI, n.º 2 (2010): 9-23; e José Machado Pais, «Mothers, whores and spells: Tradition and change in Portuguese sexuality», Ethnography, vol. XXII, n.º 4 (2011): 445-465.

3Susan Dewey e Tiantian Zheng, Ethical Research with Sex Workers, Anthopological Approaches (Londres: Springer, 2013).

4De José Machado Pais, «O cotidiano e a prática artesanal de pesquisa», Revista Brasileira de Sociologia, Sociedade Brasileira de Sociologia, vol. I, n.º 1 (2013): 107-128; e José Machado

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das Mães de Bragança passou já algum tempo – o tempo necessário para ganharmos uma boa distância em relação à realidade que se pretende ana-lisar.

Neste livro proponho um debate sobre os valores e as representações sociais que encapotam a sexualidade, uma vez que a melhor forma de a colocar a nu é mostrar como ela se veste. Essas vestimentas são artefactos retóricos que devem ser percebidos enquanto factos de construção ideo-lógica. Assim sendo, há que os interpretar para alcançar a realidade que encobrem. A estratégia metodológica proposta aplica-se, como atrás su-geri, a um estudo de caso que aborda as convulsões sociais geradas pela presença das trabalhadoras de sexo na cidade de Bragança e no nordeste transmontano. A sua chegada redundou num confronto de moralidades e sensibilidades. Se me é permitida a imagem de um cordelista brasileiro,5

o suposto paraíso «virou um inferno», depois da chegada das prostitutas «o céu virou cabaré». Pela sua condição de prostitutas e imigrantes, tam-bém por seus dotes atrativos, as sedutoras de além-mar foram olhadas como um fator de perturbação da ordem. O movimento das Mães de Bragança surgiu para as expulsar da cidade, acusadas de enfeitiçarem os seus maridos com encantos, magias e um misterioso chá de amarração. Centrada na problemática da mudança social, a pesquisa que aqui se apresenta enfrenta o desafio de interpretar o movimento das mães, os estereótipos em torno destas e das imigrantes brasileiras, bem assim como alguns dilemas da masculinidade. Ou seja, tentarei desvendar os meca-nismos sociais de produção e circulação dos estereótipos associados quer às trabalhadoras de sexo (tratadas por putas, brasileiras ou macumbeiras) quer às mães (apelidadas de beatas ou papa-hóstias). A oposição mães-putas permitirá ver até que ponto o estigma de umas é manipulado para consagrar o estatuto de outras.

Dado que o objeto de estudo desta pesquisa se inscreve na problemá-tica da mudança social, surge uma inevitável pergunta. Teve a revolução dos cravos efeitos marcantes no surgimento de novos valores e compor-tamentos na sexualidade dos portugueses? A minha resposta é afirmativa, embora não sujeita a qualquer causalidade determinística. Quando o novo surge, o velho nem sempre se eclipsa, irremediavelmente suplan-tado pelo novo. Frequentemente o velho acaba por coexistir com o novo, num composto híbrido. É este embate entre tradição e mudança que se

Pais «As tramas da criatividade na produção artesanal da sociologia», em Imaterial e

Cons-trução dos Saberes, org. Leila Maria da Silva Blass (São Paulo: EDUC, 2014), 45-66. 5 José Francisco Borges, A Chegada da Prostituta no Céu (s. l.: s. ed., s. d.).

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Preâmbulo questiona ao longo deste livro. Na verdade, com a revolução de Abril de 1974 deu-se uma clara liberalização dos costumes, gerando-se uma aber-tura às novidades e à experimentação. Com cenas consideradas ousadas, a emissão da telenovela brasileira «Gabriela, Cravo e Canela», baseada no romance de Jorge Amado, quase paralisou o país, chegando a suspen-der sessões do Parlamento.6 Na taberna de uma aldeia do norte de

Por-tugal não me foge da memória a reação de um velhote, sorridente e cus-pindo para o chão, a tecer críticas ao beijo boca a boca de uma cena da telenovela. Poucos dias depois, no mesmo café, ufanava-se de ter en-saiado o experimento, ainda que para tanto tivesse de vencer a resistência de sua mulher. Uma nova sensibilidade erótica começou a despontar. As telenovelas brasileiras levavam tentações a aldeias que viviam uma se-xualidade recatada, como se um vendaval abanasse os apudorados cos-tumes tradicionais.7 Não é certo que antes da revolução do 25 de Abril

a sexualidade estivesse confinada a funções meramente reprodutivas. Porém, com o florescimento simbólico dos cravos floresceram novos quadros mentais e novos imaginários sociais. O próprio país começou a ser percebido em função da sua inscrição numa temporalidade histórica em mudança, como se vivesse numa encruzilhada de múltiplos tempos sociais, uns enraizados no passado, outros projetados no futuro. Como sabemos, é de Georges Gurvitch8 a conceção da multiplicidade dos

tem-pos. Ela é sociologicamente relevante porque nos permite perceber que a realidade objetiva de qualquer revolução é interface de realidades sub-jetivas. Aliás, a memória histórica é impensável se não se levam em conta as experiências pessoais.9 A conceção da multiplicidade dos tempos

so-ciais, na aceção gurvitchiana, torna possível a síntese dialética entre dife-rentes mundos, ora como objetos de ideação, ora como experiências de vida.

Entre 1926 e 1974 Portugal viveu numa ditadura conservadora que impunha uma forte moral de contenção sobre a sexualidade. A tradição opunha-se à modernidade. Salazar, o carismático líder do governo, batia--se contra todos os estrangeirismos que perturbassem a cultura de «bons 6Isabel Ferin da Cunha, «A revolução da Gabriela: o ano de 1977 em Portugal», Ca-dernos PAGU, 20 (2003): 39-73.

7Aliás esse mesmo rebuliço aconteceu no Brasil, como o sugere a poesia repentista de um cordelista: «Antes da televisão/ Não existia pecado/ Depois que ela chegou/ Foi dando tudo errado/ Mulher mostrando a bunda/ Nos braços do namorado», Davi Tei-xeira, A Bunda Vendedora (Recife: Edição do Autor, 2005).

8Georges Gurvitch, La Multiplicité des Temps Sociaux. 2 vols. (Paris: PUF, 1961). 9Michael Kenny, «A place for memory: the interface between individual and collective history», Comparative Studies in Society and History, vol. XLI, n.º 3 (1999): 420-437.

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costumes». Nem a Coca-Cola escapou quando tentou penetrar no mer-cado português. Apesar da publicidade tentadora de Fernando Pessoa – «primeiro estranha-se, depois entranha-se» – Salazar, em carta dirigida ao responsável da multinacional na Europa, prevenia: «Sempre me opus à sua aparição no mercado português [...]. Portugal é um país conservador, paternalista e – Deus seja louvado – “atrasado”, termo que eu considero mais lisonjeiro do que pejorativo.»10 A família era uma das mais

impor-tantes bandeiras de doutrinação ideológica do regime. No domínio da sexualidade sobressaía a função sexual reprodutora da mulher de quem se esperava que fosse uma esposa carinhosa e submissa, além de mãe sa-crificada e virtuosa. Os gestos do quotidiano estavam permanentemente sujeitos a um escrutínio moral.11 Os bailes eram desaconselhados por,

supostamente, conduzirem as jovens à esterilidade e perverterem o ins-tinto de maternidade, além de outros efeitos colaterais indesejáveis como «insónias», «delíquios», «perturbações circulatórias», «fenómenos de au-tointoxicação», «neuroses espasmódicas», «anomalias de memória e lin-guagem», etc.12 Manifestações de afeto amoroso em espaços públicos –

como beijos ou mãos entrelaçadas – eram alvo de repressão policial por atentarem contra os «bons costumes».13

Os ventos de mudança sopraram mesmo antes da revolução de abril. E não só nas baladas de protesto da chamada música revolucionária ou de intervenção, onde a palavra se assumia, declaradamente, como uma arma. O exemplo da música é sugestivo porque também através dela se veiculam valores, éticas de vida, representações sociais. Se fizermos um breve recorrido pelas letras das canções ganhadoras do festival da canção portuguesa para a Eurovisão, nelas encontramos os três critérios, propos-tos por Moscovici,14 para a definição de uma representação social: o

cri-tério quantitativo, que permite dar conta da extensão de uma represen-tação social numa dada coletividade; o critério da produção, segundo o qual a representação social se pode considerar expressão de um coletivo social; e o critério funcional, que permite avaliar o contributo da repre-sentação num dado processo de socialização. Todos estes critérios são Enredos Sexuais, Tradição e Mudança

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10Maria Filomena Mónica, «A evolução dos costumes em Portugal, 1960-1995», em A Situação Social em Portugal, 1960-1995, org. António Barreto (Lisboa: Instituto de

Ciên-cias Sociais, 1996), 221. 11Idem…, 119-121.

12A. G. Molho de Faria, Os Bailes e a Acção Católica (Braga: s. ed., 1938), 106. 13Luís Vicente Baptista, «Os discursos moralizadores sobre a família», in Portugal Con-temporâneo, vol. IV, ed. António Reis (Lisboa: Publicações Alfa, 1990), 359.

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Preâmbulo verificados, ao analisarmos os valores veiculados pelas letras das canções, mesmo segundo o critério mais discutível, que é o quantitativo. Com efeito, as canções festivaleiras são, por natureza, bastante reproduzidas e cantaroladas. Aliás, eram objeto de uma votação à escala nacional, com representação distrital.

Em 1964, quando surgiu a primeira edição do festival, a canção ga-nhadora, interpretada por António Calvário, é uma «Oração», onde o amor aparece associado ao pecado. O pecador confessa que abandonou o seu amor e por isso pede perdão, rogando: «Senhor, a teus pés eu con-fesso; Senhor, meu amor maltratei; Senhor, se perdão aqui peço não me-reço; Senhor, meu amor desprezei e pequei.» No ano seguinte o «Sol de Inverno», cantado por Simone, de novo retrata o drama da mulher aban-donada: «Vivo de saudades, amor; a vida perdeu fulgor; como o sol de Inverno, não tenho calor.» Em 1966, Madalena Iglésias apresenta-nos uma história de amor («Ele e Ela»), em que, surpreendentemente, o so-frimento já não está no lado dela mas no dele. Ele «Só pensa nela a toda a hora, sonha com ela pela noite fora, chora por ela se ela não vem; só fala dela a cada momento, vive com ela no pensamento, ele sem ela não é ninguém.» Mas quem é ele? Ela o diz: «Ele é bom rapaz, um pouco tí-mido até [...]. Ela apareceu e a beleza dela desde logo o prendeu.» Ou seja, os dotes de sedução da mulher passam a ser reconhecidos, como reconhecida passa a ser a sua função de comando na sedução. São in-questionáveis os ventos de mudança. E que coincidência, em 1967 ga-nhou «O Vento Mudou». O drama da mulher abandonada dá lugar ao do homem abandonado: «Oiçam, oiçam, o vento mudou e ela não vol-tou [...]. Ela quis viver e o mundo correr, prometeu voltar se o vento mudar; e o vento mudou e ela não voltou.» Em 1968, com «Verão», chega-nos uma nova desilusão de amor mas agora vivida sem drama, na-turalmente, «como tudo que acaba, como pedra rolando numa fraga, como fumo subindo no ar». Carlos Mendes, o intérprete, desdramatiza: «Foi um sonho que findou, não interessa mais pensar». Se listo estas can-ções festivaleiras é porque, socialmente, não interessa apenas o contexto desta produção musical mas também o processo e, sobretudo, a relevân-cia sorelevân-cial do processo. A mudança. A emergênrelevân-cia de novos valores.

Em 1969, de novo Simone, agora com «Desfolhada», reivindicando uma sexualidade virada para o prazer e não apenas para a reprodução: há «corpo de linho, lábios de mosto», há «fogo posto» e, sobretudo, há a mensagem de que «quem faz um filho fá-lo por gosto». Ou seja, o direito ao prazer é reivindicado, facilitado pela divulgação de métodos contra-cetivos. Como vemos, o campo musical é um domínio da construção do

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género, mas também da sexualização do desejo.15Por isso mesmo, somos

socializados pela música. Na canção ganhadora em 1970 canta-se «Onde vais rio que eu canto». São fluxos de mudança que se continuam a ques-tionar: «Nova luz já te alumia, lá no cais p’ra onde vais...». Em 1971 surge uma «Menina de olhar sereno, raiando pela manhã, de seio duro e pe-queno num coletinho de lã.» E em 1972, os fluxos da mudança culminam numa liberdade desejada e pressagiada. É «A Festa da Vida», orgiástica, com apelos ao excesso: «Que tragam todos os festejos e não se esqueçam de beijos, que tragam prendas de alegria e a festa dure até ser dia [...]. Que tragam cobertores ou mantas, que o vinho escorra pelas gargantas e a festa dure até às tantas.» A tese de Marcuse, enunciada em Eros e

Civiliza-ção,16comprovava-se. A luta por Eros é uma luta política. As mudanças

que se produzem na sociedade são anunciadas pela música. Em 1973, «A Tourada», de Fernando Tordo, é um prenúncio, impaciente, de revo-lução: «Toureamos ombro a ombro as feras, ninguém nos leva ao engano. Toureamos mano a mano. Só nos podem causar dano esperas. Com ban-darilhas de esperança afugentamos a fera. Estamos na praça da Prima-vera.» E a primavera chegaria, enfim, na madrugada do 25 de Abril de 1974, tendo como senha da revolução a conhecida canção «E depois do Adeus», interpretada por Paulo de Carvalho. Suponho que não serão pou-cos os portugueses que, tendo assistido a estes festivais televisivos, terão ainda no ouvido as letras destas cançonetas, o que, a verificar-se, com-prova a força da música como geradora de representações sociais e como, através destas, podemos compreender importantes dimensões da socie-dade. Por exemplo, as suas estruturas sexistas. Produtora de representações simbólicas, a música tem uma natureza epistémica, ou seja, é fonte de conhecimento, do mesmo modo que é uma produção social. A sua rele-vância sociológica não depende da música em si, mas de sua significação e de seus efeitos sociais.17E porque assim é, adiante voltaremos a este

filão de exploração que nos é dado pela análise de conteúdo das letras da chamada música pimba, cujos títulos, aliás, são autênticos lamirés temá-ticos de uma sexualidade desbragada porque reprimida («Ó Maria dá-me o bife»; «Queres ou não queres, Maria?»; «Mexe o Tutu»; «Mole não Entra»; etc.).

15Susan McClary, Feminine Endings: Music, Gender, and Sexuality (Minneapolis: Uni-versity of Minnesota Press, 1991).

16Herbert Marcuse, Eros and Civilization (Londres: Routledge, 1987).

17Dan Sperber, e Deirdre Wilson, Relevance. Communication and Cognition (Oxford: Basil Blackwell, 1986).

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Preâmbulo Que repercussões sociais teve o movimento das Mães de Bragança? É um olhar sobre as estruturas sociais que se reclama. Um olhar munido de lentes progressivas para nos darmos conta dos entrelaçamentos do conjuntural com o estrutural, num arco temporal que nos permita per-ceber o encadeamento dos factos, na sua lógica e no seu sentido. Além de o movimento ter saltado para as páginas dos jornais, que consequên-cias sociais dele derivaram, em termos reais? Para o efeito, tomei o quo-tidiano como sonda de pesquisa de alguns meandros sócio-históricos da região nordestina, Trás-os-Montes, berço do movimento. Em Bragança, o trabalho de campo mais intensivo decorreu nos anos de 2003 a 2008, durante os quais efetuei várias deslocações com pequenas estadias de uma a duas semanas. Em algumas dessas incursões contei com a colabo-ração de colegas e amigos, de entre os quais destaco Ismael Pordéus e Roselane Bezerra, da Universidade Federal do Ceará. Se, na verdade, somos as viagens que fazemos, este livro foi também feito dessas incur-sões etnográficas. Da imprensa regional recebi uma boa colaboração. Agradeço terem--me facultado o acesso às suas instalações, permitindo-me fazer as consultas que desejava. Assim aconteceu com A Voz do

Nor-deste, O Informativo, o Mensageiro de Bragança e o Jornal Nordeste. Além da

consulta de fontes documentais, principalmente da imprensa escrita que reportou amplamente o conflito, avancei com uma estratégia etnográfica.18 Estar no campo permitiu-me uma experiência singular de

ressocialização em bares, casas de alterne e «cafés de subir».19Como bem

sustenta José de Souza Martins,20 a pesquisa empírica não depende tanto

das perguntas que se fazem e das respostas que se registam mas, sobre-tudo, da capacidade de nos deixarmos ressocializar, parcialmente, pelas sociedades que observamos. Desse modo podemos ter acesso aos mapas de significação e de interpretação dos grupos estudados. Deixei-me assim capturar pela lógica dos outros que ia observando, chave de decifração do que ia observando sem compreender. Aquele que pensei poder cons-tituir o maior obstáculo à concretização desta pesquisa – o que não veio a acontecer – foi convencer a minha companheira a dar-me luz verde

18Aliás, desta pesquisa resultaram dois artigos publicados em revistas etnográficas: José Machado Pais, «Mothers, whores..., e José Machado Pais, «Das nomeações às representa-ções: os palavrões numa interpretação inspirada por H. Lefebvre», Etnográfica, vol. XIX, n.º 2 (2015): 267-289.

19Estabelecimentos de dois pisos, onde no térreo funcionam cafés, nalguns casos com semelhanças a tascas, e no superior se alugam quartos, frequentemente à hora.

20José de Souza Martins, Uma Sociologia da Vida Cotidiana (São Paulo: Editora Con-texto, 2014), 74.

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para frequentar os bordéis de Bragança, com o propósito de entrevistar as trabalhadoras de alterne. Intimamente temia que lhe chegassem às mãos alguns livros de metodologia que guardo em minha biblioteca de casa, sustentando que qualquer entrevista no domínio da sexualidade, mesmo de cunho científico, é, em si mesma, uma forma de interação se-xual.21Também entrevistei mães do movimento, alguns maridos

(frequen-tadores ou não dos bordéis), polícias, padres, bem como comerciantes (de cafés, cabeleireiros, restaurantes, etc.), potenciais beneficiários indiretos do negócio sexual. Em relação às trabalhadoras de sexo interessou-me, so-bretudo, desvendar as suas histórias de vida, sem descurar suas vivências afetivas, suas ilusões mas também desilusões, seus medos de ilegalidade, o desenraizamento, a afirmação ou a negação de identidade. Em todas as entrevistas valorizei a reconstrução da categoria de experiência de vida e o refluxo das perceções que dela resultam nos comportamentos e nas ati-tudes. Como é próprio das pesquisas etnográficas estive permanentemente aberto a hipóteses de investigação que resultassem de descobertas de ter-reno e de impulsos analíticos originados por achados que são próprios da chamada grounded theory.22

Em outubro de 2005, na Escola Secundária Miguel Torga, tive um vivo debate com os alunos da turma do 11.º C. Agradeço ao Prof. Al-berto Fernandes e à Prof.ª Berta Alves o apoio que me deram para que o encontro se concretizasse. Os alunos mostraram-se muito participativos tendo revelado uma grande maturidade e naturalidade na forma como abordaram as questões em discussão. O Comando da PSP de Bragança recebeu-me com apreciável cortesia. Agradeço também a simpatia reve-lada pelo Subintendente Amândio Coreia e pela Comissária Ana Maria. Agradecimentos são também devidos ao Dr. Mário Torrão, diretor do Estabelecimento Prisional Regional de Bragança, e ao Sr. Alexandre Cas-tro, da Biblioteca do Município de Bragança. E claro, é enorme a minha gratidão às mães, comerciantes, taxistas, polícias, sacerdotes e pastores religiosos, trabalhadoras de sexo, clientes e proprietários de casas de al-terne pela sua disponibilidade em serem entrevistados. Sem esquecer os videntes e as bruxas a quem recorri, como algumas mães o fizeram, em busca de feitiços, chás de amarração, catimbós, muambas e canjerês. À minha companheira, Terê de Ipacaraí, mãe de meus filhos, agradeço a sua compreensão ao ter-me dado luz verde para frequentar as casas de 21Georges Devereux, De l’angoisse à la méthode dans le comportment (Paris: Flammarion, 1980), 160.

22Barney Glaser, e Anselm Strauss, The Discovery of Grounded Theory: Strategies for Qua-litative Research (Chicago: Aldine Transaction, 1999).

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Preâmbulo luzes vermelhas, ela que sabe que nenhuma moça de alterne seria capaz de me desviar da verdadeira paixão que tenho pela pesquisa. Dada a minha timidez, ainda hoje recordo as minhas fugidias passagens por essas casas luminosas, como um fingido distraído, captando pelo canto do olho o que o olhar parecia querer evitar. Minha gratidão estende-se, enfim, a todos quantos, de uma forma ou de outra, me apoiaram e in-centivaram na produção deste livro: César Barreira, Irlys Barreira, Isabel Barbosa, Isabel Freire, José Rolo, Manuel Villaverde Cabral, Maria do Carmo Serén, Maria da Penha Vasconcelos, Paula Godinho, Tatiana Fer-reira e Vânia Reis, além de Roselane Bezerra e Ismael Pordéus. Queria fi-nalmente sublinhar quanto acolhedora é a cidade de Bragança. Ela me-rece ser visitada, pela sua gastronomia, pelo seu riquíssimo património histórico e paisagístico, pela enorme simpatia das gentes transmontanas. Se por lá continuam a circular prostitutas? Certamente. Onde as não há?

Que acercamentos metodológicos legitimam a abordagem sociológica de um fenómeno que enreda sexualidades conjugais e extraconjugais, mas-culinidades e feminilidades, conflitos de género e de status? Se, como se diz, entre marido e mulher ninguém deve meter a colher, quais os alcances e as limitações desta arrojada incursão pelo terreno dos afetos e das traições conjugais? E que razões metodológicas justificarão a exploração da sexua-lidade dos portugueses, centrando o olhar nos antros da prostituição? Adianto, desde já, uma razão. Através de um olhar de margem podemos mais justamente ultrapassar os etnocentrismos que nos cegam. Da mar-gem vemos melhor as anomalias que nos permitem perceber as normas sociais. Por a margem ser um terreno de contradições, é mais fácil perceber que razões evidentes escondem as razões latentes dessas contradições. E mais facilmente se percebe como um suposto consenso social pode ser francamente sobrelevado pela falta dele. E muito mais realisticamente nos damos conta de como a realidade é muito mais ancha do que a contem-plada por teorias normalizadoras que, de tanto focarem o seu interesse na normalidade do real, acabam por o deixar escapar, contribuindo para o normalizar. Tudo isto para dizer que a prostituição diz--nos muito sobre a sociedade de que faz parte, ao espelhar os valores e as contradições que se vivem, e avivam, em torno da sexualidade.

Como num jogo de xadrez, são múltiplas as variantes de abertura que dão início a um processo de investigação. Nas abordagens de pendor mais positivista o desenho de pesquisa encontra-se submetido a uma su-cessão de fases seriadas e pré-determinadas. O ponto de partida, em regra um quadro teórico que apenas capta realidades que nele se enquadrem, prefigura o ponto de chegada. A variante de abertura define toda a

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se-Enredos Sexuais, Tradição e Mudança

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23José Machado Pais, «O cotidiano e a prática artesanal..., 107-128; José Machado Pais, «As tramas da criatividade..., 45-66.

24Harvey Molotch, «Going Out», Sociological Forum, 9 (1994): 229-239.

25 José Machado Pais, Sociologia da Vida Quotidiana. Teorias, Métodos e Estudos de Caso (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2015 [ed. or. 2005]).

26Patricia Collins, «Learning from outsider within: the sociological significance of black feminist thought», Social Problems, vol. XXXIII, n.º 6 (1986): S14-S32.

27Sobre a metodologia das deambulações ver José Machado Pais, Nos Rastos da Solidão. Deambulações Sociológicas (Porto: Âmbar: 2006) e José Machado Pais, «Deambulações

co-tidianas: a emergência de um método na observação dos sem-teto», Estudos de Sociologia, vol. I, n.º 21 (2015): 35-72.

quência do processo de investigação, estipulando uma linearidade pro-gramada entre uma fase inicial de pesquisa (estabelecimento de premis-sas) e uma fase derradeira (dedução de conclusões). Em vez disso, preferi ir para o campo como um artesão que se move por amor ao ofício,23

fu-gindo desse modo ao estereótipo que por vezes recai sobre alguns cien-tistas sociais que pesquisam o fenómeno da prostituição: o de gastarem uma pipa de dinheiro para, com modelos artificiosos, descobrirem o que qualquer motorista de táxi lhes poderia dizer.24Na presente investigação

a lógica demonstrativa foi sobrelevada por uma lógica de descoberta,25 a

qual, ao permitir-me mergulhar na estranheza de um mundo desconhe-cido, me fez um outsider within,26possibilitando-me descobertas

etnográ-ficas inesperadas.

O diário de campo e o gravador de bolso sempre me acompanharam nas minhas deambulações etnográficas.27 Então, continuando a usar a

metáfora do jogo de xadrez, avancei para o trabalho de campo como um peão capaz de se deixar surpreender com os lances do próprio labor et-nográfico, movido por uma curiosidade espontânea. No trabalho de campo, desenvolvido mais intensivamente entre 2003 e 2008, deambulei por bordéis e cafés de subir, tendo recorrido a outros registos de obser-vação, como atrás referi: fontes documentais, à cabeça das quais a im-prensa escrita que reportou amplamente o conflito; e informações obti-das através de conversas informais com mães traíobti-das, maridos traidores, trabalhadoras de sexo, comerciantes, bruxas, e outras forças vivas e auto-ridades da cidade de Bragança. Pequenos extratos de entrevistas realiza-das, de opiniões expressas em blogues ou em artigos de imprensa apare-cerão recorrentemente ao longo deste livro, não com o propósito de corroborar teorias pré-concebidas ou hipóteses de investigação a serem à força demonstradas mas, simplesmente, para que os leitores se possam dar conta de testemunhos importantes, na análise dos ethos sociais, de

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Preâmbulo quem viveu ou reportou os acontecimentos em análise.28As entrevistas

e, sobretudo, as conversas informais surgidas no âmbito de encontros fortuitos, permitiram-me uma aproximação naturalística à circulação con-flituosa de diferentes representações sociais sobre os enredos sexuais, num contexto de tensão entre tradição e mudança. A este propósito e sempre que se justifique, invocarei o passado como estratégia de interpretação do presente. Esta a razão pela qual valorizarei antigos ritos sociais que muito nos dizem sobre o funcionamento das comunidades transmonta-nas. É o que se verá na análise do rito do «pagamento da cabrita» ou do rito da «festa dos rapazes», protagonizada pelos caretos. Através da análise destes e de outros ritos, ensaiarei uma aproximação antropológica às for-mas imagéticas de que se reveste o tecido social, formado por todos aque-les que participam nesses rituais, permanentemente reinventados. Por fim, explorarei imaginários sociais em torno da «brasileira» e do «macho lusitano», sem descurar os seus contextos históricos. Veremos que esses imaginários, filtrando a realidade, acabam também por a ficcionar, tor-nando-a real em sua ficção. Tanto a mentalidade colonizada quanto a colonizadora prevalecem muito mais tempo do que a do colonialismo institucionalizado. Neste sentido, embora partindo de um estudo de caso, o movimento das Mães de Bragança, viajaremos no tempo e no es-paço do universo íntimo de dois povos (de Portugal e do Brasil) com uma história partilhada, também no campo da sexualidade. Na medida em que a lógica de investigação adotada se abriu deliberadamente às des-cobertas de terreno, os questionamentos foram contínuos. As hipóteses de investigação, bem como as reflexões teóricas, acabaram por dialogar, entrecruzadamente, com legados históricos e sucessivas descobertas de terreno. Esta é a razão que justifica a remissão de uma boa parte da dis-cussão teórica dos achados desta pesquisa para a parte final do livro, na qual também se faz um balanço do percurso metodológico da pesquisa realizada. As explicações teóricas exigiram esforços prévios de descrição, análise e interpretação dos achados etnográficos, historicamente contex-tualizados.

28Para não sobrecarregar o livro com uma catadupa de notas de rodapé, esses extratos de informação aparecerão entre aspas, salvo algumas exceções.

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Capítulo 1

Mães de Bragança

Em abril de 2003, um grupo de mulheres liderado por quatro aguer-ridas mães, desencadeia o que viria a ser conhecido como o movimento das Mães de Bragança. O movimento tinha por alvo as trabalhadoras de sexo brasileiras que circulavam pela cidade transmontana por, suposta-mente, desencaminharem os seus maridos. De facto, à época, a imprensa regional dava conta de oitenta a uma centena de brasileiras residindo na até então pacata cidade de Bragança (Trás-os-Montes), dispostas a con-verter em dinheiro os seus préstimos sexuais. A primeira reportagem de grande impacto público sobre as Mães de Bragança, surgiu na revista

Única, do semanário Expresso, de autoria de Eduarda Freitas: «O ataque

aos costumes. Bragança está virada do avesso» (edição de 10 de maio de 2003). A ideia do movimento surgiu quando duas mães, em desabafos do quotidiano, descobriram que padeciam de semelhantes maleitas con-jugais. Os maridos chegavam tarde a casa, com desculpas duvidosas. A desconfiança avolumou suspeitas, aguçando o anseio da descoberta. Nas roupas deles começaram a farejar vestígios de perfumes denuncia-dores de traições conjugais. Razão suficiente para iniciarem um controlo apertado às horas a que os desencaminhados maridos chegavam a casa. Uma delas revelou-me que o «desalmado», até então «certinho», passou a chegar a casa nunca antes da uma ou das duas horas da madrugada. Quando, preocupada, lhe perguntava por onde tinha andado, o «desca-rado» respondia-lhe que tinha estado com amigos «a beber um copo». A confirmação de que o marido andava na «má vida» surgiu quando o filho – «por mero acaso», cuidou de salientar – captou uma mensagem comprometedora no telemóvel do pai. A uma amiga chegada perguntou se o «seu homem» também andava com «essas putas». Ao saber que tam-bém a amiga andava a ser enganada, sugeriu-lhe que seguisse a pista do telemóvel. Os registos das chamadas telefónicas, escrupulosamente es-crutinados, não deixavam dúvidas. As suspeitas confirmavam-se e o cerco

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apertou-se. Na esquina das padarias, à porta dos cafés ou no mercado, o movimento das mães alastrava e, sobretudo, consolidava-se numa cons-ciência social de traições compartilhadas. Trocavam-se conversas e con-jeturas, lamentos e juras de vingança. Os nomes surripiados das listas de contacto dos telemóveis denunciadores não deixavam dúvidas. Os seus homens andavam nos braços de outras. Sentiam-se traídas.

De entre os «traidores», os que tinham posses «metiam apartamento para elas» e as «facadas» eram dadas, discretamente, durante o dia. A maior parte, contudo, atuava pela «calada da noite». Chegando a casa «tarde e a más horas», os desvairados maridos transformavam as suspeitas em certezas cada vez menos questionáveis. A solidariedade feminina per-mitiu um trabalho de espionagem em rede, tecida de cumplicidades. O movimento das mães começava, então, a criar laços de solidariedade, cooperação, interajuda. Por exemplo, uma mãe contou-me ter pedido a outra que telefonasse ao seu marido, para testar a «reação» dele. A cúm-plice assim o fez. Armada a cilada, perguntou-lhe, ironicamente, como andava o «brasileirão». Segundo a mandante, a reação dele foi de pasmo, «ficou atrapalhadíssimo, até gaguejava».

A vanguarda do movimento aprontou então um manifesto que foi en-tregue ao Governador Civil, ao Presidente da Câmara e ao Comandante da Polícia de Segurança Pública de Bragança. Com aspeto formal de re-querimento, numa cópia que me foi cedida por uma das mães, lia-se:

Pedimos desculpa pela ousadia que tomamos, dirigindo-nos a V. Ex.ª no sentido de ser o nosso porta-voz, de nos ajudar a minimizar o flagelo que se abateu sobre Bra-gança e em particular nos nossos lares.

Como parte integrante da Sociedade em que vivemos, cabe-nos a todos dar as mãos e lutar por uma região mais justa, mais fraterna, mais viva.

Uma vez que V. Ex.ª é responsável pelo nosso Distrito, também esta responsabi-lidade lhe cabe, bem como à Igreja e outras forças Vivas da Terra.

Apelamos por isso ao vosso coração, à vossa sensibilidade e actuação, pois os tem-pos não são de indiferença, de acomodação, mas de luta; de luta por uma cidade mais digna, onde se possa respirar paz, tranquilidade, segurança e bem-estar.

Bragança cresceu imenso nas últimas duas décadas, fruto do nascimento do En-sino Superior e das condicionantes que este impõe e carece; mas não foi este «noma-dismo» que veio «estragar» a nossa cidade. Estes jovens vieram dar outra vida, outra dimensão, cultura, valor e alegria a Bragança.

Estes jovens vão servindo de pólen às abelhas, às vespas e zângãos! Sim, porque o cortiço, a colmeia, era e é a Terra [...].

Bragança recebe de braços abertos quem venha por Bem, como é o caso dos «Arau-tos do Evangelho» [igreja brasileira que se implantou em Bragança]. Mais e fiquem; Enredos Sexuais, Tradição e Mudança

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há sempre aqui um cantinho para pessoas de Bem, que semeiam a paz, a alegria e o sentido da VIDA.

Pessoas que plantem a discórdia, o imoral e vícios rejeitá-las-emos.

Queremos evitar fazer justiça pelas nossas mãos, mas se a isso formos obrigadas, não nos esquivaremos, pois queremos, necessitamos, e merecemos ter paz nos nossos lares, nos nossos corações.

O flagelo da droga tem fulminado vidas e corações que jamais deixarão de sangrar! Os valores humanos têm-se degradado aceleradamente e não obstante esta situação calamitosa de nos sentirmos vivas-mortas com tanto sofrimento, somos agora inva-didas e fustigadas por dezenas de prostitutas aquarteladas em boites, mesmo durante o dia, em bairros residenciais, em todo o canto e esquina da nossa cidade.

Como é possível permitir-se a continuada abertura de casas de alterne, onde o fla-gelo da droga e da prostituição é incrementado?! Tudo isto contribui para uma maior degradação cultural e social.

Para onde caminha Bragança? Para onde a deixam ir? Que interesses económicos ou outros existem por trás de tudo isto?!!...

E nós filhas da Terra, aconchegamo-nos na tristeza e destruição dos nossos Lares, com o peso do sofrimento, porque elas vieram aliciar os nossos maridos com falinhas meigas, canas-de-açúcar e droga à mistura!

Sabemos que, desde o início dos Tempos sempre houve prostituição, mas o que está a acontecer em Bragança é uma autêntica onda de loucura que tem de ser combatida e travada [...].

Vamos unir-nos e combater o que existe de mau, errado e de menos bom; prevenir o que ainda está por chegar e fazer guerra aberta aos «Comerciantes» sem escrúpulos. Contamos com a ajuda de V. Ex.ª, levando a quem de direito do «Governo» esta nossa preocupação e petição.

A todas as medidas que possam vir a ser preparadas e divulgadas, para dar cobro a estas situações, estarão as Mães de Bragança de corações abertos para colaborar e cumprir.

Este cantinho à Beira-Mar plantado, cantado por poetas e escritores; esta Terra de Santa Maria, conhecida e admirada nos quatro cantos do Mundo, terá que voltar a ser cantada com VOZ VIVA e com o coração de quem sente o pulsar da VIDA!

Mães de Bragança

O manifesto, segundo consta com «centenas de assinaturas», foi foto-copiado e badalado, lido e relido. O Presidente da Câmara de Bragança tomou o manifesto como pretexto para se equacionar a legalização da prostituição1 e solicitou um reforço de policiamento, temendo a invasão

Mães de Bragança

1Portugal viveu sob um longo período de regulamentação que veio do século XIXe se

prolongou até 1962 (decreto-lei n.º 44579 de 19 de Setembro de 1962). A partir desta data a prostituição passa a ser proibida, assim como o proxenetismo. Mas ela continuou a exercer-se, mesmo em áreas onde tradicionalmente sempre se exercera. No Bairro Alto,

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da cidade por hooligans do sexo. Em contrapartida, o bispo de Bragança reivindicou «esforços redobrados» para garantir «dignidade e santidade ao casamento cristão». A polícia intensificou a cadência das rusgas sobre as mais suspeitas casas de diversão noturna: Top Model, Casa Branca, Mon-telomeu, Nick Havana (outrora Estúdio 15), Bruxa, Bulir e Rabala. Algu-mas tinham sisteAlgu-mas sofisticados de vigilância. Quando os proprietários pressentiam as rondas da polícia, escondiam a maior parte das «meninas», como as designavam. As imigrantes ilegais temiam a subcomandante da PSP de Bragança, por ser mulher. Preferiam as rondas dos agentes policiais masculinos pois, por dotes corporais ou falinhas mansas, sempre acredi-tavam poder trocar o estatuto de perseguidas pelo de seduzidas. As rusgas policiais foram adquirindo uma crescente visibilidade pública, com ampla cobertura da imprensa regional e da nacional. O Jornal de Notícias pespe-gou em primeira página: «Homens de Bragança de cabeça perdida» – tí-tulo que, eventualmente, terá acirrado sorrisos maliciosos. Em entrevista à RTP, o chefe da polícia local confirmou o cerco às chamadas casas de alterne, avançando com uma descoberta que depertou um consenso ines-perado: as casas de alterne – assim chamadas por as mulheres irem alter-nando no contacto com os homens – não tinham livro de reclamações. Concordaram uns porque os serviços eram clandestinos; anuíram outros porque as meninas faziam um «trabalho impecável».

A imprensa ampliou o agendamento das notícias sobre o movimento das Mães de Bragança. Do Brasil também chegavam os primeiros ecos do movimento. Em Goiânia, capital do estado de Goiás, o jornal O

Po-pular dava conta do movimento das mães lusas, apontando Portugal

como nova rota da prostituição brasileira. Começaram então a surgir si-nais de que o movimento das mães podia alastrar a outras cidades do norte de Portugal. Em 28 de maio (2003) o Jornal Nova Guarda noticiava que, graças ao movimento das Mães de Bragança, eclodira na região da Guarda um veemente protesto contra os bares de alterne, mas sobretudo contra as mulheres que lá trabalhavam. Na altura havia, em média, cerca de dez casas de alterne em concelhos como Pinhel, Celorico da Beira, Aguiar da Beira, Trancoso e Seia. Em Malta (Pinhel), um grupo de mães mais afoitas formou um movimento denominado Mulheres de Malta. Mobilizaram-se contra uma casa de alterne – O Travão – explorada por

Enredos Sexuais, Tradição e Mudança

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por exemplo, ainda até há bem pouco tempo eram muitas as idosas que sobreviviam como amas de filhos de prostitutas. Ver Manuel João Gomes (Anotações), in Alfredo Amorim Pessoa, Os Bons Velhos Tempos da Prostituição em Portugal (Lisboa: Antígona-Fre-nesi, 2006 [ed. or. 1887]), 124. O Código Penal de 1982 acentuou a criminalização do proxenetismo, despenalizando a prostituição.

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Mães de Bragança

uma brasileira, de 40 anos de idade, com outras compatriotas traba-lhando à sua conta. O Travão era paragem obrigatória de destravados malteses e outros portugueses. Um inquieto observador, provavelmente dos de cabeça perdida, previa, assustado, talvez com ironia: «Se a moda pega aparecem também as mães de Lisboa, Porto, Coimbra, Leiria, Braga...»

Apesar da revolta das mães, o negócio das casas de alterne continuou a prosperar e a proliferar. Em junho, na localidade do Sortelhão, freguesia de Santana d’Azinha (concelho da Guarda), um pacato café transformou--se do dia para a noite em casa de alterne. Os moradores da aldeia, com as «mães» à frente, revoltaram-se contra a «pouca-vergonha», reclamando a presença da Guarda Nacional Republicana: «Nunca ninguém falou mal da nossa aldeia, nem das nossas gentes [...]. O nosso nome [Santana d’Azinha] era tão bonito e agora associam a freguesia à terra das meninas [...]. A casa tem que ser fechada e se não vai a bem, vai a mal.» A luta iniciada pelas Mães de Bragança contra as trabalhadoras de sexo começa a ganhar contornos de oposição moral entre a decência e a indecência, a fidelidade e a promiscuidade, a castidade e a impureza, a virtude e o vício.

Perante o alastramento do movimento das Mães de Bragança há os que anseiam – e também os que temem – que por todo o Minho, Alto Douro e Trás-os-Montes as «bravas mães» mostrem a raça e as virtudes guerreiras das mulheres do norte de Portugal. Há mesmo quem evoque Maria da Fonte, líder de uma histórica revolta popular (maio de 1846) com grande participação de mulheres rurais que, alastrando por todo o norte de Portugal, derrubou governos, mergulhando o país numa guerra civil.2 Uma das causas da sublevação havia sido a proibição dos enterros

dentro das igrejas, por razões de saúde pública, mas o povo olhava a lei como antirreligiosa, acreditando ter a «chancela do diabo e da Maçona-ria». Agora, com o levantamento das mães contra as prostitutas brasileiras, as mesmas razões de «saúde pública» voltavam à baila. Num caso, enter-rados fora da igreja, os mortos ficavam desprotegidos. Noutro caso, en-terrados nas casas de alterne os maridos desgovernados deixavam as mães desprotegidas, os filhos desamparados e eles próprios ficavam sob a ameaça de doenças sexualmente transmissíveis. Tudo por «obra do diabo». Mas agora o diabo vestia a pele de mulher, de uma sedutora mu-lher vinda de além-mar, com «falinhas meigas e canas-de-açúcar».

2Ver Maria de Fátima Bonifácio, História da Guerra Civil da Patuleia, 1846-1847 (Lisboa:

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Os ecos do movimento das Mães de Bragança galgam fronteiras quando a Time publicou uma reportagem intitulada «When the Meninas Came to Town», republicada, simultaneamente, pela revista Visão, em 16 de outubro de 2003. Retratando a cidade de Bragança como «o novo bairro de prostituição europeu», a reportagem sugeria que «Bragança não passava de uma velha cidade portuguesa distante, quando as prostitutas brasileiras chegaram – e as esposas começaram a ripostar». A revista es-gotou-se rapidamente e muitas fotocópias começaram a circular entre amigos e conhecidos. De que falava a Time? Logo no começo, a reporta-gem desfazia uma mentira desgastada que alguns homens usavam para justificar chegar a casa... ia a dizer tarde e a más horas, ou então fora de horas, mas a expressão mais apropriada é horas tardias, uma vez que as duas primeiras arrastam juízos de valor sobre as horas. Que elas são todas iguais por conterem a mesma quantidade de minutos e segundos já o sa-bemos, mas são diferentes quando as inscrevemos numa avaliação sub-jetiva ou quando as olhamos no mostrador de um juízo moral. A repor-tagem seguiu nos rastos de uma «mãe de Bragança» que a todo o custo procurava desmascarar o marido que a enganava, com a justificação sa-fada de que chegava tarde a casa por ficar a jogar às cartas com os amigos. Então, numa noite, tomou a decisão de ir à sua «caça». Com a pequena «filha bebé» nos braços, percorreu os bordéis mais suspeitos da cidade transmontana até que descobriu o carro do marido à porta de um deles, indício indiscutível de que se o carro estava estacionado à porta do bordel é porque o marido porta adentro também estava e através dela haveria de aparecer. Ficou então à espera, o olhar fixado na porta do bordel, aguardando que ele saísse, sem saber como o abordar. Quando o marido surgiu à porta, apenas o conseguiu fitar, sem palavras. Ele olhou para trás, para o retiro das meninas, depois entrou no carro e arrancou.

Nem todas as situações em que um marido é desmascarado – palavra que retrata bem a falsidade das aparências, a mentira denunciada pela rea-lidade negada – decorrem no clima de pacificidade que a Time sugere, como adiante se verá. A contenção descrita poderá justificar-se pela pre-sença das jornalistas. Como quer que seja, quer as palavras que insultam quer aquelas que se silenciam podem ser originadas por um mesmo sen-timento de desfeita ou de revolta, os lamentos colados à indignação. A filha bebé nos braços acentua um estatuto que não está ao alcance de qualquer. Sair sozinha à noite não é socialmente aceitável ou normal para uma mulher casada, tendo em conta os falatórios que podem surgir. Porém, o normal perde razão de ser perante uma anormalidade ainda maior: o revés de uma infidelidade conjugal, arrastando toda a família

Enredos Sexuais, Tradição e Mudança

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para a desgraça. Por isso mesmo, ela não saiu sozinha para a noite. Levou nos braços a filha, desse modo sinalizando a condição de mulher aban-donada, sem ferir os princípios do pudor feminino. A filha nos braços dava visibilidade ao estatuto de mãe, era um convincente argumento con-tra suspeitas infundadas de quem a visse con-transitar por caminhos desvaira-dos: «Se visse alguns dos sítios por onde andei, chamava-me maluca», con-fessou à jornalista da Time.

Pode parecer surpreendente que algumas mães, desculpabilizando os maridos, arremessassem o seu ódio em direção às trabalhadoras de sexo. Entrevistada pela Time, uma das impulsionadoras do movimento das Mães de Bragança, embora admitindo a culpa dos maridos, afiançava que elas eram «as mais sujas». Em contrapartida, também entrevistado pela Time, o proprietário de uma das mais conhecidas casas de alterne culpou as esposas portuguesas pelo seu conservadorismo, acrescentando: «Há centenas de casamentos que correm mal, e não é só por causa das brasileiras.» Referiu também a disponibilidade das meninas para atuarem como confidentes: «São como psicólogas. Ouvem estes tipos. E eles con-tam-lhes coisas que nem aos advogados confessam.» Um funcionário do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras também apontou o dedo às mulheres casadas: «No casamento, as mulheres veem-se exclusivamente como mães [...]. Esquecem que também devem ser boas esposas e companhei-ras.» Finalmente, uma brasileira vivendo há alguns anos em Bragança, opinou: «Antes do casamento, as mulheres fazem-se atraentes para os homens. Depois deixam andar. O tempo é curto; preocupam-se com o dinheiro, chegam os filhos.» A Time acabaria ainda por reproduzir o de-poimento do proprietário de uma casa de alterne que especulou: «Os maridos chegam a casa e encontram as mulheres a cheirar a refogado, cheias de problemas e de mau humor, mas as brasileiras andam limpas, cheiram bem e são ternas.» As Mães de Bragança sentiam-se indignadas e ultrajadas, psicologicamente abaladas, feridas em sua dignidade.

A imprensa portuguesa ecoou os efeitos da reportagem da Time, com títulos condizentes: «Bragança em estado de choque», «Mães de Bragança nas bocas do mundo», etc. Alguns bragançanos não gostaram de ver a sua terra badalada aos «quatro ventos», e não propriamente pelas melhores razões. Um deles, num legítimo desconforto, reclamou: «Envergonho--me que a minha cidade seja conhecida por este motivo [prostituição] e não por outros encantos. Somos terra hospitaleira com boas paisagens, monumentos lindos e uma ótima gastronomia [...]. É verdade que há prostituição, mas a ideia que a capa da Time transmite não é real. A minha cidade não tem prostitutas a venderem-se nas ruas! Venham a Bragança

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mas por outros motivos». E motivos, de facto, não escasseiam. A gastro-nomia é um tesouro de uma região emblemática dos enchidos de fumeiro, da posta de vitela e das alheiras mirandesas. Outros, contudo, desvalori-zando os acontecimentos, limitavam-se a reconhecer: «é a globalização da miséria e do desespero». Além da globalização, evocavam-se também as migrações, as máfias, a crise de valores, a desmoralização dos costumes, os media, o consumismo, o machismo, etc. O advogado das boîtes refe-renciadas na Time – Montelomeu e Top Model – anunciou que iria pro-cessar a revista por difamação. O bispo de Bragança mostrou-se indignado com o facto de uma tão prestigiada publicação ter dedicado oito páginas à prostituição da «sua cidade», ainda por cima cabeça de cartaz na capa da revista. Um empresário da noite, ironicamente, ou equivocado com o alcance das palavras do bispo, rejubilou de contentamento: «A Igreja ficou do nosso lado!» Alguém, conotado politicamente com a esquerda radical, sugeriu que a reportagem da revista se inscrevia numa «campanha difa-matória, especialidade da imprensa americana vendida aos grandes inte-resses do capital». Em retaliação, o governo de Portugal decidiu suspender a publicidade na Time, alusiva ao Campeonato Europeu de Futebol que se realizaria no ano seguinte, em 2004, apesar de alguns protestos irónicos: «Francamente, não entendo o que há de incompatível entre futebol e me-ninas.» Curiosamente, o slogan publicitário que a organização portuguesa do evento fizera anunciar na Time baseava-se num sugestivo jogo de pa-lavras que poderia ser alvo de segundas interpretações, à luz da reportagem da revista sobre a prostituição: «In Portugal, the extra-time is always the best part of the game» (isto é, «em Portugal, o prolongamento é sempre a melhor parte do jogo»).

Os pais dos alunos a estudar em Bragança, residindo ou não na cidade, ficaram apreensivos. Uma aluna da Escola Miguel Torga comentou: «um estudante que venha do Porto para cá, os pais telefonam, preocupados... “Mas veem-se [as prostitutas] na rua? Olha lá! Tu tem cuidado!”» Outra queixou-se: «Quando eu vou ao Porto, tenho lá família e falo com pes-soas de lá, ninguém nos deixa em paz por causa do que aconteceu! Está sempre toda a gente a gozar connosco a pensar que Bragança é uma casa de alterne.» Após a reportagem da Time, a cidade, outrora pacata, foi inundada de jornalistas, cadeias de televisão nacionais e internacionais, assediando toda a gente, nomeadamente as afamadas brasileiras. Três delas, provavelmente em situação ilegal, ao serem abordadas por um jor-nalista do Correio da Manhã, desataram a correr aterrorizadas, tendo uma delas pegado nos sapatos para, descalça, mais facilmente se esgueirar. Mais tarde, uma delas comentou: «Nos primeiros dias foi difícil.

Chegá-Enredos Sexuais, Tradição e Mudança

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mos a estar vários dias sem ir à rua com receio de represálias. Depois, pouco a pouco, tudo normalizou.»

Bragança ficava com a fama mas, em abono da verdade, nada se pas-sava de diferente do que ocorria em outras regiões do país. Alguém pro-testava: «Há mais putas, paneleiros e coisas várias e afins em qualquer bairro grande de Lisboa, Londres, Paris, Berlim ou Amesterdão do que em todo o distrito de Bragança.» O Correio da Manhã, com base em in-formações disponibilizadas pela Polícia Judiciária, calculava cerca de no-vecentas casas de alterne no país, envolvendo mais de trinta mil prosti-tutas portuguesas e estrangeiras e movimentando 2,5 mil milhões de euros. O mesmo jornal, citando a diretora do Ninho, uma das mais co-nhecidas instituições de apoio às prostitutas, referia que só numa rua de Lisboa se encontravam vinte casas de passe em atividade, mais do que em toda a cidade de Bragança. Os ânimos agitavam-se e as opiniões os-cilavam entre o otimismo e pessimismo, a deceção e a ilusão. Numa sim-plificada análise económica de custos-benefícios, alguém sugeria, espe-rançado: «Pode ser que o assunto em questão sirva para concretizar aquilo onde a EXPO’98 falhou redondamente: trazer turistas para o in-terior do país.»

A Time abordava também a situação das controversas brasileiras, ques-tionando as condições em que haviam chegado a Portugal. A maior parte saberia ao que vinha, outras imaginavam o que as podia esperar e outras ainda viram-se confrontadas com uma situação de todo inesperada. As que sabiam ao que vinham costumavam ter a viagem financiada para Portugal. A dívida relativa aos custos da viagem, dado o corpo ao mani-festo, era mensalmente amortizada até ser integralmente liquidada. A Time noticiava também a existência de patrões que tinham por hábito reter-lhes os passaportes para que não ensaiassem tentativas de fuga. Re-latava, a propósito, o caso de uma brasileira que respondera a um anún-cio de jornal para trabalhar como criada. Quando se viu metida no en-redo da prostituição, conseguiu fugir e denunciar o patrão, vindo mais tarde a arranjar colocação num consultório veterinário. Nos tempos livres lia cartas de tarô. Uma médica do Centro de Saúde de Bragança confir-mou à célebre reportagem da Time que «muitas raparigas não sabiam que seriam prostitutas quando aceitaram vir». No entanto, mais ou menos conformadas com o pesadelo, não lhe apareciam com «preocupações es-tereotipadas», como o medo de sida, por exemplo, uma vez que tinham por hábito exigir aos clientes o uso de preservativo. Em contrapartida so-friam de «maleitas crónicas», como dores de cabeça, insónias e «doenças imaginárias»: «Têm problemas psicológicos, em especial ansiedade.

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Temem não poder vir a ser mães, por causa de alguma doença [...]. Não estão em paz consigo mesmas». Ou seja, a ansiedade acaba por refletir a insegurança dos seus modos de vida, a começar pela situação de ilegali-dade em que muitas delas vivem. São apenas portadoras de um passa-porte de turista cuja validade caduca ao cabo de três meses. Depois saem para fora do país retornando por mais três meses e assim sucessivamente. As que vêm ao engano estão permanentemente sujeitas a ameaças de violência física, a interrogatórios policiais, a uma possível deportação.

As brasileiras com ocupações fora dos circuitos da prostituição come-çaram a sentir-se olhadas com desconfiança e algumas manifestaram pu-blicamente o seu mal-estar com o crescimento do número das compa-triotas de má fama: «Andam por aí em grandes grupos. Há muitas queixas das mulheres da sociedade local. Sentem-se incomodadas.» De facto, quando circulavam pela cidade tinham por hábito andar em grupo. Jun-tas iam às compras ou ao cabeleireiro. Um jovem estudante reclamou: «Eu conheço uma brasileira, que é amiga da minha família, veio cá a Bra-gança, e então um senhor, na rua, foi muito mal-educado com ela, per-guntou-lhe se era prostituta.» Um outro jovem estudante reforçou: «Acho que se criou aqui uma coisa em volta da mulher brasileira. Qualquer pes-soa que vá a um supermercado, a uma loja... veem uma brasileira pensam logo que é uma prostituta.» Ao sentirem-se olhadas de lado, prostitutas ou não, as brasileiras começaram a reclamar um tratamento condigno. Uma trabalhadora de sexo reclamou para a Time: «Tenho número de con-tribuinte e conta bancária. Sou uma pessoa normal.»

Entretanto, por todo o Portugal se descobrem casas de alterne com brasileiras, dando-se visibilidade a uma realidade que existia camuflada. Os jornais dão conta dessa realidade, fazendo alusão ao novo colorido das cidades, à graciosidade dos corpos delas, à meiguice do seu falar. Al-guns bastiões de resistência merecem destaque na imprensa. Por exemplo, numa reportagem sobre a noite transmontana, o Jornal de Notícias (de 26 de outubro de 2003) apresenta Miranda do Douro como «um oásis junto à fronteira [de Espanha]». Uma «mirandesa de gema» confirmava ao re-pórter: «Ainda não temos cá dessa raça.» E uma outra, com indisfarçável orgulho, corroborava: «Deus nos livre de um dia virem para cá as brasi-leiras dessa vida.» Na imprensa mais conservadora surgem patrióticos manifestos de apoio ao movimento das Mães de Bragança: «Vós, mães de Bragança, bradais aos céus aquilo de que sois vítimas. Sois vítimas das mulheres de vida fácil que vos tornam difícil viver [...]. Ignorai as vozes do Inferno e socorrei vossos maridos e filhos de se afogarem nos vícios da droga e dos feitiços que os mantêm escravos do desejo. Meretrizes!

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Hereges! Fogueira!» Adiante voltaremos a estes apregoados feitiços e a outras artimanhas do «diabo».

Curiosamente, há quem veja no movimento das Mães de Bragança uma réplica de outros congéneres passados em telenovelas brasileiras transmitidas pela televisão portuguesa. Um astuto jornalista da Visão dava conta do atraso com que os tumultos de outras épocas e latitudes haviam chegado a Portugal: «Já vimos esta história noutras latitudes, noutras épo-cas, na realidade e na ficção. Divertimo-nos com ela, em “Gabriela Cravo e Canela”, em “Roque Santeiro” ou em “Tieta do Agreste”. E apaixonámo--nos». Pelo mesmo diapasão alinhava, no Jornal Nordeste, um conhecido transmontano, deputado socialista, rejeitando que a sua região pudesse ser comparada à que é retratada por Camilo Castelo Branco, em A Queda

de um Anjo: «Afinal, os últimos acontecimentos colocam-nas mais ao nível

da telenovela do que ao nível do romance. O que se tem passado à volta das designadas Mães de Bragança é digno de ser olhado como se de uma produção brasileira se tratasse. Daquelas que tanto sucesso tiveram há uns anos e que faziam entrar em nossas casas cidades imaginárias, do interior distante, com os seus dramas, os bares suspeitos, as equipas de puritanas decididas a limpar a cidade, os autarcas, os jornalistas, os intelectuais a teorizar sobre o assunto. Estava lá tudo.»

O levantamento das mães desencadeou fervorosos debates sobre a le-galização da prostituição. Uns opinavam a favor: «Não castrem as von-tades dos seres humanos... legalizem tudo e dêem condições de trabalho a todos... e deixem de falar desse assunto de alternes.» Outros acentuavam a inevitabilidade do vício: «Não é correndo com as profissionais do sexo e encerrando os bares de alterne que os homens [maridos] passarão a calçar as chinelas e a assumir posturas culturais de verdadeiros e fiéis che-fes de família.» Os do contra avançam medidas radicais: «Coloquem as mulheres em trabalhos honestos e os bandalhos dos chulos na cadeia.» A delegação de Bragança do Sindicato dos Professores do Norte decide organizar um colóquio sobre a grande discórdia: «Legalização da prosti-tuição: sim ou não?» Quanto mais o tema é debatido menos consenso se gera. Uma representante do Movimento Democrático das Mulheres referiu que «Bragança é apenas a ponta do icebergue» de um poderoso negócio que atinge milhões de mulheres. A presidente do Ninho, asso-ciação de apoio às prostitutas, sustentou que os negócios da prostituição superam os do tráfico de droga e rivalizam com o de armas. Ambas se manifestaram veementemente contra a legalização da prostituição. Pelo contrário, um professor da Universidade de Trás-os-Montes defendeu a «legalização imediata» da prostituição, dado tratar-se de uma atividade

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de «prestação de serviços sexuais», efetuada por «trabalhadoras». Vendo a questão pelo lado da «inserção profissional», um outro defensor da le-galização reivindicou uma atitude liberal: «Porque é que podemos vender o nosso trabalho físico, o nosso trabalho intelectual, torradeiras, TV, micro-ondas e telemóveis e demais parafernálias e não podemos vender o corpo? [...]. Ir às putas não é obrigatório, só vai quem quer!» Se a ques-tão, na aparência, se resumia em ir ou não às «putas», na realidade remetia para os pressupostos morais das disputas.

No debate, as mulheres – com as mães em destaque – foram as que mais afrontaram os defensores da legalização da prostituição, algumas delas declarando-se «chocadas» com tão «ignóbeis propostas». Houve quem tentasse demovê-las: «É chocante? Quem acha que sim, talvez prefira a proliferação da sida.» Um conhecido empresário da noite en-tregou na Assembleia da República um abaixo-assinado com mais de cinco mil assinaturas, requerendo a legalização da prostituição. Como a resposta tardava, os mais impacientes decidiram apelar diretamente ao presidente da República: «O Sr. Presidente da República [...] devia pres-tar mais um dos seus serviços à nação, isto é, tornar legais todas as “po-cilgas” ilegais. Ficava o problema resolvido e era coerente com o seu pensamento – “quando o Estado não consegue fazer cumprir a Lei, deve mudá-la”». Os mais românticos ou os mais irónicos nem por isso dei-xavam de se mostrar menos determinados, esgrimindo argumentos mais ou menos convincentes, dependendo do ponto de vista: «Há pouco tempo um velhote morreu quando estava com uma prostituta. Ele ao menos morreu feliz.»

Alguns observadores, armados de destreza sociológica, alinhavavam en-redos explicativos de maleitas conjugais. Urdiduras de tramas para explicar vidas de dramas. A fuga dos maridos seria consequência de disfunções ma-trimoniais, indiciadas por uma prova indesmentível: «esses gajos cheiram a putas e vinho», expressão equivalente a «facada num casamento desfeito». O cheiro «a putas e vinho» aparece aqui como sintoma de um problema cuja solução mais o complica. Um dos entendidos desta teoria prática sus-tentava: «Infelizmente é verdade. As meninas de Bragança não vão a casa das senhoras roubar-lhes os maridos, não vão lá chamá-los, não vão lá buscá-los. Eles vão de livre vontade. E se vão, é certamente à procura de algo que há muito deixou de existir em casa.» Ao enfatizarem-se os pro-blemas de relacionamento sexual, ganham-se argumentos para desculpa-bilizar as prostitutas. Numa coluna de opinião de um jornal regional lia--se: «Nesta porcaria toda quem leva as culpas é quem não as merece: as prostitutas. Desculpem, mas a responsabilidade de manter um casamento

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