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4.1 Quadro de denunciados do espaço familiar

4.1.2 Mãe acusada

Retornando ao gráfico, percebe-se que em segundo lugar aparece como

125 a esta categoria se enquadra tanto a questão da mãe biológica quanto da mãe adotiva, apesar de esta representar menos de 10% do total. No geral, dos 3.741 registros, as mães denunciadas representaram 30% dos casos, ou seja, 1.116 denúncias.

A mãe aparecer como um dos principais sujeitos acusados (o que pode ser constatado em nível nacional51) nos faz refletir sobre o senso comum construído em torno dela, pois “sacralidade”, “amor incondicional”, “amor nato” estão fortemente associados a sua figura.

Badinter (1985) é uma das autoras que questiona essa natureza instintiva e universal do amor materno, um amor considerado inato e que foi mitologicamente construído. “O amor materno não se encontra inscrito na profundidade da natureza feminina. A dedicação à criança ora se manifesta ora não” (CORREIA, 1988, p.366).

O desenvolvimento do culto ao amor materno teve seu apogeu nos séculos XIX e XX, nos quais, devido às condições econômicas e políticas, o homem foi levado a sair de casa e a entregar toda a responsabilidade desta à mulher. A mãe, anteriormente restrita a uma função geratriz, assumiu também o papel de educadora e passou a ter uma função social. Cabia à mulher a responsabilidade pela saúde e pelo bem-estar dos membros da família e ampliava-se sua responsabilidade como dona de casa no controle dos filhos. A ela foram delegadas, também, responsabilidades pelo desenvolvimento emocional dos filhos (TOURINHO, 2006, p.10).

Esse culto ao amor materno, como se percebe, passa a ser construído por volta do século XVII, principalmente no final do século XVIII (isso especificamente na França), através da tarefa de amamentação dos filhos por parte das mães, tarefa esta que era incumbida anteriormente às amas, onde as crianças eram entregues aos seus cuidados desde o nascimento e estas eram responsáveis por criá-las e garantir sua sobrevivência física. Amamentar não era uma atividade nobre para uma dama da sociedade da época. Com a imposição das normas higienistas no cotidiano da família, feita por especialistas da época, a mulher passa a ocupar um novo lugar no seio da família, sendo agora responsável por garantir a saúde e o bem-estar desta. A sobrevivência das crianças agora é prioritária e o abandono do aleitamento é considerado injustiça para com o filho (TOURINHO, 2006).

51 Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/disque100/balancos-e-denuncias/balanco-disque-100-2016 apresentacao-completa/>. Acesso em: maio de 2017.

126 Algo que contribuiu para a construção dessa exaltação ao “amor materno” era a analogia que era feita das mães com a imagem da mãe de Deus, onde estava presente a questão do sacrifício pelo filho, do amor que tudo suporta, da dedicação e cuidados dispensados.

A maternidade torna-se um papel gratificante pois está agora impregnado de ideal. O modo como se fala dessa ‘nobre função’, com um vocabulário tomado à religião (evoca-se frequentemente a ‘vocação’ ou o ‘sacrifício’ materno) indica que um novo aspecto místico é associado ao papel materno. A mãe é agora usualmente comparada a uma santa e se criará o hábito de pensar que toda boa mãe é uma ‘santa mulher’. A padroeira natural dessa nova mãe é a Virgem Maria, cuja vida inteira testemunha seu devotamento ao filho” (BADINTER, 1985, p. 223).

Segundo Tourinho, a mulher que não “desejasse exercer sua vocação materna era condenada por violar as leis da natureza”, nisso, era considerada uma

“desviante por negar o sentimento de amor inerente à condição feminina” da época

(2006, p.10).

A falta de amor era tida, segundo Banditer, como um crime imperdoável, que inclusive não poderia ser remido por nenhuma virtude, pois a “mãe que experimenta tal sentimento é excluída da humanidade, pois perdeu sua especificidade feminina”. A autora vai mais longe e explica que ela era “meio monstro, meio criminosa” e conclui dizendo que a representação desta mãe “é o que poderíamos chamar de ‘erro da natureza’” (1985, p.275).

Correia (1988) coloca que pelo século XIX “era impossível conceptualizar

mães boas e más; não existia um grau intermédio; as mulheres ou eram consideradas

boas ou incapazes e indignas” (1988, p.369).

Penteado (2012), ao comentar as reflexões de Banditersobre o sentimento maternal, ressalta uma característica posta pela autora: a de que o amor materno não

é algo “dado”, mas sim um amor “conquistado”.

[...] Na perspectiva de Banditer, o amor materno não é “dado”, mas sim “conquistado” e, acrescentamos, construído. Porém, existe uma crença cultural de que esse amor seja algo natural, que nasce com as mulheres como uma verdadeira característica feminina. Essa convicção se dá basicamente por duas razões: a primeira, devido à imposição feita pela cultura, responsável pelo desenvolvimento do modelo de amor materno conhecido atualmente e com o qual temos convivido desde o século XIX; a segunda, como idealização entre a relação mãe-filho que direciona ao desejo de união perfeita, fantasia de completude que protege o indivíduo das ansiedades e medos de separação e perda [...] (BANDITER, 1980 apud PENTEADO, 2012, p. 32).

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Penteado (2012) ressalta que há tempos esse amor e mesmo condição colocada às mulheres frente à maternidade vem sendo questionada. Muitas mulheres

não se sentem “chamadas” a assumirem essa função. Um dos contributos a isso são

as transformações decorrentes no mundo do trabalho, onde esta passou a ocupar um novo espaço no mundo social. Todavia, a “pressão” para que estas desempenhem seu papel de mãe de acordo com os padrões estabelecidos pela sociedade ainda é algo marcante, o que nem sempre condiz com os pensamentos e sentimentos destas. Como destaca ainda a autora,

o ideal da mãe perfeita construído por cada sociedade em geral e por cada família, em particular, tem influências que podem ser positivas ou negativas para mulher e para a criança, assim como para todos de seu convívio íntimo. Muitas mulheres se sentem atormentadas por pensamentos acerca de estarem, ou não, sendo boas mães: ao mesmo tempo em que a sociedade lhes cobra amarem seus filhos incondicionalmente, muitas vezes elas não vivenciam dessa maneira. Em alguns momentos, sentem raiva de seus filhos, dúvidas e se culpam (PENTEADO, 2012, p.4).

Serrurier (1993 apud TOURINHO, 2006) nos traz a classificação de alguns tipos de mães, sendo seu enfoque voltado principalmente à questão das mães más. São elas:

[...] as mães voluntariamente só, ou seja, aquelas que de forma inconsciente boicotam a figura paterna afastando-a do lar ou simplesmente agindo em seu lugar, privando a criança de uma relação essencial a sua construção como sujeito. Tais mulheres podem agir assim impulsionadas pelo desejo de mostrar aos homens que são capazes de fazer tudo sozinhas ou, então, ainda representando o papel de rainha-do-lar provavelmente influenciadas pelas ações de suas próprias mães com relação a maternidade. As mães culpadas são aquelas que sentem dificuldades em aceitar as funções caracteristicamente femininas, e se culpam por não serem excelentes. Sentem-se mal por deixar os seus filhos para trabalhar. Em realidade, não desejam assumir tais funções e precisam lutar constantemente com a idéia perturbadora de que seus filhos lhes incomodam e que ela não os deseja. A culpa surge em consequência dessa ambigüidade, pois uma excelente mãe não pode ter tais sentimentos. Quanto às mães deprimidas, tratam-se de mulheres que se vitimizam e se sentem obrigadas a carregar os filhos dia após dia, que reclamam e se queixam de tudo, mudam de opinião rápida e frequentemente, não riem, submetendo as crianças a desgastes freqüentes. Em realidade são mulheres que não desejavam as conseqüências da maternidade [...] (TOURINHO, 2006, p.27-28).

128 Em relação às mães que Serrurier (1993 apud TOURINHO, 2006) considera como sendo muito más, a mãe excessiva “é aquela que se considera tão boa que sufoca o filho. Deseja dar-lhe tudo, mas também ter tudo em troca” (2006, p.28). Ainda é citada pela autora a mãe sádica,

também uma mãe muito má, pois sente prazer em submeter os filhos a vexames. Tais mães refletem em seus filhos as atitudes que sofreram no passado, muitas vezes de forma inconsciente, não admitindo que os filhos tenham mais do que ela teve, ou o que ela não teve (2006, p.28);

a mãe do lar ideal “seria aquela que além de ser uma exímia dona de casa é também uma exímia mãe, esposa, amiga, companheira” (2006, p.28); a mãe de dupla jornada,

“é a mulher que exerce as funções distintas de subsistência e cuidados com o lar” (2006, p.29); a mãe trabalhadora, “seria aquela que se dedica a uma atividade de trabalho externo e não precisa responsabilizar-se diretamente pelos deveres do lar, pois possui alguém para fazê-los” (2006, p.29). Contudo, é ressaltado que esta última se depara com duas situações difíceis: a primeira de “encontrar alguém que seja tão

capaz como a mãe ideal para cuidar de seu lar e de seus filhos”, segundo, “muitas

vezes se martiriza por não acompanhar o crescimento e o desenvolvimento dos filhos, o que lhe provoca sofrimento e à família” (2006, p.29).

Sabemos que é grande a diversidade de atitudes e de qualidades maternas possíveis de se identificar em relação a quem exerce essa função, assim como são diversas as maneiras de expressá-la, principalmente referente aos sentimentos e práticas das mães para com os filhos. Podemos encontrar o interesse, a dedicação ou a ternura/carinho de mãe, mas também a indiferença, a negligência ou a crueldade que podem vir a desembocar em agressões.