• Nenhum resultado encontrado

Para uma psicologia

1.1 Em busca do real

1.1.4 Método e empiria

Ainda conforme Le parallélisme psycho-phsique et la métaphysique positive, a realidade é mais complexa e a experiência mais instrutiva que a hipótese paralelista (BERGSON, 2011, p.252). A investigação proposta pelo filósofo, de caráter empírico e metafísico, é portanto solidária a uma metodologia nova, pela qual o dado não é uma aquisição dedutiva ou lógica, mas encontrado na aproximação de uma série de linhas de fatos, que não obedecem necessariamente a uma ordem dialética. São caminhos abertos no real que não carecem de esgotar suas possibilidades, cruzando-se na experiência a partir de conjuntos de probabilidades, passíveis de um desenvolvimento progressivo. Através de tais linhas, passíveis de serem colhidas por novos ramos como a psicologia, a fisiologia, a biologia, Bergson chega à proposição de que o cérebro não armazena ideias, mas apenas esquemas motores, prolongando, como dizíamos, o pensamento de uma forma bastante específica: a parte da ideia reduzida e delimitada na ação. Como nos ensina Franklin Leopoldo e Silva (1994), uma marca característica do método bergsoniano é a consideração de cada questão em uma particularidade que não é refém de nenhum campo ou contexto concebidos a priori. Não haveria uma classe de problemas que orientaria seus objetos, pois a instância máxima seria a própria experiência, o critério de conhecimento válido por excelência. A mostração é o que definiria as demarcações a realizar (LEOPOLDO E SILVA, 1994, p.31). Por isso também um dos traços gerais do método é fazer coincidir o conceito com o objeto, pelo pensamento de precisão, instaurando uma restrita delimitação no conceito, singularização que tende a romper a separação entre sujeito e objeto, à medida que a intuição é coincidência com o intuído (LEOPOLDO E SILVA, 1994, 32). De um conhecimento regido por leis gerais e simbólicas herdadas da tradição, tanto a antiga quanto a moderna, que encontravam sua efetividade na identidade entre verdade e intelecto, ou conceito, Bergson propõe um retorno ao conhecimento real, à revelia de tais pressupostos. Todo o problema de uma metafísica ou de uma ciência é o perigo de abstrair-se como doutrina, deixando de ser aderente aos fatos, o que acontece quando a metafísica inconsciente da inteligência quer tomar corpo sem voltar-se ao

real, deduzindo logicamente seus resultados, como víamos com o paralelismo. Por isso a ciência pode ser um modelo para a filosofia (LEOPOLDO E SILVA, 1994, 34), somente enquanto tem por régua a experiência, não pressupondo uma metafísica anterior ao dado. Segundo Franklin, esta adequação do conhecimento e do objeto que não passa pela generalização dos conceitos mostra a originalidade da atitude bergsoniana, sobretudo no que diz respeito ao primado ontológico e à ausência de uma consciência constituinte. Trata-se do

primado do objeto, que pode ser encontrado em cada um dos temas das obras de Bergson,

como é o caso, por exemplo, da duração no Ensaio, considerada como fluxo objetivo e desenrolar temporal, que não busca traçar categorias ou ser a condição de possibilidade do conhecimento; em Matéria e memória, pela crítica do paralelismo e do pensamento transcendental, ao mesmo tempo que a descoberta da independência do espírito. O ponto de partida consiste sempre em uma consideração do fato desprovido de suas possíveis categorizações, o que significa uma busca daquilo que o sustenta, e que será o estofo da realidade nessas obras, a duração.

Em A consciência e a vida, por exemplo, Bergson traça três linhas de fatos para pensar a consciência. Consideradas separadamente, elas são caminhos possíveis, hipóteses, mas que se tornam mais rigorosas à medida que são consideradas conjuntamente e se reencontram, fornecendo um conhecimento mais amplo e profundo deste conceito. A primeira aduz ao fato de que consciência é antes de tudo memória, não havendo, portanto, consciência onde ela renasça a todo instante. Ela pressupõe um mínimo de conservação temporal. Mas ao mesmo tempo, é também antecipação do futuro: não há consciência sem atenção à vida. A atenção e o esforço confundem-se também com a vontade7. O real exerce uma tração sobre a ação do

corpo. Assim, nesta primeira linha de fatos, a consciência é antecipação do futuro e conservação do passado, o traço de união entre o que foi e o que será (BERGSON, 2009, p.6), o que equivale a dizer que o que se percebe na experiência concreta é uma espessura de duração composta por duas partes, nosso passado imediato e nosso futuro iminente – sobre o primeiro, nos apoiamos e, sobre o segundo, debruçamos. “(…) apoiar-se e debruçar-se assim é específico de um ser consciente” (BERGSON, 2009, p.6). Já a segunda linha reclama o cérebro como um órgão de escolha que coloca a excitação do ambiente com um número indefinido de vias motoras, sendo o encéfalo um órgão que se separa da medula tanto mais 7 Há um livro de Arnaud François - Bergson, Schopenhauer, Nietzsche (2008)-, que trata de forma ampla este conceito pouco explorado pelos comentadores de Bergson, o conceito de vontade. Apesar de aparecer pouco nas quatro principais obras, trata-se de uma consequência de suas ideias, e o filósofo atribuiu a ele um lugar de destaque em seus cursos e conferências, como se vê, por exemplo em Onze conférences sur la “personnalité de 1914, Discours et conférences de Madrid sur l’âme humaine et la personnalité de 1916.

quanto o sistema nervoso, na série animal, é desenvolvido. Um ser vivo rudimentar não apresenta esta separação de funções, e suas ações são assim praticamente determinadas. Tal gradação de possibilidades do sistema nervoso mede, exteriormente, a intensidade de consciência como ação possível. Portanto, ela é a expressão dessas duas linhas de fato, à medida que uma escolha do corpo vivo, com seu sistema nervoso mais ou menos complexo, não se faz também sem uma conservação do passado. A possibilidade de escolha, de tomar decisões, é aqui a expressão da consciência em sua via interna e externa. Já a terceira linha é relativa à tensão de duração que cada ser vivo apresenta conforme seu grau de evolução na escala da vida. Como veremos, quanto mais tensa a duração da consciência, maior a história da matéria que este ser pôde comprimir para dela se utilizar, maior o seu poder de ação livre, como veremos com maior detalhe em nosso último capítulo (BERGSON, 2009, p.16). Na confluência dessas linhas, a consciência significa, ao mesmo tempo, 1) uma matéria que age indeterminadamente, 2) a conservação do passado e 3) a contração de uma extensa história da matéria exterior, tema a que ainda retornaremos. São esses os grandes temas circunscritos por Bergson nesta conferência para pensar a relação entre consciência e vida a partir do problema da duração, fatos passíveis de um desenvolvimento progressivo, e que não pressupõem qualquer categoria a priori.

Por conta da recusa ao paradigma filosófico tradicional e suas soluções conceituais, o método consiste em um incessante retorno ao seio do real, e como o seu estofo é a duração, constitui-se um retorno a ela, seguindo-a em suas sinuosidades. Por isso, conforme a carta à Hoffding, de 1915 (BERGSON, 2011), é um equívoco pensar que a intuição é a pedra angular do pensamento de Bergson. Ela não deve ser pensada senão como derivada desta noção primordial à que sempre se retorna, pois, sem se considerar primeiro a duração, diz Bergson (2011, p.442), todas as questões desenvolvidas nas obras deformam-se. Segundo o filósofo, a duração é o centro de toda a sua doutrina (ibid., p.443) e o esforço em alcançá-la pressupõe o rompimento de muitos quadros a que estamos acostumados, exigindo uma nova forma de pensar, uma forma que não mescle o espaço e o tempo. Toda sua doutrina depende deste ponto fulcral. Ainda segundo a carta, Hoffding comete o erro de considerar a intuição, a inteligência e o instinto como conhecimentos relativos. Para Bergson, e isso é muito importante para este trabalho, “o conhecimento prático é verdadeiramente um conhecimento da realidade em si, da realidade absoluta, aí onde ele permanece em seu domínio próprio” (BERGSON, 2011, p.444, tradução nossa). A inteligência, desde que assentada em seu terreno próprio, conhece de forma incompleta, mas não de forma relativa. Só é relativo o conhecimento na medida em que as funções do espírito, como a inteligência, são usadas para

tratar de objetos para os quais não foram feitas, por exemplo, a inteligência que quer compreender a vida. É neste sentido também que em Matéria e memória, quando se leva a própria faculdade de observação ao seu limite ideal, como é o caso, sugere Bergson (2011, p.154), da percepção pura e da lembrança pura, não se trata de uma simples construção do espírito (BERGSON, 2011, p.154), mas sim do limite inconsciente latente na própria percepção8. Trata-se quase de uma hipótese empírica, ou melhor, a empiria levada ao seu

limite, que não se dá na experiência concreta. Desta nova perspectiva, na qual a metafísica se apresenta como uma investigação passível de ser retocada e desenvolvida progressivamente, é aberto um novo caminho para pensar as relações entre corpo e alma, um caminho cuja vida e suas relações concretas são o terreno. A significação da vida deverá ser, assim, procurada na experiência, o que torna a pesquisa certamente mais penosa, mas nunca alheia ao seu objeto.