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Para uma psicologia

1.3 Segundo e terceiro capítulos de Matéria e memória.

1.3.3 Reconhecimento atento

Mas não é somente este reconhecimento espontâneo e automático, solidário à memória do corpo, que caracteriza a percepção concreta. Junto dele há o reconhecimento atento, que se realiza de forma ativa e que, apesar de solidário ao primeiro, ao invés de nos tornar cada vez mais não-conscientes do objeto, dada a natureza automática dos hábitos adaptativos, ele nos reconduz ao objeto, sublinhando seus contornos. As imagens-lembrança passam a adquirir um papel preponderante à medida que o equilíbrio sensório-motor, ao invés de continuar a percepção por movimento úteis, renuncia a seu movimento e tende a voltar-se e desenhar os contornos do objeto, traçando, com isso, uma seleção aprofundada das memórias que se moldam àquela percepção. Se o cérebro produzisse as lembranças, as patologias cerebrais as destruiriam. Como Bergson sustenta a hipótese de que o cérebro só produz movimento, é o movimento de evocação dessas lembranças que seriam destruídos e não as lembranças, isto é, a possibilidade de atualizarem-se em movimento. O que há na atenção é, assim, a renúncia do corpo à utilidade em geral, ao mesmo tempo que se iniciam movimentos mais sutis do cérebro que tendem a contornar cada vez melhor o objeto, iniciando-se sobre ele um trabalho positivo das lembranças. Assim, a partir dos movimentos nascentes da memória-hábito, as lembranças que se enquadram nelas retornam, seja devolvendo a própria imagem da percepção, seja evocando outras mais longínquas e semelhantes, como se a percepção neste processo se duplicasse ou se recriasse. A memória, por conseguinte, fortalece a percepção acrescentando lembranças cada vez mais numerosas, e este processo faz descobrir nas coisas elementos novos, conforme as lembranças análogas são evocadas pelos movimentos de imitação. Mas isso não acontece apenas no esforço de atenção: na percepção distinta, este trabalho acontece a todo instante, recriando incessantemente a percepção pelos diferentes níveis da memória – tanto as mais imediatas, quanto as mais antigas que entram no quadro motor. Mas em relação à percepção atenta, trata-se de uma verdadeira reflexão, de um retorno, uma projeção externa de imagens passadas idênticas (se são imediatas) ou semelhantes (se são antigas), que vêm moldar-se ao presente, o que equivale a dizer que a todo instante há criação e retorno de lembranças, como ecos: quando se desvia o olhar bruscamente, é essa lembrança imediata que vemos desenhar sua silhueta (BERGSON, 1999, p.116). E isso se dá de tal forma que a um

certo ponto não é possível dizer o que é lembrança e o que é percepção. Aliás, a lembrança, no mais das vezes, recobre a percepção. Conforme afirma Monegalha (2018, p.76), a memória de forma alguma é secundária na percepção, pois é ela quem atribui sentido, opera no processo de constituição dos objetos percebidos. “Assim, criamos ou reconstruímos a todo instante. Nossa percepção distinta é verdadeiramente comparável a um círculo fechado, onde a imagem-percepção dirigida ao espírito e a imagem-lembrança lançada no espaço correriam uma atrás da outra” (BERGSON, 1999, p.117). Para tornar mais clara esta relação, Bergson compara o seu esquema perceptivo com a forma do processo da percepção tradicional. Esta relação é bastante instrutiva e reveladora para percebermos a diferença entre as duas concepções sobre a percepção, bem como a originalidade do pensamento bergsoniano. Para a epistemologia da tradição, a percepção descreveria “uma série de processos que avançariam ao longo de um trajeto único, o objeto excitando sensações, as sensações fazendo surgir ideias diante delas, cada ideia estimulando sucessivamente pontos mais recuados da massa intelectual” (BERGSON, 1999, p.118). Tal processo, segundo o filósofo, descreve uma linha reta que vai do objeto ao espírito, a representação no espírito se distanciando cada vez mais do objeto. Já para Bergson, a percepção refletida tem a forma de um circuito, pela qual as lembranças e o objeto mantêm-se num estado de tensão. Ora, a diferença entre os dois modelos é radical e reveladora. A primeira projeta o objeto numa subjetividade psíquica que se distancia cada vez mais da exterioridade, espiritualizando-se num processo crescente de afastamento do mundo. No modelo de Bergson, pelo contrário, as lembranças não têm dificuldade em conviver com a exterioridade: a todo momento retornam solidárias ao objeto, abrindo círculos cada vez maiores, tanto nos graus da memória quanto na virtualidade do próprio objeto, num processo em que a memória se expande e se contrai sempre inteira e indivisível. O que nos parece revelador nessa teoria é que a expansão intelectual da memória revela, ao mesmo tempo, sistemas cada vez mais vastos, camadas cada vez mais profundas do real, que se dão atrás do objeto. Poder-se-ia perguntar de que forma o conjunto pessoal e subjetivo das memórias seria capaz de revelar a objetividade do real. Talvez um princípio de resposta fosse o fato de esta concepção sobre as lembranças não se reduzir a uma realidade inextensa duplicada no interior do cérebro: a memória se daria fora e de forma solidária aos objetos, à medida que formam um circuito; trata-se de uma memória que se mistura às coisas. Como veremos no terceiro capítulo, sua forma compõe um todo independente semelhante à extensão do real.

Todos os prejuízos da concepção tradicional epistemológica, bem como da psicofísica, eram, por conseguinte, oriundos de um desconhecimento do papel do corpo no processo

perceptivo, particularmente de seus mecanismos para o chamamento das lembranças, e dos processos que mantêm em equilíbrio o corpo com o presente, que é a condição da atualização do passado. Sem entrar no exame dos fatos de localização cerebral, dada a circunscrição de nosso tema, digamos apenas que Bergson pontua duas formas possíveis pelas quais a patologia incide sobre o cérebro: as lesões no córtex que afetam o reconhecimento visual ou auditivo e o reconhecimento das palavras, como cegueira e surdez verbal (BERGSON, 1999, p.122). Tais lesões, que não tocam a memória propriamente dita, se dão de duas formas: ora o corpo não é capaz de tomar a atitude automática necessária à excitação, por meio da qual evocaria as lembranças, a atenção não podendo assim ser fixada pelas coisas; ora as lembranças não conseguiriam mais encarnar-se, dado que mecanismos do córtex que preparavam movimentos voluntários são afetados, a atenção não podendo ser fixada pelo sujeito. Em todos os casos, tratar-se-á da lesão presente nos movimentos atuais do cérebro.

A conclusão a que chega Bergson ao analisar o mecanismo da fala é de que o processo pelo qual a ideia se torna movimento é antes de tudo dinâmico e se dá pelos graus do passado, que se encarnam nos aparelhos motores que se moldam sobre as articulações do exterior. O movimento torna nítido o que era uma virtualidade de ideias, através de um verdadeiro

progresso (BERGSON, 1999, p.148). Como bem explana no artigo A lembrança do presente e o falso reconhecimento, a percepção completa se resume assim a este misto, a esta espécie

de corrente dupla em sentidos opostos: uma que vem dos objetos e do equilíbrio sensório- motor e a outra dos graus da lembrança, que se organizam com o presente. Ainda segundo o artigo, a lembrança não se dá depois da percepção, mas concomitante a ela. O presente, assim, em sua mobilidade, se desdobraria em “dois jatos simétricos, um dos quais volta a cair rumo ao passado e o outro se lança rumo ao futuro” (BERGSON, 2009, p.130).