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A natureza da exterioridade e a percepção.

2.1 Problemática e horizonte do primeiro capítulo de Matéria e memória

2.1.2 O prefácio à sétima edição

Conforme Bergson expõe (1986, p.262) na Introdução ao pensamento e o movente, as aquisições metafísicas de Matéria e memória foram de difícil aceitação para todos aqueles

que já tinham “algum hábito de especulação filosófica”. Pois o hábito filosófico não havia, ainda naquela época, se desvencilhado da forma como as questões a respeito do espírito e do corpo haviam sido colocadas pela filosofia moderna. A forma geral desta problematização Bergson encontra nas concepções idealista e realista da matéria. A abordagem de Matéria e

memória permite, por conseguinte, desempatar esse paradigma, “deslocando a linha de

demarcação entre sujeito e objeto, entre o espírito e a matéria” (BERGSON, 1986, p.262). Como vimos em nosso primeiro capítulo, a análise psicológica das relações entre corpo e espírito mostrava, através dos planos de consciência, o passado puro como o plano virtual mais extenso, o plano do sonho, que conservava em estado latente todas as experiências vividas, como uma base de uma pirâmide. Na ponta desta pirâmide se desenharia o corpo, no plano da percepção e das ações nascentes em contato com os objetos ambientes. A partir daí, na relação do corpo com o mundo, começariam as consequências metafísicas, no que tange à matéria, pois todas as teorias da época acreditavam ser os objetos ambientais captados pelos nervos, que, em seguida, como sensações, eram traduzidos pelos centros cerebrais em representações inextensivas, e a partir daí, acompanhados de uma “forma” pura do espaço, voltariam recobrindo por imagens psíquicas o mundo exterior. É este raciocínio que Bergson censura, ao dizer, que é neles mesmos que percebemos os objetos e não em nós. O prefácio à sétima edição, escrito em 1910 para a edição inglesa, vem justamente tentar tornar mais claro este projeto do primeiro capítulo de Matéria e memória, uma vez que a incompreensão a seu respeito era, até então, bastante comum, sobretudo, com dizíamos, em relação ao termo “imagem” e as consequências metafísicas que ele envolve. O dualismo em geral, bem como o realismo e o idealismo, deveriam revelar, a partir da noção de imagem, o excesso de suas posições: “é falso reduzir a matéria à representação que temos dela, falso também fazer da matéria algo que produziria em nós representações mas que seria de uma natureza diferente delas” (BERGSON, 1999, p.1). Para o filósofo, a matéria será “um conjunto de imagens”, o que significa que, contra o idealista, ela ultrapassa a representação que temos dela, no entanto é menos que a coisa do realista, ou seja, é menos que essa matéria incognoscível: ela é, em parte, acessível. “uma existência situada a meio caminho entre a “coisa” e a “representação” (BERGSON, 1999, p.2). Esta concepção, continua o filósofo, é aquela do homem do senso comum. O homem comum não se pergunta se aquilo que ele vê e toca é produção de seu espírito, tampouco questiona-se se o objeto é outra coisa do que aquilo que percebe. Para ele, que não costuma filosofar com a tradição, o objeto existe independente de sua percepção; para ele, a cor, a resistência, o cheiro, estão no objeto, e constituem uma existência independente de sua consciência. Conclui o filósofo:

Portanto, para o senso comum, o objeto existe nele mesmo e, por outro lado, o objeto é a imagem dele mesmo tal como a percebemos: é uma imagem, mas uma imagem que existe em si.

Tal é precisamente o sentido em que tomamos a palavra “imagem” em nosso primeiro capítulo (BERGSON, 1999, p.2).

Sendo este o sentido do termo “imagem” no primeiro capítulo – isto é, o objeto é em si mesmo tal como o percebemos –, as principais dificuldades para sua compreensão, como é dito na Introdução ao Pensamento e o movente (BERGSON, 1986, p.264), provinham do hábito arraigado, herdado da filosofia moderna, de colocar todas as questões, no que diziam ao corpo e o espírito, em termos de “objetivo” e “subjetivo”. Fossem quais fossem as posições metafísicas, esses termos eram utilizados da mesma forma (BERGSON, 1986, p.263). É neste sentido que o primeiro capítulo opera uma espécie de redução: é preciso colocar-se num estado em que as teorias filosóficas ainda não tivessem feito sua leitura sobre o que é o dado. E isto coincide com a concepção do senso comum, uma ausência do esforço de especulação, como víamos na última seção. Por isto não há contradição na afirmação de que o senso tem razão, ao mesmo tempo que a intuição imediata exige um esforço. O esforço filosófico, de dentro da filosofia, faz retornar ao senso comum. É trabalhoso em filosofia renunciar aos antigos hábitos do filosofar, e é neste sentido que retornar ao senso comum caracteriza um esforço quase doloroso, embora necessário (BERGSON, 1986, p.264).

Em resposta aos esclarecimentos que G. Lechalas reclama a respeito do primeiro capítulo de Matéria e memória, e a dificuldade em compreender o termo imagem, Bergson, em carta de 1897, traz uma clara definição de suas intenções.

As imagens, tal como as compreendo, são verdadeiramente coisas, isto é, realidades independentes de toda consciência. Suprima minha consciência e, mais ainda, toda consciência individual, as “imagens” subsistem, com esta única diferença de que elas se acrescem de tudo isso que não percebemos, e se despojam de certas formas que nós lhes impomos para chegar a agir sobre elas. Vocês podem então, sem inconveniente, neste primeiro capítulo, substituir pela palavra “imagem” a palavra “coisa”. (BERGSON, 2011, p.460, tradução nossa).

Segundo o filósofo, o que o impediu de usar a palavra “coisa” fora o uso que tanto o realismo como o idealismo fizeram dela, para expressar as causas imperceptíveis ou hipotéticas das percepções. Por exemplo, enquanto nossas percepções nos oferecem cores, resistência, texturas, as “coisas” em si mesmas, para eles, seriam agregados de átomos, forças, relações numéricas, inacessíveis. Cremos que um dos desafios de Bergson em Matéria e

memória, e um dos objetivos de nosso trabalho, é mostrar que as coisas nelas mesmas, fora da

percepção, são, de grau em grau, as mesmas que entram na percepção, elas são imagens. Tal atitude, que significa um elogio aos dados imediatos, caracteriza, como vimos, uma ausência de hipótese metafísica. O primeiro capítulo de Matéria e memória se desenvolve, assim,

mostrando, em primeiro lugar, que a matéria do corpo não é diferente, em natureza, da matéria ambiente, que a consciência está tanto no corpo próprio, quanto nos outros, “e que ela começa por coincidir (em parte ao menos) com a totalidade disso que ela percebe e pode perceber” (BERGSON, 2011, p.462, tradução nossa).

Ainda no prefácio à sétima edição, Bergson diz claramente que devemos, portanto, considerar a matéria aí onde o senso comum a vê: o que se percebe existe em si; e que o primeiro capítulo definiria esta maneira de olhar a matéria, enquanto o quarto tiraria as consequências disto (BERGSON, 1999, p.4). Ora, devemos postular que nosso trabalho deve seguir esta proposição e investigar, esclarecer, de que forma se dá “essa maneira de olhar a matéria”, e quais são essas “consequências”, sem perder de vista, entretanto, que o problema da matéria só interessa à medida que diz respeito ao “problema da relação do espírito com o corpo”. Ou seja, trata-se de uma maneira de olhar a matéria e suas consequências, tendo em vista o sentido geral deste para uma teoria da consciência.