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Esta pesquisa será dividida em três capítulos, ordenados, a um só tempo, de maneira cronológica e temática. Em primeiro lugar, será analisado o pensamento religioso de Paine na Revolução Francesa, tendo como objeto de análise o panfleto The Age of Reason; em segundo lugar, será analisado o pensamento político de Paine na Revolução Francesa, tendo como objeto de análise o panfleto Dissertation on First Principles of Government; em terceiro e último lugar, será analisado o pensamento social de Paine na Revolução Francesa, tendo como objeto de análise o panfleto Agrarian Justice. Cada um dos panfletos possui uma crítica central e uma respectiva proposta: respectivamente, crítica à Bíblia e a defesa do deísmo, a crítica ao voto censitário e a defesa do sufrágio universal (masculino) e a crítica à desigualdade social e a defesa de uma renda universalmente conferida a todos os adultos.

A fim de obter uma maior precisão conceitual, a análise dos panfletos terá uma estrutura tripartite, simetricamente repetida nos três capítulos: em primeiro lugar, serão analisados dados sobre a publicação e o contexto da formulação de cada panfleto; em segundo lugar, os panfletos serão analisados conforme a estrutura que apresentaram na época; por fim, eles serão contrastados e comparados, por um lado, com o contexto da Revolução Francesa e, por outro, com o contexto da história intelectual de uma maneira mais ampla, privilegiando, evidentemente, o mundo inglês. Somente por meio dos dois olhares, o francês e o anglo- saxão, pode-se compreender este revolucionário cuja face mais marcante é a universalidade.

A inspiração direta para a formulação dessa estrutura foi a obra de Quentin Skinner,

Hobbes e a Liberdade Republicana, na qual o autor discute três textos de Thomas Hobbes e,

de maneira absolutamente exemplar, busca esclarecer os propósitos e intenções do pensador inglês. Para os intentos dessa pesquisa, assim, foram considerados os procedimentos da assim chamada Escola de Cambridge como modelos de estudo de história intelectual.

Peter Lasllet foi pioneiro em esclarecer tal método ao tratar de Locke, lembrando que seu texto só pode ser plenamente compreendido se for reconhecido que seu objetivo primeiro

era intervir numa crise específica do monarquismo inglês sob Carlos II, e que foi escrito de uma posição identificável no espectro do debate político, no início da década de 1680:

Nosso primeiro objetivo deve ser um modesto exercício de historiador: estabelecer o texto de Locke tal como ele pretendia que fosse lido, situá-lo em seu contexto histórico, no contexto do próprio Locke, e demonstrar o vínculo entre seu pensamento e sua obra com o Locke conhecido por sua influência histórica.135

Segundo Quentin Skinner, este método

nos permite definir o que seus autores estavam fazendo quando os escreveram. Podemos começar assim a ver não apenas que argumentos eles apresentavam, mas também as questões que formulavam e tentavam responder, e em que medida aceitavam e endossavam, ou contestavam e repeliam, ou às vezes até ignoravam (de forma polêmica), as ideias e convenções então predominantes no debate político.136

Em outro texto, Skinner lembra a importância de se pensar um texto não meramente como um conjunto de ideias atemporais, que surgiriam como lições para tempos futuros se apropriarem, mas como ligadas aos debates de seu tempo:

Os historiadores do pensamento fariam bem em se concentrar não meramente, ou mesmo principalmente, num cânone de assim chamados textos clássicos, mas, preferivelmente, no lugar ocupado por esses textos em tradições e quadros mais amplos de pensamento.137

Na perspectiva desses autores, não faz sentido falar em textos mais ou menos originais: todo texto pode ser considerado, por assim dizer, original, pois dialoga com um contexto que será sempre único e irreprodutível. Dessa forma, se, como bem notou John G. A. Pocock – outro nome ligado à Escola de Cambridge – “todo pensador opera dentro de uma tradição”, procurar-se-á enxergar a obra de Paine à luz do momento em que se encontrava, investigando a linguagem política que foi forjada.

Se lidos ao pé da letra, os métodos da escola de Cambridge podem parecer um tanto áridos, propensos a criar historiadores que, descolados de seus próprios tempos e de seus problemas, criam uma história de “antiquários”, desinteressante e despropositada. Mas este

135 LASLLET, Peter. Introdução a LOCKE, John. Dois Tradados sobre o Governo. Tradução de Júlio Fisher.

São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 2.

136 SKINNER, Quentin. Os Fundamentos do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das

Letras, 1999, p. 13.

não é, em absoluto, a proposta dos autores. Para esclarecer essa posição, vale lembrar como Skinner, ao término de seu texto Liberdade antes do Liberalismo, chega a propor:

Os historiadores do pensamento podem esperar fornecer aos seus leitores informação relevante para a elaboração de critérios sobre seus valores e crenças atuais, deixando-os então ruminar (...). Minha sugestão é, portanto, que os historiadores do pensamento podem produzir algo que vá bem além do interesse antiquário se eles simplesmente exercerem sua ocupação [grifo nosso].138

Para os propósitos deste trabalho, portanto, os métodos da escola da Cambridge foram tidos não como um cânone a ser estritamente seguido (outro autor, amplamente criticado pela escola de Cambridge, C.B. Macpherson, é também utilizado aqui como historiador exemplar), mas como um bom lembrete metodológico para evitar aquilo que Eric Hobsbawm, com toda a razão, chamou de os dois “pecados capitais” do historiador: o anacronismo e o provincianismo, “ambos igualmente resultados de simples ignorância de como são as coisas alhures, o que nem a leitura ilimitada nem o poder da imaginação podem superar. [Para o historiador], o passado permanece sendo outro país, cujas fronteiras somente podem ser atravessadas pelos viajantes”.139

Nessa mesma linha de pensamento, Franco Venturi, ao estudar o Iluminismo, faz uma bela distinção do trabalho do filósofo e do historiador das ideias: “não é evidentemente às origens das ideias que devemos remontar, mas à sua função na história dos Setecentos. Os filósofos têm a tentação de navegar em direção à nascente. Os historiadores nos devem dizer como o rio abriu seu caminho, em meio a quais obstáculos e dificuldades”.140 Para um historiador, compreender uma obra filosófica como documento não é apenas buscar suas origens conceituais, mas também compreender seu papel dentro de um período histórico específico, levando em conta os meios pelos quais o filósofo divulgou suas ideias e a mudança do papel social dos conceitos ao longo do tempo. As escassas citações a respeito de Paine em algumas grandes sínteses sobre o Iluminismo (Peter Gay, Cassirer e Hazard)141, por exemplo, podem também ser creditadas a um grupo de estudiosos mais preocupados com a originalidade dos autores do que com a repercussão da obra em seu contexto.

138 SKINNER, Quentin. Liberdade Antes do Liberalismo, cit., pp. 94-95.

139 HOBSBAWM, Eric. Tempos Interessantes. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 452. 140 VENTURI, Franco. Utopia e Reforma no Iluminismo. São Paulo: Edusc, 2003, p. 29.

141 Respectivamente: GAY, Peter. O Iluminismo: Uma Interpretação. Nova Iorque: Norton, 1977; HAZARD,

Paul. A Crise da Consciência Europeia. Lisboa: Cosmos, 1948; CASSIRER, Ernst. A Filosofia do

Nessa linha de raciocínio, na esteira dos trabalhos de Bernard Bailyn e Robert Darnton142, esta pesquisa irá considerar a dimensão panfletária das obras de Paine, com todas as implicações desse gênero textual. Paine era um panfletista por excelência, de maneira que suas obras não arrogavam para si o estatuto de compêndios filosóficos, mas sim de respostas a situações específicas, com objetivos fundamentalmente práticos. O historiador Bernard Bailyn, ao estudar os escritos da Revolução Norte-Americana, revelou que, mais do que os conhecidos Locke, Smith ou Rousseau, autores panfletários, antes tidos como “menores” – como John Trenchard, Robert Molesworth ou Thomas Gordon – tiveram uma importância gigantesca na conquista dos corações e mentes dos colonos. Do mesmo modo, estudar os panfletos que circulavam na Revolução Francesa, como os textos de Paine, é adentrar no vocabulário político que se passava no interior dos acontecimentos. Para a compreensão da Revolução, mais do que simplesmente estudar seus pressupostos filosóficos, é imprescindível também o estudo do vocabulário corrente nos debates da época. A carta do Conde de Mornington ao ministro do interior, em 3 de julho de 1791, demonstra que a oposição estava absolutamente cônscia desta força panfletária da obra de Paine:

Pergunto-me por que o Senhor ainda não mandou enforcar esse cafajeste de Paine devido a seu ignóbil libelo contra o Rei, os Lordes e os Comuns. Imagino que a extrema baixeza desse panfleto (...) pode causar malefícios nos lugares onde a cerveja é vendida na Inglaterra e ainda nos locais de venda de uísque da Irlanda. Que eu saiba é de longe o livro mais traiçoeiro que jamais ficou impune; sendo assim dê-me o prazer de enforcar esse indivíduo, se o senhor conseguir agarrá-lo.143

Cabe agora encerrar esta introdução com um pequeno esclarecimento sobre estado atual da edição crítica dos textos de Paine. Foi lançada em 1892, em dois volumes, a capital biografia de Paine, acompanhada de seus escritos completos, pelo estudioso norte-americano Moncure Daniel Conway The Life of Thomas Paine with a History of his Literary, Political

and Religious career in America, France and England.

Depois da publicação, no final do século XIX, da obra Conway, um verdadeiro divisor de águas para o conhecimento de nosso autor, seguiu-se a contribuição de Philip S. Foner que, em 1945, publicou aquela que é até agora a melhor e a mais completa edição das obras completas de Paine.

142 DARNTON, Robert. Boemia Literária e Revolução. São Paulo: Cia das Letras, 1989. E, do mesmo autor, Edição e Sedição. São Paulo: Cia das Letras, 1992. BAIYLYN, Bernard. As origens ideológicas da Revolução Americana. São Paulo: EDUSC, 2003. E, do mesmo autor, Fundamental Testaments of the American Revolution. Washington: v.a. Library of Congress, 1973.

Há ainda a contribuição de Richard Gimpel, que dedicou boa parte de sua vida a reunir todo tipo de material, manuscrito e impresso sobre Paine, formando a mais vasta coleção de documentos existente sobre o autor (reunida inicialmente na Yale University e agora na

American Philosophical Society, na Filadélfia).

Na década de 1990, Michael Foot lançou, em seis volumes, uma edição das obras completas de Paine que, na verdade, é apenas um fac-símile das obras de Conway.144

Graças ao trabalho, pioneiro, desses três admiradores de Paine, na segunda metade do século XX, numerosas edições foram publicadas, reunindo escritos vários do autor.145 Contudo, ainda se aguarda uma nova edição crítica do conjunto da obra de Paine, da qual se espera que seja verdadeiramente, tanto quanto possível, completa e definitiva. Yuval Levin, no mais recente trabalho sobre Thomas Paine e Edmund Burke, lembra-nos que a obras completas do panfletário de Nortfolk “ainda clamam por uma coleção acadêmica fidedigna” (enquanto ela não vem à luz, não resta senão recorrer à edição de Philip S. Foner, em dois volumes, publicada em 1945 e utilizada neste trabalho).146

144 FOOT, Michael. Thomas Paine: Life and Works. Londres: Routledge/Thoemmes Press, Londres, 1996. 145 Acrescente-se, às já mencionadas, a edição organizada por ADKINS, Nelson F. Common Sense and other writings. New York: Fórum Books, 1966.

146 LEVIN, Yuval. O Grande Debate: Edmund Burke, Thomas Paine e o Nascimento da Esquerda e da Direita.