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Mas há ainda outro componente do “problema Paine”: seu legado é, nas palavras de Robert Lamb, absolutamente “esquizofrênico”, tão incerto e polêmico quanto suas origens.

Para Thompson, “Os Direitos do Homem e a Riqueza das Nações (de Adam Smith) poderiam se complementar e se alimentar reciprocamente”.115 Foot e Kramnick colocam Paine na linhagem que culmina no neoliberalismo: “de Locke, através de Paine, até chegar a Milton Friedman, o liberal vê a sociedade civil povoada de indivíduos autoconfiantes”.116 Em sua história do pensamento socialista, G. D. H. Cole diz: “até o ponto em que o socialismo pode ser identificado com a instituição do ‘Estado benfeitor’ ou de serviço social, baseado nas contribuições redistributivas como instrumento de democracia, Paine pode, sem dúvida, ser considerado como o primeiro que teve ideias práticas sobre esse tipo de legislação”.117 Bernard Vincent diz que Paine possui ideias “proto-marxistas”118 e "socialista avant la lettre".119 Philip Foner, na mesma linha, diz que as obras finais de Paine “contêm os aspectos comunistas da teoria de Babeuf tendo em vista que objetivam remover as desigualdades no tocante à propriedade”.120

As avaliações sobre Paine, portanto, oscilam de moderado girondino a comunista. Isso se explica pela própria diversidade de suas ideias, expressas em contextos polêmicos e

114 FONER, Eric. Tom Paine and Revolutionary America, cit., p. 99.

115 THOMPSON, E. P. Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional, cit., p. 104. 116 FOOT, Michael e KRAMNICK, Issac (orgs.). The Thomas Paine Reader. Londres: Penguin Books, 1987. 117 COLE, G. D. H. Historia del Pensamiento Socialista, cit., pp. 39-40.

118 VINCENT, Bernard. Thomas Paine and the Birth of the Welfare State, cit., p. 148. 119 VINCENT, Bernard. Thomas Paine: o Revolucionário da Liberdade, cit., p. 273.

120 Introdução ao texto Agrarian Justice de FONER, Philip. The Complete Writings of Thomas Paine, cit., p.

conturbados, fato agravado pela aludida desconsideração por uma análise séria de suas obras. Desafia quaisquer generalizações e classificações binárias um autor que, no século XVIII, combinou defesa da democracia universal (como se verá, também não há consenso sobre sua defesa do voto feminino), valorização da propriedade privada, visão positiva da justiça social estabelecida por meio do Estado, entusiasmo pelo livre comércio, luta pela autodeterminação das colônias e pelo fim da escravidão.

É interessante observar como Paine é admirado por políticos extremamente díspares: Abraham Lincoln costumava empregar argumentos de The Age of Reason nos embates contra sectaristas religiosos; quando fez seu discurso para mobilizar o povo norte-americano contra o fascismo após o ataque a Pearl Harbor, o socialdemocrata Franklin Roosevelt citou um parágrafo inteiro do panfleto A Crise: "esses são os tempos em que se colocam as almas dos homens à prova"121; Ronald Reagan, em 1984, fez suas as palavras de Paine: “está em nosso poder começar um mundo novo”122; a partir desta declaração de Reagan, aliás, Paine “foi readmitido no panteão dos pais fundadores dos Estados Unidos da América e foi recentemente feito de poster boy pela direita reacionária, notavelmente a personalidade midiática Glenn Beck” e o Tea Party123; Fidel Castro, em 1953, citou Paine em seu julgamento quando disse “é mais valoroso para uma sociedade um único homem honesto do que todos os rufiões coroados que já viveram”124; Tony Blair se inspirou em Paine para formular o programa Child

Fund Trust125; Nail Gaiman, um dos mais conhecidos escritores britânicos da atualidade,

tornou Paine um de seus personagens na obra Sandman126; os cientistas Carl Sagan e Neil de Grasse Tyson127, conhecidos por seus trabalhos de divulgação científica, em vários livros e reportagens demonstraram sua admiração por Paine, sobretudo por seu papel como defensor aguerrido da ciência e do potencial libertador da razão humana.

121 HITCHENS, Christopher. Os Direitos do Homem de Thomas Paine. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 146. 122 FRUCHTMAN, Jack. Thomas Paine Apostle of Freedom, cit., p. 498.

123 MONAHAN, Sean. Reading Paine From The Left. Jacobin, Brown University, 2015. Disponível em:

<https://www.jacobinmag.com/2015/03/thomas-paine-american-revolution-common-sense/>. Acesso em: 25 de junho de 2017.

124 WILLIAMSON, Audrey. Thomas Paine: his life, work, and times. Londres: George Allen & Unwin, 1972,

p. 284.

125 SUPLICY, E. M. De Thomas Paine a Tony Blair. São Paulo: Folha de São Paulo, edição de 29 de junho de

2007.

126 GAIMAN, Neil. Sandman. 5 ed. São Paulo: Conrad, 1989-1995.

127 Carl Sagan relata sua admiração pela obra de Thomas Paine em SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios. São Paulo: Cia das Letras, 2006. Recentemente, destacou-se na mídia o trabalho do astrofísico e

divulgador científico Neil deGrasse Tyson, discípulo de Carl Sagan. Em entrevista recente, Tyson elencou The

Age of Reason como o quinto maior livro de todos os tempos, depois da Bíblia, Isaac Newton, Darwin e Swift

(entrevista no link: <http://www.sciencealert.com/8-books-neil-degrasse-tyson-thinks-everyone-should-read>, acesso em: 9 de julho de 2016).

Paine, então, consegue ser resgatado e admirado por figuras díspares: Bertrand Russel, Fidel Castro, Ronald Reagan, Theodore Roosevelt, Neil Gaiman, Carl Sagan e Neil de Grasse Tyson e Bob Dylan. Ocorre que, hora ou outra, muitos se apropriam de algumas heranças de Paine – um Paine patriota (como é comum nos Estados Unidos), um Paine socialdemocrata (como é comum na Europa), um Paine patriota e (neo)liberal (como é comum entre a chamada Nova Direita norte-americana), um Paine anticlerical (é o caso de Russel) ou um Paine cientista (caso de Sagan e Tyson).

Aliás, se a vida de Paine fosse ela própria um tratado político, por sua oposição constante aos governos estabelecidos e por sua independência em relação a partidos, empregos e outras instituições, ele poderia sentar-se tranquilamente ao lado dos precursores do anarquismo – a conhecida amizade e a admiração de William Godwin em relação a Paine vem a ratificar essa posição. Não por acaso, lembra-nos Tony Judt, na época da paranoia anticomunista de McCarthy, as obras de Paine eram proibidas, colocadas ao lado de outros autores “inadequados”, como John dos Passos, Arthur Miller, Charles Beard, Leonard Bernstein, Albert Einstein, Thomas Mann, Rienhold Niebuhr, Alberto Moravia e Henry Thoureau.128

Em suma, muitos citam Paine de forma descontextualizada e aleatória – o autor é fonte inesgotável de grandes frases e pequenas alusões. Mas não há conhecimento de um único pensador que se assuma integralmente (e radicalmente) paineano. Nesse ponto, o estudo do

troublemaker inglês se faz mais do que justificado.

Cabe terminar esta apresentação com um fato que, embora trágico e um tanto mórbido, é revelador desta herança maldita dos trabalhos de Paine. Em 1819, o jornalista William Cobbett, que antes de se converter em admirador de Paine fora um de seus mais ferozes críticos, decidiu repatriar os seus restos mortais. Nos Estados Unidos, desde 1817, para onde havia se refugiado para escapar de um possível confinamento na Inglaterra depois da suspensão do Habeas Corpus, Cobbett ficou impressionado ao constatar que Paine era um nome esquecido do público norte-americano. Daí seu plano de coletar e publicar os escritos completos de Paine e depositar seus ossos num mausoléu apropriado: “Paine está enterrado sob a grama e mato de uma obscura fazenda na América. Lá, contudo, ele não deve jazer despercebido e distante. Ele pertence à Inglaterra. Sua fama é propriedade inglesa; e se

nenhum outro povo quer mostrar que tem apreço pela sua fama, o povo da Inglaterra quer fazê-lo”.129

Mas, apesar do interesse e da polêmica que o retorno dos restos de Paine suscitou na Inglaterra, Cobbett nunca conseguiu angariar dinheiro e apoio para realizar seu intento e os ossos nunca foram publicamente enterrados. Cobbet guardou-os para si até 1835. Depois, foram dispersos: o crânio ficou nas mãos do pastor unitarista Anslie, antes de passar para um frenologista de Brighton; o cérebro foi conservado por um agente de Cobbet chamado Tilley, depois foi propriedade do reverendo George Reynolds, do livreiro londrino Charles Higham e exposto na capela South Place em Londres.130 No fim das contas, não se sabe o que foi feito dos restos mortais de Paine. Não deixa, talvez, de ser apropriado que, como observou Florenzano, ambos Paine e Burke, os principais antagonistas na batalha sobre os princípios da Revolução Francesa, tenham não identificados os lugares de seus restos mortais.131 O que se sabe é que não foram poucos os que ridicularizaram a iniciativa de Cobbett, como o poeta Lord Byron que escreveu:

In digging up your bones, Tom Paine, Will Cobbett has done well; You visit him on earth again,

He’ll visit you in hell.132

Como suas obras, os restos mortais de Paine, portanto, acabaram numa vala de incerteza. Assim, uma cantiga infantil norte-americana dizia:

Poor Tom Paine! There he lies:

Nobody laughs and nobody cries. Where he has gone or how he fares. Nobody Know and Nobody cares.133

129 A cantiga foi retirada de FRUCHTMAN, Jack. Thomas Paine Apostle of Freedom, cit., p. 441. 130 VINCENT, Bernard. Thomas Paine: o Revolucionário da Liberdade, cit., p. 303.

131 FLORENZANO, Modesto. Começar o mundo de novo: Thomas Paine e outros estudos, cit.

132 FRUCHTMAN, Jack. Thomas Paine Apostle of Freedom, cit., 137. Quanto aos restos mortais de Burke,

esse pouco antes de morrer pediu à mulher para ser enterrado em um lugar secreto temendo a eventualidade de os jacobinos violarem seu túmulo.

Essa mórbida fortuna dos ossos de Paine, entretanto, pode ser vista sob outra ótica. Mark Philp, com muita sensibilidade, concluiu: “a ausência de um jazigo final não é inapropriada. A filosofia de Paine era universal: ele foi um melhor cidadão do mundo do que jamais poderia ter sido súdito de um Estado”.134