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Conforme debatido na seção 2.1, viu-se que o crime consiste num desvio de normas sociais formalizadas através de leis, que protegem determinados valores e interesses ditos coletivos. Assim, a construção da norma jurídica visa a conter ações que possam

desestabilizar a sociedade, permitindo apenas aquilo que os grupos dominantes (sob a forma de legisladores) acreditam ser o normal ou aceitável. As sanções previstas para o descumprimento da lei – que variam conforme a intensidade e o tipo de violação – aparecem, desse modo, como uma forma de garantir que o ato ilícito seja contido, bem como de assegurar que um sentimento de impunidade não seja disseminado. É uma questão de disciplina. Entretanto, essa noção de sociedade disciplinar (FOUCAULT, 2013) não está restrita ao Estado e aos seus aparelhos, como a polícia. É aí que entra a questão do panoptismo. O que seria isso? Qual seria sua relação com a mídia?

O panóptico se refere originalmente a um projeto de prisão idealizado pelo jurista Jeremy Bentham, que consiste em um espaço arquitetônico em formato anelar/circular, onde estariam presentes celas, sem comunicação umas com as outras, as quais teriam apenas uma janela para o interior e uma para o exterior, possibilitando a passagem de luz. No centro, existiria uma torre, que teria uma visão completa sobre todas as alcovas e exerceria uma função de vigilância permanente. Quem se encontrasse no isolamento não conseguiria observar a presença ou a ausência de vigias, o que consiste no ponto central do panoptismo.

Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder; fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos. [...] O poder devia ser visível e inverificável. Visível: sem cessar, o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é espionado. Inverificável: o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre pode sê-lo. [...] No anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto (FOUCAULT, 2013, p. 191).

A inovação que seria trazida pelo panóptico, pensado no final do século XVIII, foi a de constituir um programa disciplinar que conciliava os métodos penais aplicados anteriormente, como o isolamento (como se fazia com os chamados, à época, leprosos) e o controle rígido sobre a liberdade dos indivíduos (em situações em que pestes assolavam as cidades e era preciso obedecer a regras de rígidas de conduta). Além disso, diferentemente dos dois demais modelos, viu-se que este era generalizável (por ser reproduzível seja com presos, doentes, operários, entre outros) e não necessitava da individualização dos sujeitos que aplicam as penas, isto é, de uma figura específica para aplicar a punição.

A ideia de panóptico midiático se aproxima, ao se compreender que essa nova dinâmica permitia que o modelo superasse as barreiras de um simples mecanismo de punição localizada (no conjunto arquitetônico circular) e estivesse presente, simbolicamente, nas diversas instituições, como a família, a escola ou o exército. Assim, o próprio público – e não

apenas o Estado – poderia assumir o papel de vigilante, constituindo a referência anteriormente citada de sociedade disciplinar. De fato: quantas vezes não se tem a impressão de ser vigiado, ou se vigiam determinados indivíduos, com base em seu comportamento? Em quantas ocasiões não se acionam as ferramentas do Estado, para denunciar determinadas situações? Todo o tempo.

Diante dessa compreensão, percebe-se que a imprensa desempenha papel semelhante. Em se refletindo bem, os veículos de comunicação, em sua grade jornalística, exibem matérias sobre crimes, sendo os de tipificação violenta um dos que mais têm recorrência. Isso acontece devido ao alto valor-notícia que esse tipo de acontecimento carrega, conforme discussão feita no primeiro capítulo: são eventos que causam impacto, mobilizam grande número de pessoas, chocam, dizem respeito ao cotidiano dos indivíduos, além de causar medo, comoção e curiosidade. Entretanto, a preocupação com os critérios de noticiabilidade não parece ser o único interesse. Está intrínseca, na maioria do noticiário policial, uma condenação do crime violento. Observa-se que a torre panóptica, presente nas prisões pensadas por Bentham, estaria representada, no jornalismo, pelos flashes dos fotógrafos, pelas câmeras das televisões, pelos microfones, canetas e gravadores dos repórteres – todos atentos aos passos dados pelas figuras qualificadas como delinquentes.

É interessante observar, portanto, que, para além de mero reflexo discursivo dos acontecimentos sociais, baseado no atendimento ao interesse público ou do público, a mídia atua como mecanismo disciplinador, à medida que, tal qual um olho que tudo vê, lança julgamentos sobre os fatos e acaba legitimando a ação repressora do Estado. Desse modo, a imprensa não só dá conhecimento social aos eventos criminosos, mas mostra a gravidade dos atos desviantes – dentro do que se considera normal em dada sociedade – e tenta impedir a desordem, visando “não à ofensa passada, mas à desordem futura” (FOUCAULT, 2013, p. 89). É a pedagogia midiática, que alerta sobre a onipresença da própria mídia, mas também da lei e da punição, mostrando que o delito não compensa e que os prejuízos das ilegalidades são infinitamente superiores a quaisquer benefícios que o criminoso venha a obter, da mesma forma que explora as vítimas e traça um caminho a ser evitado, para que os próximos personagens não sejam os espectadores/leitores. Daí se entende a grande repercussão que determinados tipos de crimes ganham na imprensa.

Esse é um dos aspectos que esta pesquisa aborda, ao investigar como os jornais

Correio da Paraíba e Jornal da Paraíba constroem as notícias relativas a jovens vítimas de crimes. Pergunta-se: existem traços evidentes desse panoptismo na apresentação dos jovens? Como se verá ao final da análise, a resposta é positiva.

4 MÉTODO

Tão importante quanto a discussão dos temas que baseiam este estudo é a apresentação do universo de análise a ser considerado e o método empregado para obtenção dos resultados. Uma vez que não se pretendeu fazer apenas uma revisão de literatura sobre o recorte escolhido, é necessário que se exponham as etapas postas em prática e que permitiram, assim, chegar ao objetivo proposto: entender de que forma as notícias sobre jovens vítimas de crimes violentos foram construídas nos dois jornais impressos selecionados – o Correio da Paraíba23

e o Jornal da Paraíba24 (JP).

Antes de se abordar a Análise de Conteúdo, metodologia adotada, é essencial, em primeiro lugar, destacar e justificar os recortes empreendidos, a começar pelos veículos selecionados. Em uma perspectiva estadual, eles são os únicos que apresentam as mesmas características: são periódicos paraibanos, diários (o JP só não tem edição às segundas-feiras), ainda em circulação (quando da escrita da dissertação), comercializados por assinatura e por venda avulsa, com o mesmo formato (standard25), são oriundos da iniciativa privada e têm uma similaridade nos conteúdos abordados e na linguagem utilizada, pautando uma mesma variedade de temas, como cotidiano local, política, economia e cultura.

Quando da proposta deste trabalho, a Paraíba contava ainda com outros dois impressos: A União, Já e Contraponto. O primeiro não foi considerado, por ser propriedade do Governo do Estado, o que poderia interferir na forma como as notícias relativas a crimes violentos são construídas. O segundo também ficou fora da análise por ser um tabloide que se encaixa na definição de jornal sensacionalista apresentada por Angrimani (1995), isto é, periódicos vendidos avulsos, a valores inferiores aos demais, com um limitado leque de temas, tendo em vista que o foco está na exploração de assuntos relativos a crimes, ao futebol, ao sexo e às curiosidades, com informalidade na linguagem e na abordagem dos conteúdos. O terceiro, ainda que mais próximo do Correio e do JP, somente tem circulação semanal.

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O Correio da Paraíba foi fundado em 5 de agosto de 1953 pelo empresário Teotônio Neto. Faz parte do

Sistema Correio de Comunicação, que possui duas emissoras de televisão – a TV Correio (canal aberto afiliado à Rede Record) e a RCTV (canal por assinatura) –, várias rádios, um portal de notícias online (Portal Correio) e o Já, tabloide impresso vendido a R$ 0,75.

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O Jornal da Pa raíba faz parte do Sistema Paraíba de Comunicação, composto por um canal de televisão aberto

– TV Cabo Branco, afiliada à Rede Globo de Televisão –, um portal de notícias online (G1 Paraíba) e várias

rádios. É um pouco mais recente que o Correio, tendo sido fundado em 5 de setembro de 1971.

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Conforme descreve Marvin (2015), o modelo standard é o mais comumente utilizado pelos jornais de todo o Brasil. Nesse formato, o espaço gráfico ocupado na página mede 52,5 por 29,7 centímetros, enquanto a área total de papel, depois da impressão, chega a 56 por 32 centímetros. Constituem-se, assim, páginas grandes, onde os textos e imagens podem ser aproveitados tanto na vertical quanto na horizontal. Os tabloides têm metade da área do standard.

Um segundo recorte se faz mister ressaltar: a análise do Correio da Paraíba e do

Jornal da Paraíba se deu nos cadernos de Cidades e Últimas (coincidentemente, são os mesmos nomes nos dois veículos). Ambas as seções são as únicas fixas – isto é, estão presentes em todas as edições, com apenas uma exceção26 – que englobam as notícias sobre crimes violentos.

Além de abarcar o noticiário policial, o caderno de Cidades trata de temas do cotidiano local, como conflitos urbanos (protestos, greves, etc.) e o acesso a serviços básicos, como saúde e educação (escolas sem infraestrutura, dificuldades no atendimento em hospitais, iniciativas positivas de inclusão, etc.). Conta ainda com páginas que, a depender do dia, são completamente vendidas a órgãos como o Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil, bem como a colunistas sociais, mas também parcialmente cedidas a colunas sobre assuntos variados. Entretanto, essas seções, que não são de autoria do jornal – sendo inclusive assinalada essa produção externa no topo das páginas/dos textos –, não foram consideradas para esta pesquisa.

Já Últimas, tal como sugere o nome, dedica-se a receber as últimas notícias do dia (independentemente do assunto), por ser diagramada por último, bem como o que não coube nas demais seções, por falta de espaço, como as sobras de Cidades. Assim explica a editoria27 do Correio da Paraíba:

Cidades é, sim, o caderno que traz as notícias relacionadas à segurança. O Jornal Correio não tem o perfil de jornal policial, mas tenta refletir a preocupação da sociedade em relação à segurança. [...] Últimas tem relação com todos os cadernos. Na verdade, não tem servido realmente para o que se propõe, que seria trazer as últimas notícias daquele dia. Por indisponibilidade de tempo e de espaço, a página de últimas tem servido muito mais para abarcar o que não foi possível tratar nos outros cadernos. [...] Cidades é o caderno apropriado para o tema violência. [...] Por ser um espaço limitado, é preciso fazer a seleção dos fatos violentos que tiveram mais repercussão. (Trecho de entrevista realizada em 08 abr 2015, através de uma rede social)

Justifica-se, assim, a escolha dos cadernos de Cidades e Últimas para a análise do noticiário sobre crimes violentos vitimando jovens. As notícias foram as ferramentas de análise, aqui entendidas segundo definição de João Carlos Correia (2011), trabalhada na abertura do primeiro capítulo, para quem notícia é tudo o que o jornal publica. Apesar disso, os gêneros jornalísticos predominantes foram observados, no sentido de identificar possíveis

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A exceção é o domingo, no Jornal da Paraíba, em que Últimas não aparece.

27

Optou-se por não citar o nome do(a) profissional entrevistado(a), por não se considerar que esta seja um informação essencial ou necessária para a compreensão das dinâmicas do veículo. A íntegra da entrevista se encontra no Apêndice C.

relações com os valores-notícia atribuídos às matérias analisadas. Sempre que necessário, a menção a esses formatos foi especificada.

No que tange ao período analisado, decidiu-se analisar o ano de 2014, tendo em vista que, no momento de produção desta dissertação, 2015 ainda não havia chegado sequer à metade. Esse recorte temporal, então, garante consistência à pesquisa. No entanto, tendo em vista a grande quantidade de edições veiculadas no ano em questão, sendo aproximadamente 360 no Correio da Paraíba e 320 no Jornal da Paraíba (porque o periódico não circula às segundas-feiras), considerou-se necessário ter em mãos uma amostragem, descrita por Martin W. Bauer (2002) como “um racional para estudar um pequeno número de textos e, assim mesmo, poder tirar conclusões sobre a coleção completa dos textos” (BAUER, 2002, p. 196).

Para se concretizar esse intento, o autor propõe a adoção de uma semana artificial, isto é, a seleção aleatória de determinados dias da semana, por um longo período, mas que garantem, apesar disso, representatividade analítica. A esse respeito, Heloiza Golbspan Herscovitz (2007) aprofunda da seguinte forma:

Bauer (2000) sugere uma técnica amplamente utilizada e que leva em consideração a capacidade do investigador de lidar com o tamanho da amostra: a semana artificial, que pode ser estendida para uma quinzena ou mês artificial. A amostra construída é considerada confiável, porque seleciona cada dia da semana de uma semana distinta (a primeira segunda-feira de um mês, a segunda terça-feira do mês, a terceira quarta- feira do mês e assim sucessivamente); no caso do mês artificial, cada dia ou semana pode ser recolhido de um mês distinto ao longo de um ano. Para que serve esta estratégia? Para obter-se uma amostra variada, com distribuição equitativa e contendo o mínimo possível de distorções. (HERSCOVITZ, 2007, p. 131)

Seguindo a mesma lógica, chegou-se ao ano artificial, optando pelo seguinte recorte temporal para ambos os jornais: a primeira semana do primeiro mês, a segunda semana do segundo mês, a terceira semana do terceiro mês, a quarta semana do quarto mês, a primeira semana do quinto mês, a segunda semana do sexto mês, a terceira semana do sétimo mês, a quarta semana do oitavo mês, a primeira semana do nono mês, a segunda semana do décimo mês, a terceira semana do décimo primeiro mês e a quarta semana do décimo segundo mês. Tendo em vista que todos os dias de cada semana foram escolhidos, não há perdas nem o risco de haver vícios metodológicos/falta de representatividade/deformações (caso, por exemplo, apenas um mês fosse selecionado para toda a pesquisa), já que todos os 12 meses são contemplados.

Por outro lado, questionou-se: como definir uma semana? Embora o domingo seja considerado o primeiro dia, há meses que se iniciam, por exemplo, em um sábado ou em uma quarta-feira. Avaliou-se, portanto, que seria mais profícuo entender o espaço semanal como o

período de sete dias. Assim, a primeira semana se referiu sempre ao intervalo iniciado no dia 1º e finalizado no dia 7; a segunda semana, ao espaço entre os dias 8 e 14; a terceira, de 15 a 21; a quarta, dos dias 22 a 28. Sabendo, por fim, que, com exceção de fevereiro, todos os meses possuem 30 ou 31 dias, optou-se por tornar a quarta semana a mais longa, incluindo os dias 29, 30 e 31 (quando houvesse), na lógica de contemplar todos os dias do mês.

O quadro a seguir simplifica os recortes empreendidos.

Quadro 2 – Os recortes empreendidos para a pesquisa

RECORTES CONSIDERAÇÕES

Jornais Correio da Paraíba

Jornal da Paraíba

Cadernos Cidades

Últimas

Ano de referência 2014

Recorte temporal Amostragem – ano artificial:

1ª semana do primeiro mês: 01 a 07/01/2014 2ª semana do segundo mês: 08 a 14/02/2014 3ª semana do terceiro mês: 15 a 21/03/2014 4ª semana do quarto mês: 22 a 30/04/2014 1ª semana do quinto mês: 01 a 07/05/2014 2ª semana do sexto mês: 08 a 14/06/2014 3ª semana do sétimo mês: 15 a 21/07/2014 4ª semana do oitavo mês: 22 a 31/08/2014 1ª semana do nono mês: 01 a 07/09/2014 2ª semana do décimo mês: 08 a 14/10/2014

3ª semana do décimo primeiro mês: 15 a 21/11/2014 4ª semana do décimo segundo mês: 22 a 31/12/2014

Fonte: Elaboração própria

Depois de justificar os recortes metodológicos, chega-se, por fim, à descrição específica do corpus da pesquisa. Trata-se das 171 edições veiculadas em 2014, nos cadernos de Cidades e Últimas do Correio da Paraíba e do Jornal da Paraíba, sendo 92 edições do

Correio e 79 do JP, tendo em vista que este último não é veiculado às segundas-feiras.

Como, então, analisar esse material? Para tanto, como adiantado anteriormente, adotou-se a Análise de Conteúdo (AC) como método de pesquisa, conforme se detalhará no tópico a seguir.