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2 A música nas Cantigas de Santa Maria

2.1 A música nos códices conservados

Conforme já foi apresentado na seção 1 desta tese, as CSM estão conservadas em quatro códices (cf. subseção 1.3.4). O mais antigo dos quatro é o códice de Toledo (To), contendo 100 cantigas (somando-se as de miragres com as de loores), além de um prólogo e uma petição final, mais 5 cantigas das Festas de Ano da Virgem Maria e 5 cantigas das Festas de Nosso Senhor Jesus Cristo, somadas a 16 cantigas de miragres que foram acrescentadas à coleção, após a transcrição das cem primeiras cantigas, totalizando 128 cantigas.

No entanto, tal consideração (de este manuscrito ser o mais antigo dos quatro) só pode ser feita do ponto de vista da datação da composição das cantigas contidas nele, pois, em relação ao manuscrito em si, as evidências mostram que se trata de uma cópia tardia do manuscrito original.

Essa afirmação é feita por Anglés (1958), levando em consideração a notação musical. O autor diz que a notação musical tinha como notas fundamentais, na época em que foram compostas as cem primeiras cantigas, a longa e a breve ( ) e que este manuscrito apresenta a breve e a semibreve ( ) como notas fundamentais. Como essa característica - de se apresentar a breve e a semibreve como notas fundamentais - só aparece a partir do século XIV, conclui-se que o códice To é uma cópia do códice original (ANGLÉS, 1958, p. 141- 142).

Por outro lado, Ferreira (2007a, p. 308) trata da probabilidade de esta datação ser inversa, ou seja, de o códice de Toledo ser anterior aos códices escorialenses. O autor apóia-se também em Parkinson (2000), que levanta a possibilidade de este manuscrito ser de fato o original de Afonso X.

60 Em relação ao códice T, ou códice rico, podemos dizer que ele é composto por 193 cantigas e que é o mais luxuoso dos códices devido ao capricho com que foram feitas as suas notações musicais e também à beleza das miniaturas que o adornam.

Analisando a sua notação musical, Anglés (1958) afirma que este é o mais antigo dos códices conservados. Um fato interessante em relação a esse manuscrito é que, em algumas cantigas, ocorre a cópia da música em várias estrofes e, às vezes, com grafias diferentes. Esse fato serve para o estudo do ritmo das CSM em geral, já que a repetição de notas diferentes em estrofes diferentes pode indicar a equivalência de duração dessas notas, uma vez que as estrofes das cantigas possuem sempre a mesma métrica (ANGLÉS, 1958, p. 144-145).

Já para Wulstan (2000, p. 34), um trabalho comparativo sobre as inconsistências de notação presentes nos três manuscritos (To, E e T) pode elucidar dúvidas em relação à leitura da notação quanto ao ritmo, verificando se as passagens em que há dúvida quanto ao ritmo se repetem no mesmo manuscrito, em outras cantigas, ou em outros manuscritos.

Wulstan (2000, p. 33) diz que a notação musical usada pelos escribas das CSM é dividida em dois tipos básicos: um que se refere aos manuscritos E e T, tendo a breve como unidade básica de tempo; e outro que opta pela semibreve como unidade básica de tempo, referindo-se ao manuscrito To, sendo que este tipo de notação é mais atual em relação à notação utilizada nos manuscritos E e T, corroborando, assim, a afirmação de Anglés (1958) de que o manuscrito To é uma cópia do manuscrito original.

Além disso, pode-se notar que, no manuscrito To, com sua notação, a distinção dos modos rítmicos7 é mais clara, o que, para Wulstan (2000, p. 34), torna esse manuscrito mais confiável do que os manuscritos E e T, no que diz respeito à notação musical. Segundo o autor, ou o manuscrito To se aproxima mais do original, ou quem o transcreveu tinha um conhecimento mais apurado sobre a transcrição musical da época. No entanto, Ismael Fernández de la Cuesta é contrário a essa opinião, dizendo que os códices escorialenses possuem uma notação musical quase franconiana (relativo a Franco de Colônia8), muito

7 modos rítmicos: “O conceito medieval pelo qual os padrões rítmicos, todos em métrica tripla, eram definidos e

sistematizados. Aplicando-se sobretudo à música dos sécs. XII e XIII, foram definidos por Johannes de Garlandia (c.1240): ele relacionou seis modos, cada um com padrão rítmico particular (ou ordo). Esses padrões serviram de base para grande parte da antiga polifonia.” (Dicionário Grove de música: edição concisa. Editado por Stanley Sadie; editora-assistente, Alison Lathan; tradução, Eduardo Francisco Alves. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994, p. 612)

8 Franco de Colônia (fl meados do séc. XIII): “Teórico alemão. [...] escreveu, provavelmente c. 1280, o tratado

Ars cantus mensurabilis, que lida de um modo prático com todas as questões e gêneros principais da música do

séc. XIII, com ilustrações adequadas e atualizadas. Sua grande contribuição reside no tratamento da notação, porque contém o primeiro esboço importante de um conceito que doravante tornou-se fundamental à música ocidental: a de que durações distintas deveriam ser representadas por formas diferenciadas de notas (não apenas por contextos diferentes, como até então). Este sistema se manteve, com algumas modificações, durante os dois

61 precisa em relação ao ritmo e que o códice To é, dos três, o que representa o ritmo de maneira menos fiel (FERNÁNDEZ DE LA CUESTA, 1999, p. 353).

O códice F contém 104 cantigas entre cantigas de loores e de miragres. Este códice não contém a música; há, no início, alguns pentagramas traçados, mas se encontram vazios, sem as notas.

O códice E contém 420 cantigas, porém 413 melodias, se descontarmos as repetidas. A sua notação musical, segundo Anglés (1958), é perfeita, e as cantigas de loor, conhecidas como décimas (a décima cantiga, a cada nove cantigas de miragres, é uma cantiga de loor), contêm melodias de grande beleza e variedade rítmica, apresentando um valor maior que as demais, tanto no que diz respeito ao seu aspecto métrico-poético quanto ao seu aspecto musical (ANGLÉS, 1958, p. 145-146).

Em relação às cantigas profanas, isto é, à poesia lírica galego-portuguesa, sabe-se que, excetuando-se as cantigas de amigo de Matin Codax contidas no Pergaminho Vindel, em nenhuma outra foi preservada a música que as acompanhavam. De acordo com Ramos (1995, p. 703), o Pergaminho Vindel é o “único documento que conserva música em cantigas profanas, e é composto apenas pelas sete cantigas de amigo de Martin Codax, seis das quais apresentam notação musical, inscrita em pentagrama por dois copistas diferentes, como agora se provou”. Esta afirmação de Ramos (1995) foi, provavelmente, emitida antes da descoberta do Pergaminho Sharrer, que contém 7 cantigas de D. Dinis, com notação musical (cf. FERREIRA, 2005). Mesmo com a recente descoberta de Harvey Sharrer, o acervo de partituras de cantigas profanas, quando comparado ao de religiosas, é diminuto.