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As músicas em Bumba, meu queixada

CAPÍTULO II – Do Bumba-meu-boi às greves operárias: personagens, temas e enredo

2.2 As músicas em Bumba, meu queixada

A música no espetáculo teatral pode adquirir diversas funções, relacionando-se intimamente com as intenções estéticas e cênicas do dramaturgo ou do encenador. Executadas ao vivo ou reproduzidas a partir de gravações, elas integram a encenação.

169 Idem, ibidem, p. 47. 170

SCHERRER-WARREN, Ilse. O caráter dos novos movimentos sociais. In: SCHERER-WARREN,

Em Bumba, meu queixada, a trilha sonora ficou a cargo de uma bandinha posicionada no palco, com personagens-cantores entoando as canções, ora individualmente171, ora coletivamente pelo coro.

O coro, na tragédia grega, era utilizado para comentar a ação; no teatro épico, foi empregado como recurso para criar distanciamento. Pavis atribui importância fundante a esse recurso na tragédia grega e comenta que, apesar disso, “o coro logo parece elemento artificial e estranho à discussão dramática entre as personagens. Torna-se uma técnica épica, muitas vezes distanciadora, pois concretiza diante do espectador um outro espectador-juiz da ação habilitado a comentá-la.”172

Inserimos, nesse contexto, o efeito de distanciamento proposto por Brecht, que busca romper a passividade do público diante do espetáculo. Recursos como “recorrência à terceira pessoa; recorrência ao passado e intromissões de indicações sobre a encenação e de comentários”173 são utilizados para provocar um estranhamento no espectador, para que ele perceba que está diante de uma montagem.

A música na dramaturgia brechtiana pode assumir funções como comentar a narrativa, apresentar uma visão crítica frente ao enredo encenado ou acrescentar um ponto de vista, nunca para aumentar a intensidade da ação narrada.174 Em Bumba, meu

queixada, a música foi utilizada, em alguns momentos, seguindo os princípios de

Brecht.

As letras foram compostas por César Vieira, com arranjos musicais de José Maria Giroldo. As canções são recorrentes em toda a peça, abrem todas as cenas, sempre com a função de sintetizar a fábula a ser narrada em cada quadro, sinalizando assim, para o leitor/espectador, a temática do próximo episódio.

No desenvolvimento da ação cênica, o uso da música não ocorre de modo homogêneo. Na primeira cena, as intervenções musicais seguem a linha do folguedo, alternadas entre as falas dos personagens. Cabe destacar que algumas músicas são as mesmas do Bumba-meu-boi, a exemplo das canções que apresentam alguns personagens como Cabloco do Arco175 e Tuntuqué. Há também nesse quadro canções que mesclam trechos das músicas do folguedo com versos da autoria de Vieira. Constatamos isso por

171

Chegamos a essa conclusão a partir da rubrica “A bandinha vai se colocando num canto. A cantadeira também toma o seu lugar”. “Toda essa cena é muito alternada, ora com falas ou músicas soladas pelo capitão ou pela cantadeira, ora com o coro cantando junto.” In: VIEIRA, César, op. cit., 1980, p. 25.

172

Cf. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 74.

173

BRECHT, Bertold. Estudos sobre teatro. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 107.

174

ROSENFELD, Anatol, op. cit., p, 160.

175

meio de análise comparativa entre as cantigas entoadas por cantadores do Bumba, catalogadas por Mário de Andrade na obra Danças dramáticas do Brasil176, e as canções da peça.

Na segunda cena, o uso da música é menos recorrente, com pequenos trechos que indicam a ação de personagens, como na seguinte passagem: “E o mecânico da roda-gigante segurando a mão da pipoqueira na esteira da lua retirante.”177 Na mesma cena se ouve a música “Pode vir quente que eu estou fervendo”, de Roberto e Erasmo Carlos, cantada pelo personagem Buffalo Bill para a Pipoqueira. Para acompanhar a rubrica (indicação cênica) “Buffalo sai correndo atrás da Pipoqueira cantando... tentando agarrá-la”178, a canção dita o ritmo de gestos sensuais. É o único momento da peça que insere música não composta por César Vieira.

Esse recurso é empregado também para marcar o início e o fim da ação na terceira cena. Em versos curtos, impregnados de sonoridade, a letra acrescenta informações à narrativa. Nesse ínterim, o enredo se concentra no cotidiano de uma família de queixadas e a canção fala desses personagens, porém, em outra circunstância, na greve de Guarus. A função assumida pela música nessa cena se aproxima da proposta de Brecht.

Tem um porco do mato Um porco selvagem

Que quando anda em bando Vira turma da pesada Seu nome é Queixada (bis) Teve uma greve na cidade De Guarús, onde os operários sabedô dos seus direitos Assinaram em cruz Foi uma briga feia Duro dezena e meia Uma briga danada E os operários

Chamavam Queixada179

Na quarta cena, assim como na terceira, a música anuncia a fábula a ser narrada/encenada no início do quadro. A letra da canção revela uma visão crítica e realista do autor, que busca dar elementos de veracidade ao episódio da greve.

176

ANDRADE, Mário. Danças dramáticas do Brasil. Belo Horizonte/Brasília: Editora Itatiaia. INL, Fundação Nacional Pró-memória, 1982.

177

VIEIRA, César, op. cit., 1980, p. 38.

178Idem, ibidem, p. 40. 179Idem, ibidem, p. 45.

Este é um causo verdadeiro Que não é o derradeiro Contado quase inteiro De um trabalhador brasileiro Como todo cidadão

Foi chegado o momento Teve seu nascimento

Teve amor e dor, sofrimento (...)180

No desenvolvimento da quarta cena, o trecho musicado – “Este é um caso verdadeiro/ Que não é o derradeiro/ Contado quase inteiro/ De um trabalhador brasileiro/ Olha a sorte/ Olha a sorte”181 – é utilizado em três momentos diferentes, mas em todos assume a mesma função: marca o fim de um ato e o início de outro, balizando a mudança do espaço cênico e de personagens. No primeiro momento, coincide com o término da ação desenvolvida no departamento pessoal da Metalúrgica Brasilina e o início do ato seguinte no refeitório da empresa, quando o elenco assume outros papéis. De acordo com as indicações no texto, a música é executada por Cigana, Pipoqueira, Pastorinha e Cantadeira. Ainda na quarta cena há outra passagem em que ela é usada pelas mesmas figuras para esclarecer ao público sobre o desfecho da ação que não foi encenado: “E o Mané perdeu a reclamação/ Mas aprendeu a lição... (bis)/ Olha a sorte... Olha a sorte...182

As músicas de Bumba, meu queixada também foram ouvidas fora dos palcos, em 1979, no mesmo ano da estréia da peça, quando o grupo Teatro União e Olho Vivo lançou disco183 de título igual ao da peça (figura 6) pela gravadora Marcus Pereira. Em ritmo nordestino, o grupo gravou o repertório do espetáculo, incluindo músicas de trabalhos anteriores, como Evangelho segundo Zebedeu e Rei Momo. A gravação contou com a participação especial de Adauto Santos (viola), Marcus Vinicius (caixa de frevo) e coro de meninos do Colégio Equipe.

180Idem, ibidem, p. 51. 181

VIEIRA, César, op. cit., 1980, p. 54.

182Idem, ibidem. p. 61. 183

Ficha técnica do LP- produção de discos: Marcus Pereira, direção artística: Marcus Vinicius, direção musical e arranjos: José Maria Giroldo, estúdio: Spalla Gravações–São Paulo, técnico de gravação: Sérgio Jovine, fotos de capa/contracapa: André Boccato, Lay-out: Aníbal Monteiro.

Figura 6 - Capa do LP Bumba, meu queixada.

Fonte:http://criaturadesebo.blogspot.com/2008/02/bumba-meu-queixada-teatro-unio- e-olho.html

Produzida a partir de uma fotografia de André Boccato, a capa do LP traz a imagem de um personagem do Bumba-meu-boi, Capitão montado em seu Cavalo Marinho. A foto é de um artesanato elaborado pelo pernambucano Antônio Pereira, que foi capitão de um Bumba-meu-boi no Recife, lá conhecido por “Boi dos afogados”. O artista colaborou com o TUOV no processo de elaboração da peça.

A capa mostra a imagem do Cavalo Marinho sobreposta ao fundo preto. Na parte superior, à esquerda do leitor, em sentido horizontal, aparece o título do disco, Bumba,

meu queixada. Na lateral, também à esquerda, na vertical, consta o nome do grupo,

Teatro União e Olho Vivo.

A gravação do disco Bumba, meu queixada foi recebida com grande entusiasmo pelo então crítico de música Maurício Kubrusly. No texto intitulado “O susto de descobrir o Brasil de repente”184, veiculado na revista Somtrês em fevereiro de 1980, Kubrusly fala da sua insatisfação com a situação musical no Brasil daquele período. Segundo o autor, a dinâmica cultural das gravadoras, das rádios e da televisão impôs o modelo musical do Rio e São Paulo às demais regiões do país. Eis o motivo, segundo

184

Kubrusly, de a música regional estar sendo dizimada. Apresentado o panorama da realidade musical, o autor comenta:

E por absurdo que seja, o LP Bumba, meu queixada! pode representar uma experiência inédita para muitos de nós. Rigorosamente brasileiro – sem fundir reggae com xote nem fanky com samba progressivo, e outras misturas da temporada –, o disco registra parte das canções apresentadas pelo grupo Teatro Popular União Olho Vivo.185

Subentendemos que a valorização conferida ao LP por Kubrusly se sustenta no fato de as canções estarem afinadas não com modismos, mas sim com elementos da cultura musical nordestina.

2. 3 – O enredo de Bumba, meu queixada