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A materialidade de Bumba, meu queixada e sua aproximação com o cordel

CAPÍTULO III – Do espectador ao leitor: a publicação do livro Bumba, meu queixada

3.2 A materialidade de Bumba, meu queixada e sua aproximação com o cordel

produção do texto teatral, estão algumas obras da literatura de cordel304, como A

história do boi misterioso305

, O boi no pé de cajarana, A história do boi mandigueiro e

o cavalo misterioso e Antologia da literatura de cordel306, buscaremos compreender

como essas referências influenciaram a escritura do texto e a publicação do livro. Partimos do seguinte questionamento: É possível fazer uma aproximação entre os livrinhos de cordel com a publicação de Bumba, meu queixada? Se a resposta for afirmativa, quais são esses elementos que as aproximam?

Sobre a materialidade do objeto artístico, recorremos às considerações de Roger Chartier apresentadas no texto “O mundo como representação”:

Contra uma definição puramente semântica do texto, é preciso considerar que as formas produzem sentido, e que um texto estável na sua literalidade investe-se de uma significação e de um estatuto inéditos quando mudam os dispositivos do objeto tipográfico que o propõem à leitura.307

Para Chartier, o estudioso da cultura deve propor uma dupla abordagem do objeto artístico, atentando para as questões relacionadas tanto ao seu conteúdo quanto à sua forma. No caso da obra literária, a ênfase não deve recair apenas nos significados do texto; é preciso considerar os dispositivos formais no qual o texto se apresenta ao seu leitor. Nesse sentido, diante de uma publicação, devemos analisar os usos das iconografias, a diagramação, a pontuação, a linguagem e, a partir do levantamento desses indícios, buscar compreender como esses recursos interferem nos sentidos que o leitor confere à obra.

303

VIEIRA, César, op. cit., 1980, p. 81 -82.

304

De acordo com Márcia Abreu, o aspecto material define e nomeia essa literatura que é conhecida como folheto, livro (ou livrinho) de feira ou literatura de cordel. “As várias denominações possíveis fixam-se no aspecto material – folheto ou livrinho -, no local de venda – livro de feira-, ou em modos de exposição do produto à venda – literatura de cordel.” ABREU, Márcia. A biblioteca e a feira – considerações sobre a literatura de folhetos nordestina. In: DIAS, Tânia; SÜSSENKIND, Flora (orgs.). A

historiografia literária e as técnicas de escrita. Rio de Janeiro: Edições Casa Rui Barbosa, 2004, p. 426.

305

BARROS, Leandro Gomes de. A história do boi misterioso. LEITE, José Costa. O boi no pé de

cajarana. PINHEIRO, Luiz da Costa. A história do boi mandigueiro e o cavalo misterioso. Nessas obras

consultadas pelo grupo não consta informações sobre data e editora. Essas obras foram pesquisadas pela autora do trabalho no site <http://www.dominiopublico.gov.br/>. Acesso em: 27 set. 2008.

306

BAPTISTA, Sebastião Nunes. Antologia da literatura de cordel. Natal: Fundação José Augusto/colaboração Shell Brasil S.A., 1977.

307

Para analisarmos a materialidade da publicação do livro Bumba, meu queixada, lançamos mão, entre outros elementos, da imagem da capa, correspondente à figura 22.

Figura 22 - Capa do livro Bumba, meu queixada, 1980.

Fonte: Acervo pessoal Roberta Paula.

O livro Bumba, meu queixada é composto por 87 páginas, na dimensão de 13,5 x 20,5 cm. É relativamente pequeno, de tamanho aproximado aos exemplares da literatura de cordel, que variam entre 11 x 16 cm e 11,5 x 17,5 cm. Esse é um dos elementos formais que permite ao leitor, à primeira vista, fazer uma relação entre o livro e o cordel.

Além da dimensão do livro apresentar semelhanças com o tamanho dos folhetos nordestinos, a ilustração da capa é outro elemento de aproximação com as imagens recorrentes no cordel. Nos livrinhos de feira, as capas são ilustradas com uso de xilogravuras. A técnica é desenvolvida sobre um bloco de madeira no qual o artista talha um desenho que servirá de matriz para a reprodução das estampas no papel. Essa técnica tem custos muito baixos se comparados com os das gravuras industrializadas.

Majoritariamente, as gravações das capas dos cordéis são realizadas pelo próprio autor do livro, que assume também as funções de comercializar e editar a sua obra.308

Em Bumba, meu queixada, a capa foi produzida por Tavares Neto com arte elaborada por André Boccato; ambos eram diretores da editora Graffiti. A ilustração apresenta alguns aspectos que remetem à xilogravura, como a textura que lembra os veios da madeira e as cores: a grande maioria os cordéis possui imagens grafadas em preto no papel branco ou colorido. Na capa do livro foram utilizados o branco no título e nome do autor, o laranja no fundo e o preto na figura. Predomina o laranja, cor mais intensa e vibrante se comparada com outras como branco, azul e rosa, geralmente utilizadas nas capas dos folhetos de cordel. O contraste do laranja com o preto e o branco cria impacto visual e torna o livro atrativo ao público.

É importante mencionar que, na década de 1970, a editora paulista Luzeiro309 começou a publicar os folhetos nordestinos, em formato maior e com capas ilustradas com desenhos e em cores. Acreditamos que, nesse contexto editorial, o Teatro União e Olho Vivo conferiu ao livro Bumba, meu queixada um caráter visual bem próximo ao

design gráfico dos livrinhos de feira, articulando elementos tradicionais dos folhetos

com as inovações da Luzeiro.

Conforme Márcia Abreu, em seu texto “A biblioteca e a feira – considerações sobre a literatura de folhetos nordestinos310”, as ilustrações das capas dos folhetos nordestinos funcionam como a “síntese gráfica do enredo”, o que permite aos leitores analfabetos escolher o livro a partir das imagens sem a necessidade de ler o título.

No caso de Bumba, meu queixada, a capa é bastante sugestiva para o leitor. No primeiro plano, a imagem de um homem sobre um animal que pode ser um boi ou um cavalo; os adereços indicam que seja o Bumba-meu-boi ornamentado como nas apresentações do folguedo. No segundo plano, um grupo de pessoas carregando algumas faixas com os seguintes dizeres: “Greve até a vitória”, “..sindical”, o que indica uma manifestação/passeata de um movimento grevista. A partir dessas informações iconográficas, o público, mesmo sem uma educação formal, identificaria sem muitas dificuldades o enredo do livro. Conjugando a iconografia e o título, o enredo fica então especialmente evidente.

308

. FRANKLIN, Jeová. J. Borges. São Paulo: Hedra, 2007, p. 36.

309

Cf. SOUZA, Liêdo Maranhão de. O folheto popular – sua capa e seus ilustradores. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 1981.

Outro componente importante é a contracapa (figura 23), também em laranja com textos impressos em preto. Nela estão reunidas opiniões sobre o trabalho do Teatro União e Olho Vivo e o espetáculo, escritas pela crítica teatral Ilka Maria Zanotto, pelo jornal La Barricada, da Nicarágua — uma referência à atuação do grupo em outros países da América Latina —, e pelo então líder sindical Luiz Inácio da Silva, o Lula, que assim se manifestou: “‘Bumba, meu Queixada’ é direto, claro. Falou no coração e na cabeça de todos os companheiros. Ficamos emocionados e agradecidos.”

Figura 23 - Contracapa do livro Bumba, meu queixada, 1980.

Fonte: Acervo pessoal Roberta Paula.

As semelhanças entre as capas dos folhetos de cordel e a do livro Bumba, meu

queixada não se restringem apenas ao campo das ilustrações. Um outro elemento a ser

considerado é o arranjo gráfico das informações presentes nas capas. O título do livro e o nome do autor, nos dois casos, aparecem na parte superior da capa e as ilustrações são inseridas logo abaixo — ocupam o maior espaço e criam um apelo visual.

Para uma melhor interpretação desse aspecto de nossa análise, repetimos a seguir a figura 22 (capa do livro), colocando ao seu lado a imagem da capa de um cordel (figura 24).

Figura 22 Figura 24 - Capa do cordel Romance do pavão

misterioso311

Fonte: Domínio público

Numa perspectiva complementar de análise sobre as características formais do cordel, notamos uma semelhança de Bumba, meu queixada com o texto de cordel, assim descrita por Márcia Abreu:

O número de folhas baliza a criação, pois o autor não pode ocupar menos ou mais páginas e sim um espaço exato, em situação análoga à dos escritores de folhetim, que deveriam desenvolver um capítulo dentro de determinado número de linhas. É preciso lembrar que os folhetos são escritos em versos de modo que a delimitação não se restringe à quantidade de páginas; na verdade, o poeta deve compor um número determinado de estrofes.312

A disposição em estrofes constitui mais um ponto de aproximação do livro com a literatura de cordel, já que o texto da terceira cena da peça é formatado em estrofes.

311

Capa do cordel Romance do pavão misterioso, João Melquiades Ferreira. Folheto sem indicação de data, editora e local de edição. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/>. Acesso em: 27 set. 2008.

312

Mas o número delas, que varia entre cinco e oito por página, diferencia o texto teatral do cordel, pois uma característica deste é que “em cada página cabem cinco estrofes (sendo em sextilhas (...) Na primeira, apenas quatro – para que o título da História, do folheto ou do Romance fique mais destacado, bem como o nome do autor.”313 Nesse aspecto, a publicação da peça não segue com rigor as normas de composição dos livrinhos nordestinos, e nem poderia, uma vez que seu formato é de um texto teatral e não de literatura de cordel.

Em relação à característica formal das estrofes no cordel, Laurence Hallewell apresenta as composições mais habituais e suas variedades:

Usam-se formas de versificação, sendo que a quadra (estrofes de quatro versos com sete sílabas) foi a mais popular no século XIX e a sextilha (estrofes de seis versos de sete sílabas) a mais popular no século XX. Outra forma popular é a décima (sete ou dez versos de dez sílabas).314

O texto da peça não apresenta padrão único no formato dos versos; há estrofes com três, quatro, cinco, seis, sete, oito e dez versos, predominando as quadras. No trecho transcrito a seguir, verificamos as diferenças na versificação: a primeira estrofe com quatro versos, a segunda com cinco e a terceira com oito.

Veste o macacão remendado Emborca o café aguado

Passa a mão no rosto da companheira E corre pra forá da solera

Pula as poça d’água Desce a rua esburacada Se junta a mais dois camaradas E correndo todos trêis

Consegue, ainda, pegá o “tronco” das seis O tronco das seis – lotado

Vai descendo o rio Com toda bicharada

esprimida, aboletada e suada E papai queixada Na curva do milharal Dá o sinal é a sua parada315 313

CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. Como fazer versos. Correio Popular. Campinas, agosto de 1982.

Apud ABREU, Márcia, op. cit., p. 426.

314

HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005, p. 640.

315

Considerando que as formas produzem sentidos, podemos inferir que o leitor de cordel, ao deparar-se com o texto organizado em estrofes, poderia associar a leitura de

Bumba, meu queixada com aquela literatura.