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2 DA ESCOLA À CONSTITUIÇÃO DE ABJEÇÕES: CONSTRUÇÃO DO OBJETO

3.7 Mais uma palavra sobre o São Arcanjo

ligadas à atividade do tráfico. No texto, cito algumas como movimento. Movimento e firma são sinônimos, especificamente atividades na boca de fumo, locais onde se vendem as drogas; entretanto, firma é uma expressão mais abrangente, podendo enquadrar distintas atividades criminais, como roubo e sequestro. Envolvido é quem participa de alguma forma do "mundo do crime". A firma ou o movimento exprime tarefas e papéis em seu funcionamento. Assim, o chefe do tráfico geralmente é identificado como o frente da boca, o fiel é o iniciante no crime, que pode ter várias atividades, desde ser aviãozinho (levar e trazer recados ou "mantimentos", assim como fazer um caminho antes que o chefe se arrisque neste), o vapor (vender a droga) ou mexer diretamente com a arma de seu fiel (pessoa envolvida no crime há mais tempo, por isso, a expressão "Isaque é fiel do irmão"). No caso especifico de Isaque, ele fazia vários papéis, inclusive a endolação, que é embalar a droga em pequenas quantidades para que essa seja vendida e negociada. Existem também pessoas que trabalham na contenção, os fogueteiros, que avisam a entrada da polícia, como dos alemão (inimigos) – estes são também conhecidos como campanas ou falcão (quando trabalham no tráfico noturno). Estas pessoas observam tudo o que acontece no São Arcanjo. Qualquer visitante não identificado, ou movimento não característico do local, é rapidamente registrado e uma ação deve ser tomada de imediato.

3.7 Mais uma palavra sobre o São Arcanjo

Os meninos do São Arcanjo são constituídos socialmente como abjetos. A abjeção fala dessas zonas de invisibilidade, das vidas que são "invivíveis" e que a produção das formas de poder oferece. Nas palavras de Butler (2012, p. 19, 20) "Lo abyecto designa aquí

precisamente aquellas zonas 'invivibles', 'inhabitables' de la vida social... cuya condición de vivir bajo el signo de lo 'invivible' es necesario para circunscribir la esfera de los sujeitos".

Justamente por serem formas de viver ilegítimas, "invivíveis", são zonas que constituem o limite do que define o que é sujeito, o que é humano, pois são sítios de identificações temidos socialmente, "[...] contra las cuales – y en virtud de las cuales – el terreno del sujeto

circunscribirá su propia pretensión a la autonomía y a la vida" (BUTLER, 2012, p. 20).

Constituem-se "corpos que não importam" (BUTLER, 2012), não sujeitos, não vidas, corpos "assassináveis" (AGAMBEN, 2002). Indo, entretanto, contra o estabelecimento do poder, agem e ganham força com a exclusão e a abjeção, constituem mecanismos de

resistência, lutam por suas vidas, que podem ser perdidas a qualquer momento, por serem exclusivamente destinadas a isto, de acordo com as estruturas de poder.

A constituição desse sujeitos se dá pelo mecanismo do repúdio, que produz o campo da abjeção, "[...] un repudio sin el cual el sujeto no puede emergir" (BUTLER, 2012, p. 20). Quanto maior a proximidade social desse sujeito autônomo e normatizado pela estrutura dominante do poder, o argumento será o repúdio, "para mim isto não se aplica, eu não sou isto". O estabelecimento desse "isto" é o que constitui o quadro do que pode ser eliminado socialmente. E há várias formas de eliminação, por exemplo, quanto ao aluno abjeto, o mecanismo do repúdio existe, repudia-se o projeto de marginal que já deu certo, o

incapaz, deficiente que não era para vir a escola, indignos no ambiente escolar, apesar de a

escola fazer uso desses mecanismos do modo mais eufemizado possível, mediante o aparato pedagógico, e por meio do discurso em torno dos transtornos de aprendizagem e da constatação politicamente correta de que efetivamente não posso fazer nada por ele.

Os que materializam a norma são corpos necessários. Em contrapartida, os que se apresentam em oposição completa à norma estabelecida, se tornam abjeção, corpos que não importam. Pensando, contudo, nas manifestações sociais e reivindicações destes corpos abjetos, é possível dizer que o terreno da normatividade até pode vir a se interessar por eles, mas o fazem de forma a continuar a eliminá-lo do próprio campo normativo, pois os delineia com suporte nos próprios parâmetros negativos ou "patologizantes". Daí o limite da representatividade política.

Tais sujeitos abjetos ameaçam as fronteiras do que é propriamente "humano", "[...] los cuerpos abyectos o deslegitimados no llegan a ser considerados 'cuerpos'" (BUTLER, 2012, p. 38). Ao identificá-los como o que não pode ser considerado corpo ou o que não pode ser considerado sujeito, não se está negando que haja o corpo em seu estado ontológico, questionamento que se faz com base nos estatutos de poder que delimitam e nomeiam o que é um corpo e como deve ser, o que é sujeito e como deve ser, o que é um aluno e como deve ser, o que é, portanto, humano. Com efeito, não é um questionamento da humanidade em si, mas do que é humano com origem na delimitação do poder.

Esses contextos do São Arcanjo mostram não apenas a realidade de pobreza e violência, mas também os campos de abjeção social e sua extensão em tecidos e órgãos do Estado. Esses contextos denotam ainda as gestões e modos de vida ilegítimos perante o Estado e a sociedade. Nestes âmbitos, tais indivíduos "não são apenas bandidos". Há respeito, há admiração, há formas de gerenciar um jeito de ser da comunidade. Isso não se restringe aos espaço especifico de onde os alunos moram, ultrapassa os muros da escola, é o que são. É

desse lugar de re-significação subversiva que emergem os alunos abjetos, instituindo assim momentos da gestão ligados às condições vivenciadas no São Arcanjo e de sua reprodução como campos de resistência na escola.

Todas essa práticas identificatórias, a produção de fronteiras, a rede de ilegitimidade e a legitimação do crime estão nesses alunos e desembocam na escola, como uma elaboração social de raízes mais profundas que produzem e reproduzem a constituição das abjeções no espaço escolar. Nesse contexto, cabe uma palavra específica ao aluno com deficiência como o que Foucault (2005) denominou a palavra do louco e do seu valor, como um local de inapropriação que não leva apenas à constituição social do seu espaço de convivência, mas como uma elaboração de local já propriamente desqualificado e abjeto. Dito tudo o que foi exposto, passo agora a apresentar a Escola Municipal Capistrano de Abreu.

4 O DIREITO E O VALOR DA EDUCAÇÃO: A ELABORAÇÃO SUTIL DA