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2 DA ESCOLA À CONSTITUIÇÃO DE ABJEÇÕES: CONSTRUÇÃO DO OBJETO

3.5 O rapaz ajuda a gente; ele é bonzinho

-Valentino me fala um pouco da tua família. Onde você mora?

-No São Arcanjo. Mas antes eu morava lá no Santa Maria. Mas nós teve de sair de lá, porque tinha um homem que tava ameaçando de morte a minha mãe e a minha irmã.

-É mesmo? Por quê?

- Tia é que a mãe ajudava ele lá nuns negócio, a mãe e minha irmã trabalhava pra ele em umas coisa aí, envolvida sabe?

-Sei.

-Pois é, aí minha mãe não quis ficar com ele aí ele endoidou. E a mãe num quis ele não porque ela já tinha outro homi, queria era só ajudar no negócio lá.

-Ele era namorado da tua mãe? -Quem?

-Esse homem que ameaçou ela? -Não.

-Ele queria namorar tua mãe.

-Tia ele queria namorar minha mãe, mas a mãe não quis. Ai ele endoidou lá. -Nossa, aí vocês tiveram de mudar de lá?

-É, a mãe até chamou a polícia pra ele. Aí a polícia veio e pediu o nome e o telefone da minha mãe.

-Mas a polícia falou com ele também?

-Não. Ele vive nas entoca, não tem como achar ele não. Mas as coisas pioraram porque a polícia foi lá, porque a gente chamou, aí a gente teve que ir embora rápido, pra não morrer. Os cara queriam a cabeça da minha mãe e da minha irmã.

-Agora tu vive no São Arcanjo, legal. E tu gosta de lá? -É bom aqui.

-Tu tem um monte de amigo na rua?

-Não, só brinco com meu primo em casa. Ele é bonzinho pra mim. Ele pega o videogame e me chama pra brincar. Nós brinca de carrinho, de bila, de pega-pega.

-É.

-E quem é que trabalha na tua casa?

-Minha mãe. Agora ela tá trabalhando em casa de família.

-E tu fica com quem em casa pela manhã? Se tua mãe está trabalhando com quem você fica?

-Com minha mãe.

-Mas ela não trabalha em casa de família?

-Não tia ela ia começar segunda, mas acho que nem vai. -E como faz ela para ganhar dinheiro?

-O homi da moto dá dinheiro pra nois. -Quem é ele?

-A mãe passa umas coisas pra ele e ele leva e trás um dinheiro pra nois. Ele trabalha de mototaxi. Ele é bonzinho com nois, trás fruta pra nois.

-E ele conhece você e sua irmã? -Conhece e ele dá as coisas pra nois.

-Certo, mais ele é da tua família ou ele só ajuda porque ele é legal?

-Tia ele ajuda porque a mãe dá as coisa pra ele vender, aí ajuda. Mas ele não dá só dinheiro não, dá feira pra nois, dá fruta. Mas ele é de outra família.

-E tu trabalha?

-Não, mas eu ajudo minha mãe em casa. -É mesmo, com o quê?

-Ela manda eu pegar balde, pastorar a água. -Certo. E no final de semana vocês fazem o quê? -Nois vai pra igreja de evangélico. A mãe é evangélica.

*

Hoje, em razão da falta de água no bairro, tivemos que acabar o turno escolar mais cedo57. As atividades escolares encerram-se às 15 horas, horário em que deveria se iniciar o recreio. Como muitos alunos ansiavam por brincar um pouco na quadra, ainda ficou um movimento na escola. Zélia programou uma reunião de uma hora para às 16 horas, comigo e com Emília. Nesse intervalo, ficamos observando os alunos que estavam na quadra. Emília

57 Caderno de Campo, 23/05/2013.

me pediu para fazer um lanche na sala dos professores. Fiquei na quadra observando os alunos. Dois times disputavam uma partida de futebol. Entre os jogadores estava Isaque. Quando o jogo acabou, ele e outros alunos se dirigiram ao meu encontro para comentarem suas performances no jogo. Isaque sentou-se ao meu lado e conversava comigo e os demais alunos. Aos poucos estes começaram a ir embora e Isaque permanecia ao meu lado conversando. Pouco tempo antes de sair para a reunião, ele me perguntou:

-Tia a senhora tem face? -Sim, tenho.

-Qual teu face? -Valéria Cassandra.

-Vou solicitar amizade da tia hoje, posso?

-Claro. Eu aceito na hora. Dei um sorriso e me retirei.

À noite, quando cheguei em casa, fui verificar minhas mensagens, email e ver o

face. Deparo a solicitação de amizade de um tal "São Gabriel Gomes", na foto do perfil da

pessoa estava um jovem de cabeça baixa e boné segurando uma arma de grande calibre, como um fuzil. Tomei um susto, fiquei um pouco apavorada, não imaginava quem poderia ser. Entrei no perfil para ver de onde o conhecia e entender o porquê daquela solicitação de amizade. Logo que comecei a ler os "postes", percebi que era o Isaque, mas confesso que fiquei assustada com o conteúdo da página, com as informações que continham nos "postes". Fiquei mais assustada em ver uma imagem real do Isaque, aquele menino que aprendi a gostar, ali usando uma arma daquele porte, como sua imagem em outras fotos com armas, mas sempre com o rosto coberto. Sabia do seu envolvimento com as atividades ilícitas, mas nunca produziria tais imagens em minha mente apenas com o conhecimento que tinha dele da escola. Simplesmente era uma conta que não fechava, vê-lo na escola e em ação no "mundo do crime".

Fiquei até muito tarde da noite passando de uma página para outra, vendo conteúdos similares nos perfis de seus amigos. Impressionava-me o fato de estar tudo ali, tão público, ao acesso de um clique. Pensei nas redes sociais e sua função de sociabilidade, de acesso rápido à informação, enfim. Percebi que ali também, no mundo virtual, sua sociabilidade era marcada pelas questões oriundas do São Arcanjo. Esses eram seus mundos, eram o que gostariam de compartilhar, de curtir, de comentar.

*

Hoje estou um pouco cansada58, fiquei até tarde analisando todo o conteúdo das páginas do Facebook ligadas a Isaque, suas redes de relação, como viabilizam esse espaço, de forma muito diferente da que eu faço, uma vez que só tenho comentários do meus amigos, e ele até seus inimigos utilizam a sua página para se comunicar, ameaçar de morte, entre outras coisas. O intrigante é que, passado o momento inicial de choque com o conteúdo e a confirmação real de Isaque como um integrante do "mundo do crime", pensei: Nossa! Isaque sabe escrever. Escreve com erros de português, mas escreve! Fiquei intrigada com o fato, queria vê-lo logo para perguntar desde quando ele escreve, não seria o primeiro aluno que tem um saber que a escola não autoriza. Quando chegou o turno da tarde na escola, fiquei ansiosa o esperando na portaria. Quando chegou, falei logo:

-Então, você sabe escrever, Isaque?

Ele ficou constrangido com minha pergunta e desconversou: -A tia me aceitou como amigo? Curtiu meu face?

Tinha algumas pessoas onde estávamos, então nos afastamos um pouco para continuar a conversa.

-Por que não me disse que sabe escrever? Por que dizem que você não sabe? -Poxa tia, tô com uma escopeta invocada na capa e tu vem me falar de saber escrever? Poxaaa, man!!!!!

-Fiquei impressionada com a arma. Mas me diz por que não escreve aqui?

Isaque tentou disfarçar um pouco falando da potência da arma, mas insisti na pergunta. Ele então me explicou:

-É precisa saber escrever pra usar o face? Mas, tia quem escreve é um pivete ali... Eu só digo o que quero que ele coloque. Na quebrada tem que ser safa... tá ligada? O muleque tem amor a vida e num conta não. Também quem já se viu um muleque pagar de bichão pra mim? – risos.

Entendi. Nesse momento eu que fiquei constrangida e disse: -Sim, mas e aquela arma como conseguiu? É grande em? -Fuzil, metralhadora, escopeta a gente aluga.

Fiquei calada e o constrangimento atingiu nós dois. Ele iniciou uma conversa: -Tia num imaginava meu face assim né?

58 Caderno de Campo, 24/05/2013.

-Não. Devo admitir que não. -Tia a parada num é mole não...

-Imagino. E por que você escolhe esse tipo de parada?

-Respeito tia a gente conquista. Eu conquistei meu local lá. Meu irmão já é considerado, mas eu batalhei por meu local também. Mas num é mole não...

-E o que é mais difícil? Tá no meio de tanto ódio é o pior?

-Nan... mané ódio... difícil é vê os parceiros ir para Deus, tá ligada? Os parceiro ir para Deus fazendo as paradas. É cada guerreiro que a gente perde. Aí a gente sabe que uma hora é a gente, mas tô aqui para tudo. Tem que ser. A tia num gostou né?

-Não é isso Isaque. Gosto de você, sou sua amiga, quero algo melhor para você, essa vida é muito difícil como você mesmo está dizendo.

-Tem que ser, tenho tudo que eu quero, sou respeitado, tenho mulher, tenho dinheiro, nego sabe que comigo o papo é reto.

-E por que vir a escola?

-Num sou vagabundo, tem que limpar a ficha, tá ligada? Sou estudante.

-Sei. A aula vai começar, depois quero conversar mais, ouvi várias músicas do Mc Orelha, do Racionais MC`s quero saber mais, ok?

-Depois eu desenrolo pra tia. – Risos.