• Nenhum resultado encontrado

A era dos manifestos: o caso brasileiro

Capítulo V: INTERSECÇÕES POLÍTICAS E ARTÍSTICAS ENTRE BRASIL E ARGENTINA:

5.1 A era dos manifestos: o caso brasileiro

167 GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Regionalidade e universalidade na expressão artística latino-americana. In:

BULHÕES, Maria Amélia; KERN, Maria Lúcia Bastos. (org.) Artes Plásticas na América Latina contemporânea. Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, 1994.

As mudanças provenientes do fim Segunda Guerra Mundial na Europa tiveram ressonância no Brasil e na Argentina. O país portenho preparava-se para a ascensão de Juan Domingo Perón à presidência. Porém, desde o segundo governo de Hipólito Yrogoyen em 1928, mudanças políticas, econômicas e sociais pretendiam reestruturar a administração pública, modificar o regime de ensino e conseqüentemente restabelecer a autoridade do poder estatal. Comenta Jorge Romero Brest:

La primera de esas revoluciones, en 1930, marcó un claro retroceso sea por la restauración del conservadorismo con tinte nacionalista y algún ribete de fascismo, sea por el debilitamiento del impulso económico que había cimentado nuestra riqueza, sea por el encerramiento que ya habían impuesto los radicales y aumentó la alianza militar-conservadora. El ascenso en el plano artístico que desde 1924 significara la acción del grupo Martín Fierro y la Asociación Amigos del Arte, se detuvo tan drástica como repentinamente.

La segunda revolución, en 1943, fue más compleja, porque si bien tuvo caracteres similares a la anterior, cambió su rumbo cuando Perón la condujo, hasta llegar a la presidencia en 1946, adoptando métodos dictatoriales: autosuficiencia neurótica, libertad de opinión suprimida, medidas demagógicas constantes, debacle financiera, afección a los antecedentes hispanocriollos en el orden cultural.168

A América Latina foi amplamente influenciada pelos debates instaurados pelas vanguardas européias, compartilhando de seu desprezo pelo antigo e de seu desejo de originar uma arte conectada com o seu próprio tempo. De forma análoga ao que aconteceu na Europa na década de 1910, os anos 20 na América Latina compreenderam o surgimento de uma série de manifestos, revistas e polêmicas locais, todos gerados pela importação direta ou indireta de modelos oriundos dos constantes movimentos de vanguarda europeus. Datam desse período, as publicações tanto no Brasil quanto na Argentina das revistas: Proa, Martín Fierro,

Klaxon e Revista de Antropofagia e dos manifestos Ultraísta, Manifesto de Martín Fierro, Manifesto da Poesia Pau-Brasil e Manifesto Antropófago.

Consoante Schwartz, Brasil e Argentina apresentam pontos de contato entre os movimentos de vanguarda do período citado no que se refere à tentativa de fixação de uma retórica antipassadista que busca eliminar as convenções vigentes:

Produz-se na linguagem dessas novas poéticas um verdadeiro processo de carnavalização, com a subversão dos gêneros, com formas coloquiais da linguagem

em convivência com o poético tradicional, ao mesmo tempo em que se introduz a manifestação do cotidiano na arte.169

O diferencial brasileiro estaria na tentativa de criação e consolidação de uma arte voltada para a realidade nacional. Nesse contexto, a atuação de Oswald de Andrade manifestou caráter ímpar, ao fazer de seu conceito de antropofagia uma densa reflexão sobre o aspecto original da cultura brasileira. A grande contribuição da fórmula oswaldiana, ante as diversas iniciativas na América Latina, estava na assimilação do estrangeiro para a exportação do nacional, ou seja, ao valorizar a dimensão primitiva da cultura brasileira, Oswald conseguiu coaduná-la com a feição moderna e contemporânea dos ismos europeus. A Paris dos anos de 1920, freqüentada por Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, era notadamente marcada por um profundo interesse pelo canibalismo, pelo selvagem e pelo primitivo. Tal atmosfera influenciaria o Manifesto Antropófago publicado por Oswald, no qual ele retomou algumas idéias contidas no Manifesto Pau-Brasil, de 1924. Ao delinear o conceito de antropofagia, o escritor pretendia se servir da herança cultural européia não mais como modelo, rejeitando as fórmulas preestabelecidas de composição poética e abdicando de todo o eruditismo. Já em 1924, tais ideais apresentavam-se nítidos, segundo Oswald:

A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos. […] Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres. […] A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna. […] Apenas brasileiros de nossa época.170

Entretanto, se por um lado o Manifesto Pau-Brasil buscava um retorno aos primórdios de uma originalidade nativa, por outro o Manifesto Antropófago propunha a absorção do inimigo para ressignificá-lo, transformá-lo em totem. O passado esquecido, a rica herança cultural brasileira seria extremamente profícua para o panorama artístico nacional se interpretada e valorizada pelos artistas pátrios, ou seja, “contra a realidade social, vestida e

169 SCHWARTZ, Jorge. Vanguarda e cosmopolitismo na década de 20: Oliverio Girondo e Oswald de

Andrade. São Paulo: Perspectiva, 1983. p. 45.

opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciária do matriarcado de Pindorama”.171

Assim, mais que uma especulação estética, pretendia-se, ainda que de forma idealizada, a concretização de um projeto mais amplo: a transformação social. Nesse panorama, o homem brasileiro agiria com vigor, dotado de uma nova concepção de mundo, em que, conforme Oswald, o bom selvagem, “celebrando o canibal tupi por seu poder transformador, por sua capacidade de criar a instabilidade, o conflito, em vez de um resultado, uma conclusão ou síntese.” 172

Todos os esforços empreendidos por Oswald não foram suficientes para que a sua antropofagia fosse vitoriosa mediante as outras propostas modernistas de interpretação da especificidade cultural brasileira, tanto em seu princípio quanto nos anos posteriores marcados por um engajamento político, religioso e social no campo artístico. Mas, no que tange a década de 1960 no Brasil, a antropofagia deixou uma importante contribuição para o debate artístico nacional, ao servir de base para o questionamento do paradigma nacionalista vigente pelos tropicalistas. Esses consideravam que a idéia de uma produção originalmente nacional era desprovida de sentido.

Desde a década de 1950, o país já adotara uma atitude universalizante no campo das artes, esta era caracterizada por uma clara adesão a uma linguagem abstrata de base construtiva e raiz européia e para alguns autores, como Ronaldo Brito, por exemplo, seriam os anos 50 e não os anos 20 o grande marco da entrada do Brasil em um contexto de modernidade nas artes visuais.