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Mapa 13 – Estados africanos modernos da costa oeste

2.3 A Pretagogia no Curió

2.3.3 Marcadores das Africanidades e formação docente afrorreferenciada

Os Marcadores das Africanidade (MA) (quadro 1) estão evidenciados em expressões das/dos africanas/os e afrodescendentes que marcam significativamente a vida da nacionalidade brasileira: marcas da nossa conexão histórico-cultural com a África presente na produção material e simbólica do Brasil, “presentes no processo civilizatório que afetam negros e não negros” (PETIT ; ALVES, 2015, p. 138-139).

Em meio às constelações conceituais que formam o universo teórico decolonial produzidos pelas pesquisadoras/es do NACE/UFC os MA formam um conceitual estrela guia. Com ele me guiei tanto na busca pela escrita-coautoral da minha história quanto para a produção de dados na criação, na (re) significação e na apropriação de conceitos operatórios e filosóficos em que aportei minha pesquisa e as minhas práticas docentes. A identificação dos meus MA mais evidentes inspirou-me hibridizar conceitos filosóficos-operatórios, como é o caso, do Parangadinkra. Os Parangadinkra são livros-

dobraduras cujo conteúdo é composto pelo conjunto de criações didáticas resultantes das interações estéticas, filosóficas afrorreferenciadas em um ou mais MA. Ao mesmo tempo, os Parangadinkra são formas artísticas autônomas que permitem a uma pessoa ou a um grupo falar de si, seu melhor detalhamento é dado no capítulo 5.

Os 30 MA podem servir como guias referencias para a escrita das nossas experiências de vida e formação (JOSSO, 2010) e, consequentemente, para a identificação de marcas das Africanidades no cotidiano das comunidades em que se movem nossas pessoas. Para minha psiquê docente a identificação dos meus MA na minha trajetória formativa ampliou, além do meu autoconhecimento e da minha capacidade de autocuidado, a minha capacidade de identificação com os conhecimentos locais afrorreferenciados. Conhecimentos ora silenciados, ora escandalosamente evidenciados entre as pessoas das comunidades de maioria afrodescendentes (CUNHA, 2007). Como devolutiva às reflexões feitas, a partir das interações pretagógicas, pelos participantes do 1º Encontro Pedagógico Afrorreferenciado da EMPTFP, a professora Kellynea Farias Alves compartilhou ideias e sentimentos que traduzem a relevância de conceitos como o de Marcadores das Africanidades para o reconhecimento do nosso pertencimento etnicorracial Afro:

[...] Nós estamos falando... a partir de três pontos de partida... Nós estamos falando de uma... da realidade desigual... nós estamos falando de reconhecer esta ancestralidade, reconhecer o pertencimento, e não apenas uma questão que é lógica... nós estamos falando também de raízes... de ancestralidade e de memórias... Estas três dimensões que vocês trouxeram e o conjunto de todas as outras, eu consigo identificar claramente no conceito que nós estamos desenvolvendo que são os Marcadores das Africanidades... e é neste lugar dessas Africanidades, como algo que está tão entrelaçado no nosso cotidiano que as Africanidades compõem o que a gente chama das Brasilidades. (ALVES, fonte oral, 2018).

O que nos leva a pensar os MA como instrumentos conceituais que, ao favorecerem a identificação dos laços de pertencimento afro ancestrais, fortalecem a nossa capacidade de autoconhecimento ao nos dar chaves para o entendimento das dimensões psicossociais da pessoa brasileira, pois os MA, como conceito em construção, permitem identificar os elementos que compõe,

[...] os nossos valores materiais e imateriais, a nossa relação com a família, com o sagrado, com o alimento, com a forma de tratar os mais velhos. Nós estamos trazendo várias dimensões que estão muito além do pensar nossa ascendência direta [...] (Idem).

como protagonistas e assim refletir-agir, ao fato de que,

[...] a gente tem um país extremamente complexo e que historicamente tem tentado negar nossa história afro indígena quando basicamente somos maioria na população, mas não somos maioria nos espaços de poder, não somos maioria nos espaços de participação... não somos maioria em direitos... e aí ... falar das Africanidades a partir daí... (ALVES, fonte oral, 2018).

Fonte: PETIT; ALVES, 2015, pp. 138-139. 1– História do meu nome;

2 – Histórias da minha linhagem, inclusive agregados;

3 – Mitos/lendas/ o ato de contar/valorização da contação; 4 – Histórias do meu lugar de

pertencimento/comunidade/Territorialid ades e desterritorialidades negras (movimentos de deslocamentos, geográficos, corporais e simbólicos); 5 – Sabores da minha infância – pratos, modos de comer e o valor da comida; 6 – Pessoas negras referências da minha família e da minha comunidade e pessoas negras referências do mundo, significativas para mim;

7 – Simbologias da Circularidade: tempos cíclicos e da natureza;

8 – Práticas e valores de Iniciação/Ritos de transmissão e ensino;

9 – Mestras e Mestres negras/negros (da cultura negra);

10 – Escrituras Negras; 11 – Curas/Práticas de saúde;

12 – Cheiros “negros” significativos; 13 – Festas afro da minha infância e festas

de hoje;

14–Lugares míticos e territórios

afromarcados (investidos pela negritude); 15 – Músicas/cantos/toques/Ritmos/estilos afro.

16 – Danças afro; 17 – Cabelo afro

(encaracolado/cacheado/crespo) - práticas corporais de afirmação e negação dos traços negros diacríticos;

18 – Representações da África/relações com a África;

19 – Negritude – Força e Resistência; 20 – Artesanatos;

21 – Outras tecnologias

22 – Valores de família/filosofias; 23 – Racismos (perpetrados e sofridos); 24 – Formas de conviver/laços de solidariedade/relações de comunidade; 25 – Relação com a natureza;

26 – Religiosidades Pretas;

27 – Relação com as mais velhas e os mais velhos;

28 – Vocabulário/formas de falar; 29 – Relação com o chão (vivências e simbologias);

330 – Outras Práticas corporais (brincadeiras tradicionais/jogos e outros).

2. 4 A Pessoa em Famílias Comunidade Afro

Na busca dos encruzilhamentos de saberes e valores que constituem a minha pessoa, que é coletiva, descobri na minha família uma origem pluriétnica cuja predominância da ancestralidade africana e indígena evidencia-se em nossos MA e na forma de pessoalidade cultuada em nossa Família Comunidade Ventura (FCV). Evidências comuns à outras famílias comunidade afro-brasileiras. Os laços de solidariedade afro, as formas de relacionamento com o mundo material e imaterial, em fim, os cosmos rurais baiano-gurutubanos foram transladados para a cidade de Montes Claros compondo nesta outros universos rurbanos. Montes Claros e todo o norte de Minas Gerais passaram por num intenso movimento populacional impulsionado pela construção do trecho da linha férrea da Central do Brasil ligando Belo Horizonte até Salvador (mapa 5). Foram centenas de migrantes que reconfiguraram as populações destas regiões, e todos, lugares e pessoas foram transformados indelevelmente e, Dorlinda e Waldemar Ventura estavam entre eles. Na figura 3, meu pai, com guarda-chuva-bengala, solidariza- se com a família gurutubana do Seu M. em preparativo para velório na antiga rua Bonfim, no bairro Morrinhos, em Montes Claros da década de 1960. Ambos, meu pai e Seu Milo, vieram da Bahia e floresceram família em Tamanduá. À ausência de recursos financeiros as famílias das zonas rurais contavam com a ajuda dos parentes da cidade para buscar tratamento de saúde ou ajuda para a irremediável morte do corpo. Às pessoas pobres, construtoras das Minhas Gerais, restavam-lhes na hora da morte o aconchego uns dos outros; ser pessoas não era o que lhes restavam, era o que lhes sustentavam.

Fonte: Acervo Família Comunidade Ventura (FCV) (Década 1970). Figura 3 – Waldemar Ventura, à esquerda, em solidariedade à amigos do bairro Morrinhos – Montes Claros

A noção de parente nas formas de convivência dos baianos-gurutubanos estava implicada com uma forma coletiva de perceberem-se uns aos outros. As falas registradas, documentos escritos e iconografia levantadas no decorrer da minha pesquisa apontam para sentidos de pessoa e comunidade irmanadas com cosmos percepções de povos africanos tradicionais.

Kwame Gyekye afirma que na pessoa, em cosmos percepções afro como a dos povos Akan, está implícito um “julgamento”, uma “suposição” de que “certas normas básicas e ideais” como “generosidade, bondade, compaixão, benevolência, respeito e preocupação com os outros” devem ser incluídas nos comportamentos de uma pessoa para que esta seja considerada como tal (GYEKYE, 2002, p.11). E mais,

Em culturas Akan, então, muito se espera de uma pessoa em termos de exposição da virtude moral. A busca ou a prática da virtude moral é mantida como intrínseca à concepção de uma pessoa. A posição aqui pode, portanto, ser esquematizada como: para qualquer p, p, se é uma pessoa, então p deve exibir em sua/sua conduta às normas e ideais de pessoalidade. Assim, quando uma pessoa deixa de expor as virtudes morais esperados em sua/sua conduta, ele/ela é dito por não ser uma pessoa (ōnye ‘nipa).

Então, que condutas, normas expressam a virtude ética de ser uma pessoa? Respostas podem ser dadas segundo o lugar de fala de quem a responde. Para Ahene- Affoh (1976, p. 51 apud GYEKYE, 2002, p. 11) todo aquele ser vivo que nasce biologicamente humano tem o direito de ser uma pessoa e “’uma pessoa’, normativamente, significa, ‘ele tem bom caráter’, ’ele é pacífico, não problemático', 'ele é tipo', ele tem respeito pelos outros’, ‘ele é humilde’”. Na noção de pessoa afro que referencia a vida cotidiana nas tradições malianas Fula e Bambara, segundo Hampaté Bâ (1981, p. 01), “há primeiro maa: pessoa receptáculo, e maaya: diversos aspectos de maa contidos na maa receptáculo”. De forma que,

[...] A expressão de língua bambara “maa ka maaya ka ca a yere kono” significa: As pessoas da pessoa são múltiplas na pessoa. A mesma ideia é encontrada entre os Fula. [...] De imediato, podemos ver, então, que se trata de uma noção muito complexa, que comporta uma multiplicidade interior, de planos de existência diferentes ou sobrepostos, e uma dinâmica constante […] O maa pode ser considerado como o receptáculo visível e palpável que serve de invólucro e suporte a outros aspectos, mais sutis, da pessoa humana. […] Este ser é, ao mesmo tempo, simples e múltiplo. Ele comporta elementos físicos, psíquicos e espirituais. Aquilo que se mostra mais fácil de compreender é a existência física. Ela vai desde a concepção da criança, lasiri, à sua mudança de lugar, somayelema - dito de outro modo, sua morte. (Idem).

E ainda, que a “existência física que inicia com a concepção é precedida de uma re-existência cósmica [...] num reino de amor e de harmonia, chamado benke-so” (BÂ, 1981, p. 01).

Hampaté Bâ (Idem) explica que,

[...] Benke se tornou a palavra que serve para designar o tio materno. Com efeito, o tio simboliza a força masculina presente na força maternal, que é feminina. Isto em virtude de uma lei tradicional que deseja que o masculino e o feminino sejam inseparáveis. Eles se encontram ao mesmo tempo na mulher e no homem. Desse modo, a tia paterna é considerada como a imagem da força feminina que assenta presente na força paternal masculina.

“Não será permitido supor que o papel sagrado e muito preponderante atribuído ao tio na vida da criança, e toda a lei matriarcal, remonta sua origem a esta concepção?” (Ibid, pp. 1-2).

É uma pergunta cuja resposta, por certo, será inconclusiva, mas a noção de pessoa que está implicada nesta pergunta provoca, em mim, reflexões sobre as formas como nossas famílias afro-brasileiras nos pessoalizam e as suas repercussões (desejáveis ou não) nas relações professores – estudantes.

Esta noção de pessoa africana permite supor a origem, e talvez desvendar, o tão encantador sentimento que despertam tios e tias nas crianças afro-brasileiras. Durante alguns anos das suas vidas estudantis meninas e meninos parecem nos referenciar como as/os próprias/os tias e tios de suas famílias. A resposta para a pergunta do parágrafo anterior pode não ser conclusiva. Certa é a ressignificação dos meus sentimentos quanto a palavra TIO na sala de aula, foi bom para alma voltar a gostar de ser o Tio Wagner, mágico e encantado após refletir sobre tais questões a partir dos referenciais Afro para pessoa e comunidade.

As cosmospercepções de pessoa e de famílias comunidade afro, como expressas nesta seção, nos inspira filosoficamente a liberar a nossa pessoalidade do controle, ou da regulação sistêmica do nosso ser / estar / fazer no mundo, via artefatos psicossociais como o individualismo, o consumismo e a monetarização da vida.

A essência-existência afro por princípio deve agregar como valores a generosidade, o comunitarismo, a religiosidade, a intergeracionalidade, a alacridade, a criatividade e muita engenhosidade estético-intelectual. Uma essência-existência que nos tornam resilientes aos terrores coletivos que historicamente, ainda ameaçam a existência das populações não-brancas no Brasil. Esses valores elementares de uma essência-

existência afro firmam-se em um valor primordial: o respeito por toda pessoa, e a preservação primordial da senhoridade e da infância, pois são duas extremidades de um fio condutor da vida de uma pessoa e de uma civilização. Fio que sustenta a teia de relações humanas em famílias-comunidade, que nos fazem cada uma pessoa um ponto de firmamento. Se rompida a nossa pessoalidade dada nesta rede comunitária, sem pertencimento, nos dissolvemos, nos extinguimos como forma de ser-estar no mundo, nas individualidades e na coletividade.