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4 FUNDAMENTOS DA CONFIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA

4.4 Marcas do personalismo na sociedade brasileira

Como reflexo do nosso comportamento social, percebe-se uma despreocupação do interesse coletivo, pela ausência do espírito público, de espírito do bem-comum, de solidariedade comunal e coletiva e pela carência de instituições corporativas em prol do interesse do “lugar”, da “vila”, da “cidade” (HOLANDA, 1995), dando espaço para o surgimento de relações específica entre o homem e o poder: o patrimonialismo. Ele se atrelava a uma ordem burocrática que superpunha o soberano ao cidadão, numa relação semelhante à existente entre o chefe e o funcionário.

Segundo Holanda (1995), para os ibéricos, o índice do valor de um homem pode ser inferido pela extensão em que não dependa dos demais. Desse sentimento, surgem o

personalismo e seus reflexos, como a valorização extremada da pessoa e de sua autonomia em relação aos seus semelhantes; nessa sociedade,

a cultura da personalidade associava-se a certa frouxidão da estrutura social, a uma falta de hierarquia organizada, em que os privilégios hereditários jamais tiveram influência muito decisiva, importando menos o nome herdado que o prestígio social pessoal, relacionado com a abundância de bens de fortuna, os altos feitos e as altas virtudes (HOLANDA, 1995, p.9),

Da concepção personalista de autonomia da pessoa resulta, segundo Holanda (1995), boa parte da fragilidade das formas de associação são baseadas em solidariedades livremente pactuadas. A própria carência de um moral do trabalho no mundo ibérico reforça a pouca capacidade de organização social.

De fato, onde impera uma moral do trabalho, o esforço humilde, anônimo e

desinteressado tende a produzir solidariedade de interesses, a organização racional e a coesão entre os homens. Entre nós a solidariedade não emerge da

compatibilização de interesses; surge mais freqüentemente de vínculos sentimentais – solidariedade entre parentes ou amigos, círculos necessariamente limitados e particularistas (HOLANDA, 1995, p. 240).

Nesse tipo de sociedade, as transações comerciais são realizadas não num mercado anônimo, mas entre pessoas que estabelecem vínculos de amizade, afeto, confiança, lealdade. “Assim, raramente se tem podido chegar, na esfera dos negócios, a uma adequada

racionalização; o freguês ou cliente há de assumir de preferência a posição do amigo (HOLANDA, 1995, p. 134).

Para o autor, o que principalmente os distingue seria uma certa incapacidade, para ele congênita, de fazer prevalecer qualquer forma de ordenação impessoal e mecânica sobre as relações de caráter orgânico e comunal, como o são as que se fundam em parentesco, na vizinhança e na amizade.

Ao exaltar o mérito pessoal – riqueza, feitos ou virtudes – diante dos privilégios herdados, o personalismo distingue-se obviamente do universo de pensamento inerente ao feudalismo. As tendências anárquicas inerentes à exaltação da personalidade e às dificuldades de gestação de formas livremente pactuadas de organização social convertem os governos no único princípio organizador das sociedades ibéricas: “na terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida” (HOLANDA, 1995, p. 4). Nesse ambiente, a vontade de mandar e de cumprir ordens lhes são igualmente peculiares. Para ele, a renúncia à personalidade por meio da cega obediência tem sido a única alternativa para os que não concebem disciplina baseada nos vínculos

consentidos, nascida, em geral, da tarefa executada com senso de dever.

Na sociedade brasileira, o personalismo – ou a oligarquia, que é o prolongamento do personalismo no espaço e tempo – conseguiu abolir as resistências liberais, assegurando-se, por essa forma, uma estabilidade política aparente, mas que de outro modo não seria possível. Como salienta Holanda (1995), em quase todas as épocas da história portuguesa, uma carta de bacharel valia tanto como uma carta de recomendação para os altos cargos políticos. O título de bacharel ascende a pessoa ao poder, projetando ainda mais o culto da personalidade.

Para Leal (1997), a hipertrofia do papel político-eleitoral dos proprietários rurais – o chamado coronelismo – seria a decorrência lógica da pujança econômica e social do

latifúndio, que se sobrepunha ao próprio poder público. Segundo o autor, o coronelismo se baseava-se numa complexa teia de favores e reciprocidades, em que o coronel passa a ser, então, o elo entre o poder estadual e os eleitores, os quais se situavam de forma esmagadora no campo e se achavam-se, portanto, na zona de influência dos governos estaduais, tendo o seu poder sustentado pelo uso privado do poder público, inclusive a polícia, sendo essa um braço das forças políticas. Segundo Leal (1997), o coronel é, acima de tudo, um compadre. Nesse sistema, o poder é exercido de homem para homem, não de forma racional, mas

carismática e tradicional; o eleitor vota no candidato do coronel antes por dever sagrado do que por temor.

Porém, os coronéis, ao longo dos anos, têm visto seus poderes debilitarem-se em função dos aperfeiçoamentos na legislação eleitoral, do peso cada vez maior da população urbana em relação à rural, da constituição do nosso mecanismo eleitoral-representativo, da politização do país e do fortalecimento gradativo da sociedade civil.

Assim como as fases anteriores, a exploração de ouro no século XVII e XVIII também influenciou de forma significativa a formação do Brasil, e em diversos aspectos, dando ao patrimonialismo novos aspectos. Nesse novo contexto produtivo, o trabalhador livre e o pequeno comerciante começaram a ter espaço. Aqui, a iniciativa individual e o uso de

pequenas terras contrapõem-se ao sistema produtivo anterior, exigindo a existência de núcleos de povoação para dar sustentação ao trabalho de mineração, ajudando, inclusive, a expandir os limites do país para o interior, como é o caso de Minas Gerais e Goiás.

A produção do açúcar, a partir de 1850, gradativamente vai sendo superada pela produção do café, influenciando a vida econômica, social e política do país. Pouco interesse passa a ser dado à produção de gêneros de primeira necessidade para a subsistência das populações.

Nessa época, uma nova força de produção marca o país: a vinda dos colonos europeus livres para o trabalho na lavoura. Procura-se melhorar os sistemas viários para o escoamento dos produtos exportáveis, agora não mais distribuídos somente na região costeira.

Até meados do século XIX, a cidade é simplesmente um apêndice rural, um puro reflexo do campo, uma vez que a colonização não se orientara no sentido de construir uma base econômica sólida e orgânica. No entanto, essa nova dinâmica leva a transferência da família dos grandes proprietários para as cidades, “ (...) montando belas mansões urbanas” (SANTIAGO, 2001, p. 37).

Com a urbanização, essa gente é transportada para as cidades, carregando consigo a mentalidade, os preconceitos e, tanto quanto possível, o teor de vida, que tinha sido atributo específico de sua primitiva condição. “A mentalidade da casa-grande invadiu assim as cidades e conquistou todas as profissões até as mais humildes” (HOLANDA, 1995, p. 87).

Percebe-se, nas palavras de Holanda, uma redução da influência das raízes ibéricas de nossa cultura ao longo do tempo, pela inauguração de um estilo novo. Com a concentração da população nas cidades, os sistemas tradicionais tendem a ceder espaço para os abstratos como balizadores dos relacionamentos entre as pessoas e organizações.