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3. EDUCAÇÃO INFANTIL POPULAR?

3.2. CRIANÇAS COMO PEQUENOS SUJEITOS – culturas infantis em movimento

3.2.1. A Marcha das Crianças

Em julho do ano de 2012 a justiça concedeu liminar de reintegração de posse para a área onde se encontra o Assentamento Milton Santos, pertencente ao MST, no município de Americana, interior do estado de São Paulo. Formado em dezembro de 2005, o assentamento é composto por sessenta e oito famílias registradas, agregando um total de trezentas pessoas. O assentamento, legalizado pelo INCRA, é responsável pela produção e distribuição de alimentos orgânicos para entidades e escolas públicas da região metropolitana de Campinas, e atende mais de 12 mil famílias quinzenalmente.

A área desapropriada em 1976 pela ditadura militar era de propriedade da “família Abdalla” que tinha dívidas com a União. Nos documentos da desapropriação ficou registrada uma cláusula que possibilitava a “família Abdalla” requerer parte da terra se o valor dos bens confiscados fossem maior que o valor da dívida. Essa cláusula foi acionada e iniciou-se o processo de reintegração de posse.

A partir da ordem de reintegração de posse, as famílias do Assentamento Milton Santos começaram a se mobilizar para resistir75 na área legalizada, onde já moravam há sete anos. Em meio ao

processo de resistência, as famílias do pré-assentamento Elizabeth Teixeira também se mobilizaram para apoiar e ajudar na luta das famílias de Americana. Não se falava em outra coisa dentro da comunidade e as notícias chegaram até as crianças que passaram a comentar sobre o caso nas atividades da Ciranda Infantil. Educadoras e educadores acharam que era um ótimo tema para trabalhar junto às crianças, entendendo que a “condição para a formação de contestadores ou de lutadores

sociais é a sensibilização social, o que os sem-terra podem cultivar desde crianças.” (CALDART,

75 As famílias do Assentamento Milton Santos resistiram durante sete meses num processo de luta intenso em que não havia garantia de permanência na área por parte do poder público. Diante disso, em dezembro de 2012 as famílias mobilizadas ocuparam a sede estadual do INCRA na cidade de São Paulo onde permaneceram até fins de janeiro de 2013, conseguindo barrar a reintegração de posse. No INCRA, o UP organizou uma Ciranda Infantil junto com outros apoiadores durante a ocupação. Para histórico do assentamento e notícias da resistência das famílias ver:

http://www.brasildefato.com.br/node/11549; http://passapalavra.info/2014/05/95285;

2012a, p. 342).

Em uma primeira atividade as educadoras e educadores planejaram uma conversa e debate sobre o processo pelo qual as famílias estavam passando. Aproveitando a campanha de solidariedade ao povo palestino feito pelo MST junto às crianças Sem Terrinha naquele ano de 201276, a atividade foi

iniciada com uma exposição de fotos e desenhos77 das crianças palestinas e a questão da luta pelo

território palestino. Nessa época usávamos uma mala antiga de viagem como instrumento de comunicação entre as crianças do pré-assentamento e crianças de outros lugares do mundo. Contamos às crianças que a mala havia viajado desde a Palestina onde as crianças haviam colocado seus desenhos e algumas fotos para mostrar a realidade que vivem.

As crianças ficaram mexidas com algumas imagens e desenhos. Entre as fotos haviam algumas em que muitas crianças apareciam empinando pipas e ficaram curiosas para saber por que elas estavam fazendo aquilo. As educadoras e educadores contaram que as crianças haviam se mobilizado para soltar a maior quantidade de pipas que pudessem em manifestação pela paz e pelo fim do massacre ao povo palestino na faixa de Gaza78.

As crianças ficaram bastante interessadas nas fotos, mas principalmente nos desenhos fortes sobre a guerra em meio a qual as crianças palestinas vivem. Se sensibilizaram e acharam muito importante a manifestação das crianças. No decorrer da conversa, observando alguns desenhos em que apareciam policiais atirando mísseis nas casas e nas pessoas, elas lembraram do despejo que elas próprias vivenciaram no início do processo de ocupação da área do pré-assentamento Elizabeth Teixeira. Assim como começaram a comentar sobre a luta de resistência ao despejo das famílias do assentamento Milton Santos, na cidade vizinha.

A realidade em que vivem as crianças do pré-assentamento Elizabeth Teixeira não é diferente. Resistem na área ocupada que, mesmo em processo de legalização, podem a qualquer momento também sofrer um despejo. Por essa proximidade com a sua realidade, as crianças ficaram sensibilizadas, demonstrando sentimentos de indignação e inconformidade com a situação das crianças palestinas e da possibilidade de despejo no assentamento Milton Santos.

(…) um dos primeiros valores que se cultiva na situação de acampamento é o da solidariedade, exatamente o valor que fundamenta a ética comunitária. Solidarizar-se com o outro não é, nessa 76 Revista Sem Terrinha nº 5. Ver em: http://issuu.com/semterrinha/docs/pdf_rvst_sem_marcas_de_corte.

77 Disponível em: http://www.carosamigos.com.br/index.php/cultura/noticias/1816-museu-nos-eua-cancela-mostra-com- desenhos-de-criancas-palestinas

78 Notícias das manifestações das crianças palestinas, ver em: http://www.pbagora.com.br/conteudo.php? id=20110628104043&cat=mundo&keys=criancas-gaza-pedem-israelenses-paz-fim-bloqueio-pipas;

http://fotosdepipa.blogspot.com.br/2012/11/manifestacao-pipas-na-palestina.html;

circunstância, uma intenção, mas uma necessidade prática: (…) e o principal argumento da

necessidade talvez seja o de que a vitória virá para todos, ou não virá para ninguém. Ou seja, a

condição gera a necessidade de aprender a ser solidário e a olhar para a realidade desde a ótica do coletivo e não de cada indivíduo ou cada família isoladamente. (…) Mas um aprendizado que, quando se consolida, não deixa de se vincular com um profundo sentimento de indignação diante do contraste gritante que existe entre esta lógica de uma vida social baseada na solidariedade e uma outra baseada na competição e no individualismo desenfreados, exatamente os antivalores que sustentam uma sociedade que não se importa em produzir sem-terra, sem- teto, sem-emprego, sem-escola, sem-esperança... (CALDART, 2012a, p.182)

A questão do despejo das famílias do assentamento vizinho foi o tema da conversa que se alongou naquele momento. Lembrando da manifestação das crianças palestinas, as crianças Sem Terrinha do pré-assentamento Elizabeth Teixeira propuseram construir uma manifestação em solidariedade às crianças e famílias do Assentamento Milton Santos. Começaram então a elaborar o ato.

Logo de início queriam fazer um ato na estrada que passa ao lado do pré-assentamento. Pensaram em parar os carros colocando fogo nos pneus, o mesmo modo que os adultos faziam quando se organizam para manifestar sobre algum fato do pré-assentamento. As discussões foram seguindo e as crianças decidindo coletivamente que tipo de ato queria fazer.

Ao final, pensaram em caminhar pelas ruas do pré-assentamento com cartazes, cantando uma música e tocando tambores. Combinaram com as educadoras e educadores que estes trariam material para confeccionarem os cartazes e latas grandes vazias para baterem e fazer barulho durante a caminhada. Decidiram que queriam fazer a manifestação na atividade da Ciranda no final de semana seguinte. E, inspiradas pela manifestação das crianças palestinas, queriam divulgar o ato delas para mais pessoas se solidarizarem com a luta do Milton Santos. Planejaram toda a marcha e compuseram sozinhas a música/palavra de ordem que iam gritar durante a marcha.

A-a-a, Milton Santos vai ganhar! E-e-e-, família Abdalla vai perder! A-a-a, essa luta vai vingar!

I-i-i, Milton Santos vem aí!!! (Gravação do autor)79

Com tudo planejado a atividade da Ciranda Infantil da semana seguinte seria a realização da marcha das crianças em apoio à luta das famílias do Assentamento Milton Santos. Os materiais requisitados foram levados e iniciou-se a confecção dos cartazes e pintura das latas vazias para o batuque da marcha. Durante esse processo registramos em vídeo algumas conversas com as crianças e partes da marcha que fizeram. Como elas haviam planejado, posteriormente o vídeo80 foi editado e

79 Durante o dia da marcha das crianças fiz algumas filmagens próprias que utilizo aqui como registro de campo.

80 O vídeo “Manifestação de apoio ao assentamento Milton Santos, Sem Terrinhas do Elizabeth Teixeira” está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ciAZzr0DQvk&feature=youtu.be.

divulgado na internet.

- Bruna, o que você está fazendo?

- Escrevendo “Milton Santos vai ganhar e família Abdala vai perder”. - E porque você está escrevendo isso?

- Para ajudar lá...

- Para ajudar lá onde? No Milton Santos? - Aham!

- E o que está acontecendo lá no Milton Santos? - Despejo

- Porque é o despejo?

- Por causa da família Abdalla

- E o que a família Abdalla tem a ver com o Milton Santos?

- É porque a família Abdalla não pagava impostos e o governou pegou um pouco mais da terra que tinha que pegar, da terra deles. Agora eles querem a terra tudo de volta.

- E você acha que isso é certo?

- É tudo errado, por causa de que uma pessoa tem que ficar com um bocado de terra e as outras tem que ficar sem nada.

- E daí que vocês vão fazer aqui hoje? - Tipo um mutirão para ajudar lá. - E o que você está fazendo agora? - Fazendo cartaz pra gente andar. - E aquelas latas que o pessoal trouxe?

- Para batucar…fazer batuque (ACAMPAMENTO ELIZABETH TEIXEIRA, 2015) - E vai batucar aonde Rita?

- Nas ruas. - De onde?

- Daqui, para ajudar o Milton Santos – Bruna. - Aqui dos Sem Terra. - Rita (gravação do autor) - E o que as pessoas vão fazer depois do despejo Pedro?

- Eu não sei. Acho que as pessoas vão sair de lá, eles vão pra igreja. - E quem vai despejar eles?

- A polícia

- E você acha certo eles despejarem? - Não.

- E porque que não é? - Porque é....chato...

- É proibido fazer isso – diz Cirilo, ao lado. - É proibido Cirilo?

- É porque é proibido e eles não podem fazer isso – repete Pedro - E o que vamos fazer aqui hoje?

- Vamos mandar uma carta para eles. É por isso que estamos fazendo esses cartazes (Gravação do autor)

Terminada o processo de confecção dos cartazes e latas, saímos andando pelas ruas de terra do assentamento carregando as faixas com os dizeres: “Milton Santos vai ganhar”. Desde o barracão as crianças junto com as educadoras e educadores foram caminhando em marcha cantando a música que haviam composto na atividade passada e batendo bem forte nas suas latas. Queriam chamar a atenção das famílias assentadas e assentados do pré-assentamento Elizabeth Teixeira.

Como o sol estava muito forte e logo resolvemos entrar todos na kombi. Colamos os cartazes do lado de fora da kombi e saímos dirigindo por todo assentamento, cantando a música, gritando algumas palavras de ordem – “Reforma Agrária quando? Já!” e “Viva o Milton Santos! Viva!”.

(…) mas na verdade são episódios como este que nos permitem pensar em detalhes decisivos na conformação de um jeito de ser humano, o ser humano que sabe contestar. O sentimento de indignação contra as injustiças é condição para a postura de contestação social. E para indignar- se é preciso percebê-las como tal. Parafraseando Thompson: que as crianças sem-terra sintam

essas injustiças – e as sintam apaixonadamente – é, em si, um fato suficientemente importante para merecer nossa atenção. (CALDART, 2012a, p. 343) (grifos no original)

As crianças utilizaram do espaço da Ciranda Infantil para se solidarizarem com outras crianças e famílias do assentamento vizinho. Tiveram liberdade de criar coletivamente, à sua maneira, como queriam manifestar a injustiça que sentiam em relação àquela situação que elas próprias também já haviam vivenciado. Conversando, brincando, sendo crianças, organizaram política e esteticamente a marcha das crianças do pré-assentamento Elizabeth Teixeira. Tanto adulto, educadoras e educadores, como as crianças, souberam utilizar a Ciranda Infantil como espaço de produção das culturas infantis, colocando em movimento a cultura em que estão inseridas, reinterpretando-a produzindo as culturas infantis.