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4 MARGARIDAS SÃO NOTÍCIA: VALORES-NOTÍCIA, CONSTRUÇÕES E

4.2 II MARCHA DAS MARGARIDAS

Três anos se passaram e as trabalhadoras rurais promoveram a segunda edição da Marcha das Margaridas. Em 2003, as mulheres reuniram 40 mil trabalhadoras em Brasília (REVISTA DA MARCHA, 2008, p. 9). Elas entregaram ao governo federal uma pauta com 140 itens, cujas principais reivindicações tratavam de:

terra, água, salário mínimo, saúde e o fim da violência sexista e todas as formas de discriminação e violência no campo. Além de ações estruturadoras, capazes de superar a condição de fome, pobreza e violência, as Margaridas reivindicaram igualdade de direitos e oportunidades entre mulheres e homens. (MASCENA/SOF, 2003, p. 1)52.

Naquela edição, a Marcha obteve conquistas significativas – as principais foram II Plano Nacional de Reforma Agrária; Programa Nacional de Documentação da Mulher Trabalhadora Rural; titulação conjunta das terras distribuídas pela reforma agrária; declaração

de aptidão ao Pronaf em nome do casal; entre outras53. Apesar disso, a Marcha das

Margaridas e as questões políticas que a motivaram ou que se desdobraram a partir dela não tiveram espaço no Correio Braziliense.

4.2.1 Chuva piora trânsito

A mobilização feminista rural sequer foi pautada em 2003. Ao lado da chuva inesperada, em pleno mês de agosto, época de seca no cerrado, a Marcha foi apenas citada

como gancho54 na matéria Chuva piora trânsito como um dos agravantes do tráfego já ruim

na região central de Brasília no dia 26 de agosto de 2003.

Quais fatores podem ter influenciado essa falta de notícias sobre a Marcha das Margaridas? Não há apenas uma razão para explicar essa ausência, esse silenciamento. Orlandi (2007) diz que o silêncio é a garantia do movimento dos sentidos. Sempre se significa através do silêncio. “silenciar é produzir o não-sentido onde ele mostra que é uma ameaça” (ORLANDI, 2007, p. 14).

Por que o silenciamento? O jornal teria perdido o interesse sobre o acontecimento? A hipótese não se comprova, pois, em 2007, ano da terceira edição da marcha, a temática foi pautada pelo CB por três vezes, foi destaque de primeira página e também foi assunto da participação de leitores.

52

Sempre Viva Organização Feminista, publicação n º 45. Disponível em: <

http://www.sof.org.br/publica/pdf_ff/45.pdf> .

53 Informações disponíveis no hotsite da Marcha das Margaridas 2011, ancorado no site da Contag. Disponível

em: <http://www.contag.org.br/hotsites/margaridas/interna.php> . Acesso em: 08 de ago. de 2011.

54 Ganho quer dizer um assunto que sustenta outro. O verbete gancho, no Dicionário de Comunicação, traz a

seguinte definição: “Início de uma matéria jornalística, escrito de uma maneira a prender a atenção do leitor e a interessá-lo pelo restante do texto. O lide é a técnica de gancho mais usada na redação de notícias” (RABAÇA; BARBOSA, 2003, p. 341).

A ausência da manifestação noticiosa da Marcha das Margaridas 2003 no Correio Braziliense traz diversos questionamentos. É uma equação complexa. Já não era a primeira vez que ocorria o acontecimento, o valor-notícia da novidade já estava, pois, enfraquecido. O editor-chefe do Correio Braziliense não era mais o jornalista Ricardo Noblat, que empregava um estilo arrojado e acreditava, como afirmara no livro A arte de fazer um jornal diário, na morte do lead. O jornalista declara que fazia uma cobertura de temas ligados ao interesse público. Com a saída de Noblat do jornal, há um recuo na tendência de morte ao lead e na tentativa de fazer um jornalismo mais literário.

Além disso, há o contexto político. A manifestação de 2000 fazia clara oposição ao governo federal. Essa oposição tencionava a probabilidade de um conflito, outro critério substantivo de seleção dos acontecimentos enquanto notícia. Gitlin (1980 apud TRAQUINA, 2005, p. 198) destaca que as notícias priorizam o conflito e não o consenso. Essa observação do autor corrobora com a máxima do jornalismo em que más notícias são boas notícias.

Muitos movimentos sociais, em especial a Contag, haviam apoiado publicamente a candidatura de Lula à presidência. Como 2003 foi o primeiro ano de gestão, os movimentos tinham uma espécie de compromisso com o governo que ajudaram a eleger. Em 2002, foi a primeira vez que a organização decidiu formalmente se envolver em um processo eleitoral

apoiando abertamente um candidato (CONTAG, 2008)55. Por isso, a probabilidade de expor

eventuais fragilidades dessa relação era mínima. A eminência de um confronto estava reduzida. Isso também fragiliza outro potencial valor-notícia: o conflito, a controvérsia.

Do ponto de vista jornalístico, a I Marcha das Margaridas era uma espécie de suíte56

da Marcha Mundial de Mulheres, mobilização com repercussão internacional, pautada por jornais no ano 2000 no Dia Internacional das Mulheres. A Marcha das Margaridas ganhou naquele ano um valor- notícia de consonância que, como afirmam Galtung e Ruge (1965), “é a facilidade de inserir um ‘novo’ numa ‘velha’ ideia que corresponda ao que se espera que aconteça” (apud TRAQUINA, 2008, p. 70). De acordo com essa proposição conclui-se que é mais fácil que o jornal retome uma temática quando esta já foi tratada ou já é conhecida pela maioria do público-alvo. Não foi o caso da Marcha das Margaridas em 2003.

55 Jornal da Contag, nº 52, outubro/novembro 2008. Disponível em <

http://www.contag.org.br/imagens/f1474contagoutubro.pdf> . Acesso em 08 de agosto de 2011.

56 O verbete suíte, no Dicionário de comunicação, significa “continuação, sequencia. Ato ou efeito de desdobrar

uma notícia já publicada anteriormente pelo próprio veículo ou por outro órgão de imprensa. Técnica de dar continuidade à apuração de um fato (já noticiado) que continue sendo de interesse jornalístico, mediante acréscimo de novos elementos para a publicação de notícias atualizadas” (RABAÇA; BARBOSA, 2001, p. 699)

A única citação da Marcha como assunto noticioso não diz respeito ao evento propriamente, mas a um de seus desdobramentos e de suas implicações para a população, o trânsito. Traquina (2008, p. 80) pondera que a relevância

responde a preocupação de informar o público dos acontecimentos que são importantes porque têm um impacto na vida das pessoas. Este valor-notícia determina que a noticiabilidade tenha a ver com a capacidade de o acontecimento incidir ou ter impacto sobre as pessoas, sobre o país, sobre a nação.

A matéria Chuva piora trânsito, publicada no dia 27 de agosto de 2003, procura enquadrar a Marcha numa perspectiva urbana do deslocamento lento no trânsito.

As motivações do movimento não foram citadas na reportagem, que é a principal da página 25, do Caderno Cidades. O valor-notícia do inesperado, ou seja, uma chuva em agosto motiva a execução desta pauta. A Marcha das Margaridas é um elemento da matéria. Apenas uma frase, efetivamente, é destinada a falar do evento e o relaciona como agravante do congestionamento das avenidas da região central de Brasília:

Aliada à forte chuva, a Marcha das Margaridas, que reuniu mais de 30 mil mulheres agricultoras, comprometeu o trânsito próximo ao Eixo Monumental.

Aquela era a maior manifestação popular ocorrida em Brasília naquele ano e obteve repercussões nacionais. Contudo, não teve matéria autônoma e figurou apenas no caderno de Cidades. “Clima” é o chapéu da reportagem. Enquanto nas outras matérias do corpus de análise os chapéus são, por exemplo, “Margaridas”, “Poder Feminino”, “Manifestação”, reforçando efetivamente a manifestação.

Chuva piora trânsito, apesar de ser a matéria principal da página 25, não é assinada. Sinaliza com um “da redação”. Isso indica para um critério de seleção de notícias que está ligado à disponibilidade do jornal. Se não há jornalistas e fotógrafos disponíveis para cobrir o acontecimento, a possibilidade de torná-lo uma reportagem no veículo é reduzida, salvo os casos em que são publicadas matérias de agências de notícia. Contudo, não foi esse o caso do Correio Braziliense com a Macha das Margaridas daquele ano.

Outro valor-notícia que diz respeito à composição gráfica do jornal, ou seja, a capacidade de o acontecimento render boas imagens se aplica à Marcha das Margaridas. Uma vez que as cores verde e lilás transformam a paisagem da Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Chapéus, faixas, bonecos, balões ajudam a adornar a manifestação e incrementar seu apelo estético. Contudo, nem as fotografias sensibilizaram a publicação da pauta pelo jornal naquele ano. A foto, que ocupa três das quatro colunas da matéria, mostra brasilienses

improvisando para se proteger da chuva inesperada. Provavelmente, se a chuva não houvesse prejudicado o trânsito e causado acidentes, a Marcha das Margaridas sequer teria sido citada.