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A MARGEM DA MELANCOLIA

No documento Ruy Belo: uma poética da margem (páginas 30-62)

3.1. “Um não sei quê, que nasce não sei onde”

Atribui-se a Saturno tudo que ocupa uma posição à parte na sociedade. Luiz Costa Lima, Melancolia

“Quem quer que reflita sobre a melancolia”, adverte Luiz Costa Lima citando palavras de Jack Piegeaud, “sabe ou deve saber que não será original” (apud LIMA, 2017, p. 16). Uma observação que se multiplica quando se tem em mira a literatura e, mais especificamente, a lírica portuguesa. Trata-se de uma condição que impõe algumas restrições, tendo em vista a larga bibliografia que se já ocupou do tema, mas que não impossibilita, no entanto, revisitarmos alguns lugares já conquistados sobre o assunto através de estudos mais recentes. Além de levar a searas já visitadas, a melancolia é por vezes definida por ser dotada de alguma indefinição (seja na sua leitura histórico-social, seja na relação conflituosa que estabelece entre sujeito e objeto), fator que se reflete na variedade de manifestações, causas, consequências e tratamentos que já foram relacionados a ela. Vê-se, portanto, que tal estado esteve sempre envolvido por uma bruma de indefinição e ambiguidade. É esta qualidade de objeto instável que vamos perseguir ao longo do breve percurso histórico que traçaremos.

Na dupla condição de médico e literato por formação, Jean Starobinski realizou importantes estudos dedicados à melancolia. Dada sua formação, a abordagem que faz frequentemente associa os dois campos do saber. Em “História do tratamento da melancolia”, de 1960, perfaz a trajetória da condição melancólica ao longo dos séculos. Em Melancolia: literatura (2017), Luiz Costa Lima destaca, com a finalidade de tecer aproximações entre as afecções melancólicas e o discurso literário, a particularidade de Staronbinski distinguir já na Antiguidade uma dupla concepção de melancolia, localizando sua aparição não só na tradição médica hipocrática, mas dando relevo também à sua aparição na tradição homérica. Sabe-se que a primeira investigação sistemática do estado melancólico no Ocidente a que comumente

as investigações históricas se reportam é a do fisiólogo grego Hipócrates (460 a. C. – 370 a. C). Seu sistema dos quatro humores contribuiu para que a melancolia estivesse frequente e negativamente atrelada a uma causalidade fisiológica que conferia a esse estado afetivo a qualidade de doença do corpo. Starobinski, ao analisar um fragmento de Ilíada, “em vez de procurar um argumento médico-filosófico, ou seja, uma causalidade biológica”, diz o autor de Melancolia: literatura (2017), apoia-se em explicação “de cunho discursivo. Trata-se de consignar pelo signo verbal ou plástico o modo de estar do melancólico” (LIMA, 2017, p. 20).

O estudo de Costa Lima nos interessa primeiramente por investigar a melancolia conceitualmente no que tange à sua associação e manifestação na literatura e, depois, pôr em revista os principais momentos de teorização e historiografia da condição melancólica. É a partir dele que vamos indicar alguns pontos relevantes para nossa discussão da história da melancolia, à guisa de introdução. Como já foi dito acima, a primeira teorização a respeito do tema na Antiguidade a que a literatura produzida a respeito se volta é a fisiológica formulada por Hipócrates. Enquanto enfermidade do corpo, o humor melancólico tinha relação direta com a bílis negra e podia estar associado a problemas como hemorroidas, convulsão e até mesmo cegueira. Em tais exemplos, chama atenção o fato de “ser a melancolia compreendida em termos puramente fisiológicos” (LIMA, 2017, p. 18), na medicina de Hipócrates, “todas as causas são físicas” (STAROBINSKI, 2016, p. 32).

Ao tratar do tema na Idade Média, Costa Lima destaca que parte do quadro interpretativo da melancolia na Grécia Antiga permanece: “Mantida por Galeno a caracterização da melancolia como uma moléstia, com frequência de efeitos graves, a sua incidência era tida como decorrente da dominância ou da combustão de um dos humores, a bílis negra” (LIMA, 2017, p. 21). Nesse período, ela migra para o campo da moralidade, a Patrística e a Escolástica conferem a ela um sentido ético-religioso. Com o apoio de Giorgio Agamben, o autor destaca ainda o caráter ambíguo das afecções melancólicas - a esta altura sob o nome de acédia, a melancolia religiosa: “a acédia não é somente uma fuga de..., mas uma fuga para..., que se comunica com seu objeto pelo modo da negação e da carência” (apud LIMA, 2017, p. 25). Do período medieval, Starobinski vai destacar o tratamento laboral da melancolia religiosa. A cura para o taedium vitae consistia em “ocupar” e “cansar” o corpo: “O homem laborioso escapa de ser assediado pelo tédio, pela vertigem do tempo vazio; resiste às tentações de uma ociosidade culpada” (2016, p. 64).

É na Renascença de Marsilio Ficino (1433-1499) que ela ganha a componente astrológica. Sem excluir de todo a tradição hipocrática ainda influente, a astrologia acrescenta os valores de “concordância entre o micro e o macrocósmico” por analogia, a influência dos astros na vida terrestre. Tratava-se de um tipo de influência que afetava não só o corpo, mas também à alma: “os gestos do corpo, os saltos e as danças, decorrentes das concepções da imaginação feitas por nós mesmos; as concepções e os movimentos regulados da imaginação; os discursos coerentes da razão; as serenas contemplações do entendimento” (FICINO, 2012, p. 173 apud LIMA, 2017, p. 28). A melancolia entra, então, na tão referida órbita de Saturno. Astro de grandes proporções, ligado “aos que habitam ‘as alturas sublimes’”, enquanto Júpiter, nos informa o autor, é por aqueles que “escolhem uma vida comum” (LIMA, 2017, p. 29). A partir daí, incluindo nisso a importância dos Problemata XXX atribuído a Aristóteles (384 a. C – 322 a. C), “escrito em que, pela primeira vez, o temperamento melancólico é associado à personalidade de exceção” (LAGES, 2002 p. 31), intensifica-se, em contexto renascentista, a relação entre gênio e melancolia: “Atribui-se a Saturno tudo que ocupa uma posição à parte na sociedade; a Júpiter, o que antes favorece a vida comunitária. É significativo que a conjunção do legado platônico-aristotélico [...] com a herança hipocrática conduzisse tanto à negação da melancolia como síndrome de doença como a própria moderação da genialidade” (LIMA, 2002, p. 29).

O Renascimento, “idade de ouro da melancolia” para Starobinski (2016), engendra a “melancolia-temperamento”. Enquanto doença que poderia atingir o corpo e a alma, desde a Grécia antiga havia para ela duas possibilidades de tratamento, uma medicinal e outra filosófica. O duplo phármakon da doença era responsabilidade por vezes do médico, por vezes do filósofo. Sobre isso, convém acrescentar as palavras de Susana Kampff Lages para começarmos a articular o percurso histórico da melancolia às aproximações metafóricas que sustentam a estrutura do presente trabalho:

Ao longo de sua história, o tema da melancolia tende a ocupar regiões de fronteira: é tratado sobretudo em reflexões que levam em conta as doenças do corpo e da alma humana como intimamente interligadas e, muitas vezes, por um elo que é ele mesmo um mecanismo de tradução, isto é, a afecção do corpo sendo tradução de uma disposição anímica, e vice-versa. (2007, p. 32, grifos nossos).

São as pistas desta caracterização da melancolia como lugar “de fronteira” que nos interessa perseguir. Sua representação nas artes plásticas também torna visível essa associação. Nesse sentido, é paradigmática a representação pictórica de Edvard Munch na tela Melancolia

(1892)10. O pintor norueguês retrata-a segundo sua representação tradicional ao longo da

história da arte, cuja expressão mais celebre é o anjo alegórico de Dürer em Melencolia I (1514)11. Na melancolia de Munch, um sujeito, trajando negro, olha para baixo apoiando seu

rosto em uma das mãos. É de notar, porém, a paisagem de fundo que divide o quadro ao meio em dois espaços. Neste, e nas demais variações realizadas entre 1891 e 1894, essa paisagem é a orla de uma praia. Cabe destacar também, como nota Benjamin, “o mar como horizonte da ‘Melancolia’ de Dürer” (2013, p. 155). Sobre seu quadro, Munch escreve:

Cambaleio ao longo da beira do rochedo – quase tombo – mas me lanço em direção ao campo, às casas – aos montes – às pessoas e luto com esse vivo mundo da humanidade – porém estou destinado a retornar ao caminho sobre o rochedo. Estou certo de que vou cair da margem – mesmo assim eu me lanço de volta à vida e “a humanidade. Mas devo retornar à senda do rochedo. É a minha senda – até que eu tombe nas profundezas (apud FERREIRA, 2014, p. 172 grifos meus).

A melancolia é o lugar da margem. Ou, invertendo a formulação a nosso favor, a margem é, frequentemente, o lugar da melancolia. Essa paisagem afetiva ganha na representação de Munch, como vimos, uma composição marginal. Um modo, talvez, de concebê-la que se comunica com suas acepções mais primitivas. O sujeito melancólico oscila, alça limites, desvirtua a harmonia, o equilíbrio, valores fundamentais para se manter a saúde de acordo com medicina hipocrática.

Uma vez relacionada à atividade intelectual, a margem da melancolia pode estar desenhada no abandono das atividades, mesmo em presença dos objetos que clamam pelo retorno a elas, um eterno “estar entre”. O português Fernando Pinto do Amaral, citado agora como poeta, foi bastante sensível, como (e com) Dürer, a esse aspecto:

MELENCOLIA I

Ia no quinto ou sexto cigarro. A cabeça, deixava-a

encostada à mão esquerda, à maneira do anjo. Asas, nunca as tivera,

e em vez de um compasso uma simples futura ultra-fina já com pouca

tinta.

Impossível saber onde acaba o arco-íris, chegar ao fim da escada, àquele céu desde sempre perdido e mesmo assim tão preso ao seu olhar.

A seus pés jaz o mundo – instrumentos

10 Anexo 1. 11 Anexo 2.

para uso dos dias, tanta coisa inútil.

(1990, p. 70)

A “tinta inútil” – vocábulos aproximáveis devido ao isolamento dessas palavras nas estrofes marginais do texto – a que o poema se refere expressa o “desencanto do novo” característico da poesia portuguesa na década de noventa (MARTELO, 1999, p. 228), sentido melancolicamente por Fernando Pinto do Amaral no seu sintomático livro intitulado Acédia (1990). Algo que já se anunciava nas poéticas em ruínas da década de setenta de um Joaquim Manuel Magalhães, ou mesmo de Ruy Belo.

O que queremos ilustrar com essas representações plásticas e linguísticas é a configuração marginal que a melancolia recebe, e isso tanto no campo da abordagem histórico- conceitual (refletida no seu tratamento), quanto da sua expressão artística. Essa configuração, queremos sustentar, é também uma das formas imagéticas que Ruy Belo dá a sua melancolia, como veremos adiante.

Passemos agora a um estudo do caso português. O território, “ponta extrema da península Ibérica” (LOURENÇO, 2001, p. 37), a cultura, “predisposta para melancolias”. (LOURENÇO, 2001, p. 13). Eduardo Lourenço nos legou inúmeros estudos dedicados ao entendimento do imaginário coletivo de Portugal. Recorrendo a termos como “imagem” e “miragem”, os escritos do filósofo buscam, muitas vezes, espelhar de um povo a “imagem que ele tem de si mesmo” (LOURENÇO, 1999, p. 90), suas “ficções ativas”. O próprio autor, na condição de português que escreve sobre o coletivo a que pertence, nos fornece alguns modos de ver que podemos articular à discussão que fizemos até aqui. Portugal se enxerga e se representa, desde tempos imemoriais, na mitologia cultural, como uma espécie de exceção (ou mesmo de milagre). Até aí, não difere muito de mitos fundadores dos mais diferentes povos. Os portugueses, no entanto, alicerçaram tal pensamento na sua “frágil” condição geográfica de “tira estreita à beira do Atlântico”, que teve de resistir para se manter existente tendo por vizinho o extenso território de domínio espanhol (1999, p. 90). Uma fragilidade que se reveste de grandiosidade na fala de Vasco da Gama através da “tuba canora e belicosa” de Camões: “[...] cabeça / De Europa toda, o Reino Lusitano. ” (Lus, III, 20), mas que também testemunha uma experiência de dispersão e de fratura, de “vida em pedaços pelo mundo repartida” (CAMÕES, 1980, p. 203), como diria o poeta.

Soma-se ao que já foi dito o alheamento de um Portugal voltado para si mesmo, culturalmente periférico em relação à Europa, com apenas dois momentos mais marcantes de abertura cultural, situados na história das ideias no Renascimento e no Romantismo, como aponta Lourenço (1999, p. 110). Aí se encontram esboçados alguns traços da autoimagem de um povo à beira-mar. Não se pode deixar de notar, contudo, a tensão entre periferia e centro que aí há. Lembremos que, a título autoproclamado de povo cristão eleito, Portugal colocou-se no centro do mundo, ou melhor, “colocou no centro de sua bandeira a esfera armilar, em suma, a representação do Universo” (LOURENÇO, 1999, p. 10). Podemos dizer, então – embora isto denote, em alguma medida, um determinismo geográfico, ressaltamos, porém, que procuramos nos basear na imagem (ou miragem) que os lusitanos construíram de si mesmos –, que a paisagem geográfica e cultural de Portugal é, desde os primórdios, a margem, margem que dá para “fronteira sem fim que mais tarde fará parte do seu espaço real e mítico de povo descobridor” (1999, p. 90), aquela margem que é também paragem da melancolia.

Presente em toda uma tradição literária que permitirá a D. Duarte (1391- 1438) sua inscrição em um Leal Conselheiro12, por exemplo, texto em que o humor melancólico, mesmo

sendo ali combatido, alça o estatuto de nobreza pela pena da figura régia, a melancolia portuguesa tem relação com o que Eduardo Lourenço (2005) propõe em “Psicanálise Mítica do Destino Português”. Segundo Lourenço, Portugal tem inscrita em sua história a recorrência de momentos de instabilidade nacional que vão desde sua difícil constituição enquanto nação, sua orfandade de povo consumada com a morte de Dom Sebastião, no século XVI, passando depois por um século XIX em que ocorrem a independência do Brasil e o Ultimatum de 1890, chegando, por fim, ao longo período de ditatura salazarista. Em todo esse histórico de fragilidade, os portugueses, filhos de Saturno, modulam para si aquele “sentimento doloroso da existência” (LOURENÇO, 2001, p. 40) sob a forma de “imprecisa melancolia”13. Chronos, na

mitologia grega, Saturno - divindade identificada com o astro de rotação lenta – é, na tradição mitológica romana, deus do tempo. Atento a tal aspecto, Eduardo Lourenço nota: “A saudade, a nostalgia ou a melancolia são modalidades, modulações da nossa relação de seres de memória

12 D. Duarte (1391- 1438) foi o décimo primeiro rei de Portugal, reinou de 1433 até o ano de sua morte. Considerado primeiro ensaio filosófico escrito em língua portuguesa, o Leal Conselheiro, redigido pelo rei, consiste em um tratado ético-moral, destinado aos homens da corte, cuja temática central é a lealdade. O texto se tornou conhecido pelo testemunho e análise descritiva do humor melancólico que acometeu D. Duarte quando ele teve de assumir trono português após a partida de D. João I, seu pai, para Ceuta.

e sensibilidade com o Tempo” (LOURENÇO, 1999, p. 12). Na visada que lança ao seu próprio percurso no tempo, Portugal se escreve e inscreve na História com a “tinta da melancolia”.

Já dissemos no primeiro capítulo que a poesia é um discurso que reclama para si uma parcela de marginalidade. Não surpreende, então, que um dos espectros presentes na miragem que a cultura portuguesa tem de si própria seja sua “vocação lírica”, a “voz mais próxima do homem como sujeito extasiado diante da beleza do mundo ou nostálgico dela” (LOURENÇO, 2001, p. 38). “Em todas as suas expressões”, lemos em “Portugal como cultura”, “a nossa cultura, naquilo que tem de mais constante e fundo, não seria mais do que a modulação desse sentimento intenso de fusão com o mundo, ou melhor, com a natureza, acompanhado de não menos intensa consciência da sua precariedade, alegria na tristeza, tristeza na alegria. ” (LOURENÇO, 2001, p. 38-39), “a glória de viver triste”, diz o verso de Camões (1953, p. 9). A cultura portuguesa se alicerça, nesse sentido, em duas bases elementares que produzem discursos de marginalidade: a poesia e a melancolia.

A palavra “precariedade”, usada no fragmento acima, pode nos conduzir a uma diversidade de lugares encontráveis no estudo da literatura portuguesa. Não é incomum encontrar na lírica lusitana poeta que expresse de algum modo a condição de carência (sua e) do discurso poético. Camões sem a tença, em poema de Sophia de Melo Breyner Andresen, o professor de latim a pedir esmola em “Sentimento dum ocidental”, de Cesário Verde, o sujeito lírico de Florbela Espanca a se colocar como “Mendiga” ou “Pobrezinha”, o “pobre poeta aposentado” de Ruy Belo em “Emprego e desemprego do poeta”. Todo um discurso de precariedade a envolver a frágil condição da poesia, enunciado por meio de léxico da ordem da pobreza: “Poetas: esperemos com paciência! / Que a Humanidade, um dia, (quase morta/ À mingua d’alma, a Civilização), / Vergada ao peso inglório da ciência, / Há-de vir mendigar à nossa porta / A esmola duma canção! ”. (QUEIROZ, 1984, p. 51). Uma autoimagem que, no imaginário cultural português (que a poesia põe em estado crítico), se aproximaria do que o historiador Fernando Rosas (2001) vai chamar de “mito da pobreza honrada”, uma entre as muitas engrenagens culturais do aparato fascista de Salazar.

Além da coroa saturnina, Portugal possui uma longa tradição literária melancólica. Eduardo Lourenço nos auxilia, novamente, a colocar em nomes concretos a expressão deste estado de alma em toda a tradição literária de portuguesa:

Da poesia dos cancioneiros medievais até à Ode marítima, essa aura de melancolia que desrealiza o mundo por excesso de amor banha todas as obras onde o sentimento das coisas, tal como os portugueses o entendem, se exprime com mais perfeita

naturalidade: lírica camoniana, devaneio de Bernardim Ribeiro, drama de Garrett, romance de Camilo, soneto de Antero de Quental, poema em verso ou prosa de Pascoaes, de Nobre, de Cesário ou de Raul Brandão. Mesmo a nossa tradição mais realista, irônica ou festiva, de Gil Vicente a Eça de Queirós ou Alexandre O’Neill, destila esse fio de melancolia que não é apenas aquela que acompanha todas as grandes criações do espírito, mas uma versão específica dela ou paradoxalmente exacerbada por “um gosto absurdo de sofrer. ” (2001, p. 39).

Para o autor de “Psicanálise Mítica do Destino Português”, a melancolia, assim como para a teoria psicanalítica freudiana, se caracteriza por uma espécie de perda indefinida:

Há que lembrar, porém, que a melancolia – porque não é uma modalidade, entre outras, da sensibilidade e do sentimento, mas uma manifestação estrutural do ser humano, afectado pela sua relação com o tempo – não pode ser confundida com expressões contigentes da nossa existência como a tristeza ou a nostalgia. A tristeza e a nostalgia têm causas, origens e motivações identificáveis na ordem da experiência empírica dos homens. Se bem que se fale também de “tristeza sem motivo” a propósito de certos estados de alma de ensimesmamento doloroso. Mas, se acrescentarmos “sem motivo” a essa espécie de tristeza – que se aproxima assim da melancolia -, é porque para esta paixão há habitualmente uma causa ou um motivo, real ou suposto. Não é esse o caso da melancolia. (LOURENÇO, 1999, p.100).

A saudade, “brasão da sensibilidade portuguesa”, a tristeza e a nostalgia, pertencem, juntamente com a melancolia, a uma mesma trama de afecções da alma, de modo que tal cruzamento permite que uma se manifeste na outra em maior ou menor grau. Enquanto modulações da temporalidade humana pela via da memória, todos os demais estados têm, no entanto, um objeto de perda mais ou menos localizável e consciente, apenas a perda do melancólico é obscura. O próprio uso destes termos indica algo nesse sentido: sentimos “saudade de...”, “nostalgia de...”, ficamos “tristes por...”. Apenas a melancolia não admite esse tipo de complementaridade, o que dá a ver sua causa vaga e indeterminada, mesmo no uso mais corriqueiro da palavra. Freud destacava, em “Luto e Melancolia”, que o melancólico não procede a um processo consciente de perda objetal. A imprecisão das causas que motivam o estado melancólico, bem como a oscilação de humor que caracteriza sua manifestação desde os tempos pré-socráticos, são alguns dos atributos que permitem que enxerguemos a margem como imagem-síntese deste estado afetivo. Além disso, da leitura psicanalítica freudiana é relevante destacarmos a relação conflituosa que o sujeito melancólico estabelece com o objeto perdido: “[...] ao contrário do luto patológico, o que desencadeia a melancolia geralmente abarca mais do que uma nítida perda ocasionada pela morte. Abrange todas as situações por meio das quais os elementos opostos de amor e ódio se inseriram na relação com o objeto” (FREUD, 2013, p. 110).

Benjamin, no já citado Origem do drama trágico alemão (2013), também leva em consideração os aspectos contraditórios externos da melancolia. Aspectos que remontam à Antiguidade, mas que se perderam dentro da perspectiva religiosa e moralizante da acédia medieval:

Com referência ao conceito de melancolia, uma passagem canônica de Aristóteles liga

No documento Ruy Belo: uma poética da margem (páginas 30-62)

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