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Ruy Belo: uma poética da margem

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA

CAROLINA DA SILVA INACIO

RUY BELO: UMA POÉTICA DA MARGEM

NITERÓI 2020

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CAROLINA DA SILVA INACIO

RUY BELO: UMA POÉTICA DA MARGEM

Dissertação apresentada à Coordenação de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense como requisito final para obtenção do grau de Mestre em Estudos de Literatura. Subárea de concentração: Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas em Língua Portuguesa. Linha de Pesquisa: Literatura, história e cultura.

Orientadora: Prof.ᵃ Dr.ᵃ Ida Maria Santos Ferreira Alves

NITERÓI 2020

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Ficha catalográfica automática - SDC/BCG Gerada com informações fornecidas pelo autor

Bibliotecário responsável: Sandra Lopes Coelho - CRB7/3389 S586r Silva inacio, Carolina da

Ruy Belo: uma poética da margem / Carolina da Silva inacio ; Ida Maria Santos Ferreira Alves Santos Ferreira Alves, orientadora. Niterói, 2020.

114 f. : il.

Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2020.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSLIT.2020.m.11669626792 1. Poesia portuguesa do século XX. 2. Ruy Belo. 3. Melancolia. 4. Produção intelectual. I. Santos Ferreira Alves, Ida Maria Santos Ferreira Alves, orientadora. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.

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CAROLINA DA SILVA INACIO

RUY BELO: UMA POÉTICA DA MARGEM

Dissertação apresentada à Coordenação de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense como requisito final para obtenção do grau de Mestre em Estudos de Literatura. Subárea de concentração: Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas em Língua Portuguesa. Linha de Pesquisa: Literatura, história e cultura.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________________ Profª. Drª. IDA MARIA SANTOS FERREIRA ALVES – Orientadora

Universidade Federal Fluminense

___________________________________________________________________________ Profª. Drª. MÔNICA GENELHU FAGUNDES

Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________________________________________ Prpfª. Drª. OLGA DONATA GUERIZOLI KEMPINSKA

Universidade Federal Fluminense

SUPLENTES

___________________________________________________________________________ PROF. DR. LUIS CLÁUDIO DE SANT’ANNA MAFFEI – Universidade Federal Fluminense

___________________________________________________________________________ PROF. DR. CARLOS EDUARDO DA CRUZ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Niterói 2020

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AGRADECIMENTOS

Ao Deus dos meus pais, por me ensinar, com a história de José, a crescer e esquecer na terra de minha aflição.

Aos meus pais (sobretudo, à minha mãe, Kátia Santanna, por me ensinar a costurar com paciência tecidos, palavras e afetos).

À Cintia Inacio e Vilma Lúcia, muito mais que irmãs.

À Ida Alves, docente incansável e leitora ímpar de poesia. Agradeço especialmente pelas aulas ministradas na pós-graduação, demonstrações patentes de um profundo respeito pela palavra poética.

Aos amigos de ontem e hoje que se fizeram presentes dia a dia nestes últimos dois anos.

Aos parceiros de vida acadêmica, por todo apoio e afeto desde o início deste percurso.

À Universidade Federal Fluminense, por acolher minha jornada desde 2012.

À CAPES, pela bolsa concedida.

Às docentes Prof. Dra. Mônica Fagundes e Prof. Dra. Olga Kempinska, pela leitura dedicada e pelas contribuições valiosas no exame de qualificação.

A todos os professores do Instituto de Letras da UFF que, direta ou indiretamente, contribuíram para que eu trilhasse esta longa caminhada, sempre em curso, na senda da poesia. É com ternura e reverência que agradeço especialmente ao professor e poeta Luis Maffei.

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“Eu vinha para a vida e deram-me dias” vivos com os seus lugares e espaços.

Ontem nasci sem fim, e alimentei-me nesta mesa que em duas se reparte. Uma aba no mar, vagante à toa trouxe os sabores das ondas, de orlas. Outra aba na terra mostrou-me as pedras polidas, úberes, gastas. Pedras

Fiama Hasse Pais Brandão, Cenas vivas

Hei-de saborear o mundo o seu horror fealdade beleza e harmonia ver passar o inverno o verão e sentir solidão e alegria

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RESUMO

Esta dissertação propõe-se a analisar as tensões entre melancolia e alegria presentes na obra poética de Ruy Belo (1933-1978). Para isso, levamos em consideração a recorrência da metáfora da margem na poesia do autor, imagem-síntese dessa tensão. Tendo em vista que sua poética oscila entre a mais profunda consciência da vacuidade existencial e a afirmação da alegria como condição necessária para existir no mundo, a margem é, nesta discussão, um elemento imagético fulcral para compreendermos determinados posicionamentos do autor tanto em seu trabalho crítico e ensaístico, como em poesia, produções que, vistas em conjunto, fazem da totalidade desta obra uma poética da margem. Nossa proposta de leitura é orientada pela visão teórica de um conjunto de pensadores, tais como Sigmund Freud, Walter Benjamin e Eduardo Lourenço, além de Jean Starobinski e Giorgio Agamben, acerca da melancolia, e, para refletirmos sobre a tópica da alegria, nos acercamos dos postulados éticos de Spinoza, com referências a outros pensadores que também se dedicaram ao tema, como Clément Rosset.

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ABSTRACT

This dissertation aims to analyze the tensions between melancholy and joy present in the poetic work of Ruy Belo (1933-1978). For this, we take into consideration the recurrence of the metaphor of the margin in the author's poetry, an image-synthesis of this tension. Considering that, his poetics oscillates between the deepest awareness of existential emptiness and the affirmation of joy as a necessary condition to exist in the world, the margin is, in this discussion, a key imagetic element for us to understand certain positions of the author both in his critical and essayistic work, as in poetry, productions that, seen together, make the totality of this work a poetics of the margin. Our reading proposal is guided by the theoretical vision of a group of thinkers, such as Sigmund Freud, Walter Benjamin e Eduardo Lourenço, beside Jean Starobinski and Giorgio Agamben, about melancholy, and, to reflect on the topic of joy, we approached the ethical postulates of Spinoza, with references to other thinkers also dedicated to the theme as Clément Rosset.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...9

2. AS MARGENS...13

3. A MARGEM DA MELANCOLIA...28

3.1 “Um não sei quê, que nasce não sei onde”...28

3.2. “Bailemos nós malditos marginais”...37

3.3. “Há uma certa maré nas coisas humanas”...49

4. A MARGEM DA ALEGRIA...60

4.1. “Uma alegria dificilmente conquistada”...60

4.2. “Quero despedir-me com um canto melancólico”...69

4.3. “A mão no arado”...77

5. CONCLUSÃO...

..

82 6. BIBLIOGRAFIA...85 6.1. De Ruy Belo...85 6.2. De outros autores...85 6.3. Teórico-crítica...85 6.4. Outras fontes...90 7. ANEXOS...9

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1. INTRODUÇÃO

Ruy Belo (1933-1978) foi uma das vozes poéticas mais singulares do século XX português. Legou aos tempos atuais uma prestigiosa produção crítica, ensaística e poética. Tendo publicado poesia entre os anos 1961 e 1978, é considerado, com a chancela crítica de Joaquim Manuel Magalhães1, um dos poetas mais importantes para a lírica portuguesa surgidos

na década de sessenta. Sua produção abrange dez livros de poesia e uma coletânea de ensaios escolhidos pelo próprio autor, publicada em 1969, sob título Na senda da poesia.

Sua formação acadêmica iniciou-se com o curso de Direito, concluído em 1956, ano em que se desloca para Roma, onde obterá o título de doutor em Direito Canônico, com tese sobre censura eclesiástica. De educação católica tradicional, pertenceu por dez anos ao Opus Dei, rompendo relações com a instituição em 1961. No mesmo ano, inicia os estudos em Filologia Românica, que conclui em 1967, e começa a publicar poesia. Em 1971, distancia-se novamente das terras portuguesas, exercendo o cargo de leitor de português na Universidade de Madrid até 1977. Nesse mesmo ano retorna a Portugal e falece prematuramente no ano seguinte, aos quarenta e cinco anos de idade.

No Brasil, tem sido crescente a visibilidade de sua poesia. Em 2003, o nº 15 da revista Inimigo Rumor, sob direção luso-brasileira no período, homenageou o poeta com um dossiê de que participaram autores portugueses e brasileiros na apresentação de Ruy Belo ao público brasileiro, ampliando sua relevância para as letras em contexto lusófono. Em 2013, sua poesia completa foi finalmente publicada, no país, pela Editora 7Letras, do Rio de Janeiro e, nos Cursos de Letras, tem sido frutífero o trabalho acadêmico realizado por professores universitários e pesquisadores de pós-graduação.

Nosso primeiro contato com a poesia de Ruy Belo deu-se ainda no curso de graduação em Letras, na UFF. Com a leitura dos poemas de Ruy Belo, desenvolvemos verdadeiro interesse pela poesia portuguesa pós-Pessoa. Essa passagem se deu de maneira tranquila pela mão do

1 Em Os dois crepúsculos: sobre a poesia portuguesa actual e outras crônicas (1981), Joaquim Manuel Magalhães afirma: “1961 é uma data complexa para a mais recente poesia portuguesa. Nesse ano seriam publicados os primeiros livros daqueles que se tornariam os dois mais importantes poetas surgidos nessa década: Aquele grande rio Eufrates de Ruy Belo e A colher na boca de Herberto Helder, ambos editados pela Ática.” (MAGALHÃES, 1981, p. 149).

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poeta devido ao fato de sua escrita dialogar direta e apaixonadamente com a poesia pessoana, proporcionando uma experiência de leitura duplamente interessante, uma vez que, a partir dessa relação, podemos um poeta à luz do outro. Um procedimento que termina por ser inevitável e a que se recorreu, com algum deleite, sempre que possível nesta dissertação. A poesia beliana abriu, dessa forma, nosso campo de observação para os interessantes movimentos de diálogo da poesia moderno-contemporânea com a tradição. Isso comprova a tese de que as poéticas surgidas na década de sessenta na literatura portuguesa releram e solidificaram muito do que, na poesia moderna do início do século vinte, foi determinante (MARTELO, 2006).

A partir dessa ideia, começamos por propor, na primeira seção deste trabalho, que a poesia beliana é uma poesia de fronteira. Ela mantém ao seu lado, sem que essa fronteira represente um limite rígido, uma tradição poética com a qual dialoga, sem estabelecer com ela uma relação iconoclasta de ruptura. Apesar de esse aspecto ser uma tendência geral que se verifica na década de sessenta portuguesa, ainda assim, Ruy Belo demarca seu lugar de diferença articulando as linhas de força distintas que se afirmavam nesse período.

À nossa linha de raciocínio vai contribuir a recorrência de uma imagem que atravessa sua poesia de muitas maneiras e da qual nos servimos para dar contorno aos conflitos que nesta escrita se apresentam: a margem. Procuramos, a partir disso, sustentar que o lugar ocupado pela poesia beliana na geografia literária portuguesa é marginal, “profundamente marginal” (BELO, 2002, p. 313), como dirá o autor a respeito de sua atuação como crítico e poeta no cenário português.

Buscamos associar, então, tal condição à experiência cultural portuguesa, que no dizer de Eduardo Lourenço é já de si “predisposta para melancolias” (2001, p. 13). Portugal, “ponta extrema da península Ibérica” (2001, p. 37), como o filósofo, vivenciou geográfica e culturalmente uma marginalidade que infiltra seu imaginário desde tempos imemoriais, mantendo-o envolto em uma bruma de melancolia e saudade, brasões culturais da tradição portuguesa.

Ao perseguir a profundidade dessa margem de modo um tanto quanto obsessivo, aproveitamo-nos de tal imagem para nos acercarmos dos traços melancólicos da poesia Ruy Belo. A melancolia, como se pode verificar tanto em abordagens teóricas que dela se fizeram quanto em algumas representações artísticas ao longo do tempo, proporciona uma experiência

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da margem, isto é, uma experiência de dualidades e tensões. No campo das artes, é nossa proposta, a imagem da margem pode ser lida como um dos signos dessa condição.2

A subjetividade lírica de Ruy Belo se expressa na grande maioria dos seus poemas por meio de uma dicção elegíaca e melancólica. Veremos que a expressão desse estado afetivo se plasma também em estruturas verbais que veiculam antíteses e paradoxos, sendo estes últimos mais visíveis e frequentes na fase final da obra do poeta. A partir disso, atravessamos a margem melancólica da poesia beliana e passamos a uma leitura da alegria, a qual se estabeleceu como tópico, em certa medida, incontornável para abordar os aspectos melancólicos que indicamos, sobretudo sob a perspectiva da margem.

Muito da crítica literária que foi e tem sido produzida sobre a poesia de Ruy Belo costuma dar, com pertinência, alguma primazia para o que, no contexto crítico de sua obra, se traduz pelo conceito de negatividade. A complexidade e densidade de sua poesia se intensifica, no entanto, quando verificamos que ela também se alimenta de uma força que lhe é oposta. A par da melancolia, da resignação e do desamparo enunciados por esta voz, insurge-se diante disso uma afirmação da vida e do ser que, conforme vamos propor, incorpora uma tonalidade trágica, porém obstinada. A alegria, diz Clément Rosset (2000), é um acordo com o trágico, pois sua verdadeira manifestação é sabedora e consciente dos infortúnios humanos, uma afirmação diante da negação. É por isso que alegria mesma em Ruy Belo é “impossível”, do mesmo modo que é impossível a esta poesia, cuja fonte é “o receio da morte”, esquecer que se morre. Nisso consiste a tonalidade trágica dessa voz.

A nosso ver, a obra A margem da alegria (1974), cujo título é duplamente significativo para nossa reflexão, alegoriza através das figuras de Pedro e Inês o sepultamento da alegria, a condição constantemente lutuosa dos mortais enquanto seres no tempo e feitos de tempo. “A alegria marginal”, como propõe Serra (2003, p. 117), “é uma experiência alegórica”. Da alegria, os homens só experimentam a margem, esse espaço que proporciona a ela também uma dupla condição.

A impossibilidade, ao contrário do que pode sugerir a carga negativa que essa palavra porta, indica uma direção, uma abertura ética em direção à “permanente dívida à impossível alegria”, como diz Manuela de Freitas na seção de testemunhos do nº 4 da revista Relâmpago, de 1999, dedicado ao poeta. Nessa abertura, a “palavra de arte” tem papel central para assunção

2 Obras como a gravura Melencolia I (1514), de Albrecht Dürer (1471-1528), e a tela Melancolia (1892), de Edvard Munch (1863-1944), que serão citadas neste trabalho, são exemplos de representações artísticas da melancolia que incluem o elemento da margem em sua composição.

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de uma postura de “olhos postos no futuro, no dia de amanhã, quando houver mais justiça, mais beleza sobre esta terra [...]” (BELO, 2004b, p. 10).

Nosso trabalho estende-se, portanto, por duas margens. Na margem da melancolia, terceira seção do presente texto, procuramos sondar conceitualmente esse afeto a partir do halo de indefinição e ambiguidade que costuma acompanhá-lo. Tratamos também dos aspectos atinentes aos elementos elegíacos que fazem da poesia de Ruy Belo uma poesia melancólica. A passagem a outra margem se dá pela abordagem do pendor ao paradoxo que se vai progressivamente intensificando na obra do autor. A margem da alegria, quarta seção, é alcançada pela ideia de alegria trágica, que projeta seu fazer poético para uma abertura ética. A relevância desta proposta consiste na tentativa de conjugar, de tornar aproximáveis, duas chaves de leitura possíveis, tendo em mira não pacificar tensões, mas sim exercitar e manter complexidade desta voz “às vezes triste alegre às vezes” (BELO, 2004c, p. 205).

No que tange à crítica da poesia beliana, orienta-nos as perspectivas de críticos portugueses e brasileiros como Joaquim M. Magalhães, Eduardo Lourenço, Pedro Serra, Fernando Pinto do Amaral, Manoel Ricardo de Lima, Ida Alves, entre outros. Nossa compreensão do contexto cultural e histórico-literário português em que a poesia de Ruy Belo é produzida se fundamenta nas propostas de Rosa Martelo, João Barrento, José Gil e outros nomes já mencionados.

Para refletirmos sobre a melancolia, utilizaremos como suporte teórico um conjunto de obras selecionadas de alguns pensadores que se dedicaram a conceituá-la nas suas diversas manifestações. Assim, são importantes para esse ponto de nossa discussão as visões teóricas de Walter Benjamin, Sigmund Freud, Jean Starobinski, Giorgio Agamben, e outros. Buscaremos aproximar tais autores a partir de suas formulações teóricas que compartilham como traço comum a concepção da melancolia como objeto vago e indefinido. São fundamentais, ainda, em nossa proposta, os escritos de Eduardo Lourenço em Mitologia da Saudade (1991), bem como outros trabalhos do filósofo que apontam a melancolia como elemento integrante da cultura portuguesa.

Nossa visão teórica sobre a alegria se fundamentará na proposta de Clément Rosset, que a concebe, a partir do pensamento nietzschiano, como essencialmente trágica, ideia que, a nosso ver, se manifesta na concepção de alegria presente na poesia beliana. Como procuraremos ler a escrita de Ruy Belo como uma (arte) poética da margem, fundamentaremos também nossa leitura da alegria em alguns postulados do livro terceiro da Ética de Spinoza, que a enxerga como um afeto político que potencializa o agir e o pensar. Com isso, vamos propor que a

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“impossível alegria”, isto é, a alegria sempre buscada nessa poesia, dizemos, se presta a uma abertura ética de afirmação diante da negação.

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2. AS MARGENS

Marginal, profundamente marginal. Ruy Belo

A incursão que este trabalho propõe não se faz a esmo. Embora errar seja, muitas vezes, conveniente à leitura do texto beliano, o percurso aqui realizado leva em consideração uma imagem da qual nos valemos para estruturar nossa peregrinação nesta poética: a margem. Tal imagem, muito presente na obra de Ruy Belo, não foi negligenciada no campo das apreciações que se fizeram de sua poesia, aparecendo em títulos e epígrafes de trabalhos que se debruçaram sobre o autor3. Sua importância não deixou de ser notada até mesmo em âmbito editorial, tendo

tal imagem servido de estampa à capa em algumas edições de sua obra poética4. Lugar de

ambiguidade e tensão, a margem pode ser vislumbrada nesta escrita em vários planos. Um deles é o histórico, ao qual vamos começar por nos remeter a fim de situá-lo na historiografia literária da segunda metade do século XX em Portugal, com o apoio de alguma crítica e de estudos acadêmicos que confirmam, como se verá, a condição, num certo sentido, marginal de Ruy Belo com relação ao contexto artístico e cultural em que começa a publicar sua poesia.

Rosa Maria Martelo, em Vidro do mesmo vidro (2007), aponta que o ano de 1961 costuma ser encarado pela crítica como um período que inaugurou mudanças decisivas na poesia portuguesa do século XX. Citando posicionamentos críticos como os de Nuno Júdice e Luís Miguel Nava, a autora destaca a recorrente classificação de “ponto de viragem” ou de

3 A título de exemplo, podemos mencionar o artigo “A margem da alegoria”, de Luís F. Adriano Carlos, publicado na Colóquio/ Letras nº 155, em janeiro de 2000, e “A poesia como margem: Carlos de Oliveira e Ruy Belo”, de Ida F. Alves, publicado nos Anais da XIX ABRAPLIP, em 2003.

4 A poesia beliana ostenta “palavras” e “coisas”. Trabalhos atentos a esse aspecto como o do fotógrafo Duarte Belo (1968), filho do poeta, transpõem para visualidade fotográfica o que a poesia de Ruy Belo nos dá a ver com palavras: pilhas de jornais, folhas, horizontes, praias, prados, árvores frondosas. Os livros de fotografia Ruy Belo: coisas de silêncio (2000) e O núcleo da claridade: entre as palavras de Ruy Belo (2011), ambos editados pela Assírio & Alvim, são obras que nos ajudam a ver a poesia do autor. A primeira obra, exemplificando o que dissemos, tem por capa a fotografia da orla de uma praia. Outras obras do autor publicadas pela mesma editora seguem essa mesma linha de apresentação gráfica, utilizando, não raro, retratos do próprio poeta à beira-mar.

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“instante de viragem” que recebe o emblemático ano. Na mesma linha de argumentação que reconhece a “amplitude da renovação da poesia portuguesa conseguida ao longo da década de 60” (MARTELO, 2007, p. 12), a ensaísta sinaliza, porém, que tal renovação deveu-se sobretudo ao fato de as poéticas surgidas a partir da década de 60 “relerem e reforçarem muito do que fora mais estruturante para construção da ideia de uma poesia moderna” (MARTELO, 2007, p. 12).

O que aí se identifica é um processo de religação com as poéticas situadas no final do século XIX e começo do século seguinte. Uma filiação que já se traçara no conhecido ensaio de Eduardo Lourenço “Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos”, de 1993, texto que, embora se ocupe da prosa, reconhece, então, na literatura portuguesa uma linha de descendência que relaciona o que na metade do século se produziu às poéticas modernistas. A partir desse ensaio, Martelo afirma: “uma linha evolutiva que, embora vinda do Modernismo, apenas em meados do século XX voltaria a ter continuidade, ou, se quisermos retomar a imagem proposta, só então teria descendência (e a descendência é, como todos sabemos, condição de devir e não uma figura de repetição” (2007, p.17).

Traçar genealogias é, aliás, um procedimento muito caro ao filósofo português, para quem Ruy Belo seria, em relação a Fernando Pessoa (representante máximo do Modernismo português dentro do cânone), “não o discípulo amado – nem precisava nem o podia ser de tão estéril e sublime pai –, mas de certo modo o improvável irmão póstumo” (LOURENÇO, 2015, p. 338), não sendo um “filho” de Pessoa-Campos, mas sim seu irmão, tamanha a proximidade de Ruy Belo com a dicção e as questões pessoanas. Essa genealogia estabelecida por Lourenço, no caso de Ruy Belo, está a reforçar uma vez mais a tese de Martelo que reconhece na poesia da segunda metade do século XX uma comunicação com as poéticas modernistas.

Reportando-se ao mesmo período como marco de transformações, Ida Alves, no artigo “Diálogos e confrontos da poesia portuguesa pós-60”, caracteriza o desenrolar da tradição lírica portuguesa a partir segunda metade do século XX, estendendo-se até a década de 90, como um período em que progressivamente se intensificaram as relações intertextuais, sendo a poesia desse momento atravessada, entre outras particularidades que cada década manifestou isoladamente, por acentuado dialogismo (ALVES, 2002, p. 188). O texto destaca ainda que, no caso de Nuno Júdice, por exemplo, a intertextualidade possui uma função particular que é a de “estratégia crítica”, uma atribuição que pode ocorrer na obra de um grande número de poetas-críticos que, assim como esse poeta, unem as duas atividades. Uma disposição crítica que se deixa entrever, quando se pensa na década de 60, até mesmo na ênfase dada à reflexão

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metapoética, reflexão esta realizada em uma linguagem com referencialidade “tensa”, esclarece Rosa Martelo, e que priorizava, em alguma medida, “a materialidade discursiva do poema” (MARTELO, 2007, p. 25). Trata-se de uma atitude altamente dialogante, como argumenta essa autora, com as poéticas da Modernidade estética pós-baudeleriana. É isso que vai justificar, por exemplo, a convivência amigável (amigável no sentido de não se escrever “contra” o poeta) de Fernando Pessoa na poesia Ruy Belo.

O que Martelo procura salientar observando a produção poética da segunda metade do século XX em Portugal, em síntese, é que “as poéticas emergentes na década de 60 consolidam uma tradição de Modernidade escolhendo a sua vertente mais radical”, ao passo que, a partir da década de 70, “as poéticas subsequentes preferem reatar a tradição mais remota da Modernidade, em sentido baudelairiano. ” (MARTELO, 2007, p. 41, grifos da autora). E, indo ao encontro da análise de Alves que destaca o dialogismo característico do período, diz: “em ambos os casos, é indiscutível a importância da intertextualidade e o modo como ela remete para o que Fredric Jameson chamou de ‘massa de clássicos mortos’, isto é, uma espécie de arquivo de estilos.” (MARTELO, 2007, p. 41).

Como poética procedente da década que marca a abertura a estes processos de retomada e continuidade, utilizando aqui termos empregados por Martelo, a obra de Ruy Belo, conforme já exemplificamos acima, não está isenta desses movimentos. Na tese Ruy Belo e Modernismo brasileiro: poesia, espólio, Athayde (2016) nos mostra, a partir do estudo do espólio do autor (que abarca, sobretudo, correspondências, leituras de eleição do poeta e anotações de marginalia em livros), que, ao Ruy Belo leitor, interessava um determinado modernismo brasileiro, e que os “precursores” eleitos por ele no âmbito do nosso modernismo têm em comum a particularidade de não inscrevem em suas obras uma lógica de ruptura com relação à tradição, sendo, então, os nomes mais reverenciados os de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima (ATHAYDE, 2016, p. 70).

Tal leitura se coaduna com o posicionamento de Osvaldo Silvestre, que lê a poesia beliana como uma das mais “convincentes evidências do esgotamento dos imperativos do modernismo” (1997, p. 7), dando relevo à “conjuntura tardo-modernista” da década sessenta em Portugal, “momento em que o moderno começa visivelmente a perder sua capacidade de choque” (1997, p. 9). A propósito disso, Silvestre destaca ainda certo distanciamento de Ruy Belo, em seus dois primeiros livros, com relação às “intenções programáticas” que se difundiam entre as principais linhas de força da época, principalmente na literatura neorrealista, e ressalva

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que estas, “quando nela se manifestam, tendem a fazê-lo no registo de uma ética sem convicção – embora não desprovida [...] de responsabilidade” (1997, p. 7, grifo nosso). Ou seja, apesar de participar, em certa medida, deste movimento de diálogo com o que se pode chamar de tradição modernista e estar, nesse sentido, alinhada às direções apontadas por Martelo no contexto da poesia portuguesa pós-60, a poesia de Ruy Belo apresenta ainda assim uma parcela de marginalidade com relação aos seus coetâneos.

Em dado momento de O mosaico Fluido (1991), Fernando Pinto do Amaral delineia as linhas de força que se sobressaíram a partir de 1960 na poesia em Portugal, resguardando, no entanto, as poéticas singulares de Ruy Belo e Herberto Helder:

Atravessamos nessa década de 60 um dos momentos-chave da nossa contemporaneidade e a poesia não é exceção: a par do irreprimível e poderoso fluxo imagético pós-surrealista de Herberto Helder e do fôlego neo-romântico de Ruy Belo [...], deparamos com três linhas: uma configurada pela luta política (muitas vezes musicada ou musicável), uma outra corrente dita “experimental” e, enfim, as propostas agrupadas sob o conjunto de plaquetes Poesia-61. (AMARAL, 1991, p. 47)

No livro Na órbita de Saturno (1992), texto em que se ocupa mais detidamente da poesia beliana, o crítico torna a se referir à posição a contrapelo do poeta e termina por utilizar uma expressão que nos convém destacar:

[...] construída à revelia de grande parte do que há 25 ou 30 anos parecia mais decisivo – como aliás assinalou Eduardo Prado Coelho num balanço dessa época – a obra de Ruy Belo apresenta-se hoje, a meu ver, como um dos mais decisivos lugares de passagem entre as décadas de 60 e 70, retendo da primeira um certo entusiasmo voluntarista quanto às perspectivas de mudança social, um sentimento de fraternidade humana ainda optimista e fiel à grande narrativa marxista da libertação dos homens (e libertação foi, de facto, a palavra-chave dos anos 60), mas prenunciando já o que se tornaria claro a partir da década seguinte – quer dizer, a consciência de que, mais tarde ou mais cedo, toda a ilusão se metamorfoseia em desencanto [...]. (AMARAL, 1992, p. 91, grifos nossos).

Se os anos 60 na poesia portuguesa são tidos como um “ponto de viragem”, expressão que, segundo as reflexões de Rosa Martelo, pode ocultar uma continuidade que em verdade ali se estabelece, é a poesia beliana, pouco afeita a descontinuidades abruptas, por isso será considerada “um dos mais decisivos lugares de passagem entre as décadas de 60 e 70”. Retornando a um ponto da argumentação de Martelo, talvez não seja possível mesmo falar das décadas de 60 e 70 em termos de ruptura na sua relação com as poéticas da Modernidade estética, mas é possível, entretanto, identificar “deslocamentos” em relação aos contextos imediatamente precedentes.

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Eduardo Prado Coelho, conforme indica Amaral, traça um breve panorama do período em que a poesia de Ruy Belo veio a lume, dando relevo à sua inicial disparidade com relação ao que nesse contexto foi mais determinante:

Se evocarmos o quadro cultural dos anos 60, entenderemos facilmente que a poesia de Ruy Belo tinha de lutar para se impor. Vivíamos uma época de grande politicização, marcada pelo início da guerra colonial, a crise crescente do sistema salazarista, as primeiras grandes movimentações estudantis. O Ruy surgia de uma zona da vida portuguesa de cariz conservador ou discretamente neutrais. À partida isso poderia ser um pretexto capaz de suscitar em seu redor um círculo de suspeição. Mas, com o Ruy Belo, as coisas eram diferentes. Ele decidiu sempre o seu comportamento em função das deliberações da consciência, às vezes complexas, que expunha frontalmente a cada um de nós. [...]. Pouco a pouco, foi deixando que certos temas de uma tradição literária mais interveniente aparecessem na sua poesia. (COELHO, 1988, p. 149).

E prossegue, destacando também a complexidade da época em função da “soma de condenações” a que a poesia estava sujeita:

Estávamos numa época em que procurávamos rejeitar diversas coisas simultaneamente: o subjectivismo narcísico do movimento que, pelos anos 30, se concentra em torno da revista Presença, e de dois dos seus principais representantes, Régio na poesia e Gaspar Simões na crítica; o verbalismo ideológico de algum neorrealismo de escola; as reacções tradicionais ou purificantes da poesia nos anos 50, que aparecia como um retorno a posições estéticas de cunho idealista. (COELHO, 1988, p. 150).

Disso, afirma Prado Coelho, resulta “uma enorme vontade de, com o apoio da linguística emergente e da semiótica balbuciante, e a coberto de uma teoria que se proclamava rigorosamente materialista, escrever uma poesia que fosse revolucionária, não pelo significado dos seus enunciados, mas pela estrutura de suas enunciações” (1988, p. 150). Nesse sentido, podemos dizer que a poesia de Ruy Belo, dentro desse quadro, se fez a contrapelo, à margem, “manifestamente contra a corrente”, nas palavras de Prado Coelho. Livre das “intenções programáticas” que Silvestre aponta, acreditamos que a poesia beliana se encontrava à margem mais por agregar, em alguma medida, parte desta diversidade de caminhos que por se opor a todos eles. Nela pode-se observar, a título de exemplo, a crescente incorporação, a partir de Boca Bilingue (1966), de “temas de uma tradição literária mais interveniente”, conforme aponta Eduardo Prado Coelho, sem que com isso se abandonem as preocupações formais que permearam sua escrita do primeiro ao último livro (embora esta atenção formal, é preciso notar, se dê de maneira distinta a partir da década de 70, o que permite que a obra beliana seja considerada, como já dissemos, “um dos mais decisivos lugares de passagem” entre os anos 60 e 70).

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No que respeita ao contexto histórico-literário em que surge, a poesia beliana apresenta, como se vê, certa instabilidade classificatória quando se trata de situá-la com precisão na historiografia literária de Portugal de meados do século XX. É quase consensual entre a maioria dos críticos e estudiosos de poesia portuguesa apresentá-la como um lugar de diferença. Em suma, destaca-se com frequência, inequivocamente, “o fato de Ruy Belo não se integrar plenamente em nenhuma das principais linhas de sua época, ocupando uma posição independente (embora de cruzamento de tendências estéticas e temáticas). ” (ERTHAL, 2014, s/p apud ATHAYDE, 2016, p. 67, grifos nossos). Nessa interseção de linhas de força configura-se, portanto, a posição marginal de Ruy Belo relativamente à conjuntura histórica da lírica no século XX português.

Assumir uma posição marginal, em poesia, significa, entre outras coisas, deslocar o centro, desestabilizar lugares de centralidade instituídos por ordens de poder estabelecidas. Atenta à fecundidade desta palavra para se pensar o discurso poético na sua condição mais fundamental, Ida Alves sinaliza que

estar à margem não é simplesmente ser desprezado, ignorado, mas assumir um lugar descentrado, rejeitando o poder do senso-comum, num espaço permanente de tensão e de mudança de seus próprios limites. Com esse horizonte, relacionar poesia e margem não é lamentar o isolamento ou a fraca recepção no dia-a-dia, mas compreender a “ margem” como metáfora do próprio discurso poético, o qual mais se torna fundamental, quanto mais livre se declara, mais insubmisso se mostra, mais crítico se vê frente aos valores massificantes que imperam. Esse colocar-se à margem permite à poesia maior resistência, exercendo um olhar crítico dos mais desembaraçados, unindo poeta e leitor num pacto de compreensão e sedução em torno da língua / mundo partilhados. (ALVES, 2004, p. 420).

O lugar da poesia é essencialmente marginal, algo que se torna muito mais evidente em nosso contexto contemporâneo mergulhado na evidente tensão entre a arte e a indústria cultural, ao qual a autora remete nas palavras introdutórias de seu texto para em seguida passar à análise de duas poéticas que experienciaram a margem como “condição necessária para que a poesia tenha liberdade estética e seja um compromisso ético”, que são a de Carlos de Oliveira e, como procuramos argumentar, a de Ruy Belo. Segundo Alves, a vivência da margem assegura “posicionamento independente, sem busca de parcerias artificiais, ou rendições à facilidade do centro” (ALVES, 2004, p. 420). Em consonância com isto, podemos ver que a poesia beliana negociou da margem a sua participação em linhas estéticas que se edificavam como limites. A margem terá, precisamente como aponta Ida Alves, um valor não só estético, mas também ético por metaforizar a assumida condição da própria poesia enquanto discurso que se projeta em direção contrária ao centro e à estabilidade por ele proporcionada.

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O referido artigo, que tem por título “A poesia na margem”, valida nossa proposição inicial, em que consiste a presente seção deste trabalho, de que a poesia beliana participa de uma marginalidade, no sentido que conferimos aqui, em variados planos, o que permite que a concebamos como uma poética da margem. A margem é em Ruy Belo uma imagem-síntese não só da tensão entre forças opostas, em que “temos a figura firme de um escritor que fez a opção pela margem como situação-impasse, lugar-limite de onde o pulo pode ser dado em direção à vida ou para a morte, contraste tão presente na consciência de escrita desse poeta da dor ” (ALVES, 2004, p. 421), mas também da insubordinação que recusa espaços hierárquicos de centralidade, recusa a “mentalidade de chefe” (BELO, 2002, p. 313).

Fazer poesia para Ruy Belo é abdicar da centralidade. Quanto a isso, em texto cujo título torna ainda mais evidente o valor da margem para o poeta, “Poesia e luta pelo poder”, afirma, taxativo: “Antologias, recitais, traduções, citações? Como estou longe de tudo isso. O que espero é que me perdoem estar vivo e, sem pretender ferir seja quem for, mesmo medíocre, manifestar minha opinião num caso ou noutro. Marginal, profundamente marginal. O poder não me interessa. Não tenho mentalidade de chefe” (BELO, 2002, p. 313 grifos nossos). A poesia bem pode estar a serviço de disputas de poder, e, nesse sentido, assumir o lugar da margem é rebelar-se, para o poeta a quem “escrever é desconcertar, perturbar e, em certa medida, agredir”. “A poesia”, diz Ruy Belo, “é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da convivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida” (BELO, 2004b, p. 9).

Em sua produção crítica e ensaística reunida em Na senda da poesia abundam declarações que aliam, e até mesmo condicionam, em alguma medida, o fazer poético a um posicionamento marginal por parte do poeta. No ensaio “Musa própria e alheia”, presente na seção intitulada “Proposições”, lemos: “[...] resta aos autênticos poetas, àqueles que só a uma norma íntima afinal obedecem, resta – dizíamos nós – aos poetas cultivar a impopularidade, certos de que a poesia é, como toda arte, essencialmente impopular. ” (BELO, 2002, p. 56). Ruy Belo está a condenar, nesse ensaio, certa crítica literária que se isenta de distinguir os “autênticos poetas” dos “os aventureiros da poesia”, ou, como disse em outro momento, no prefácio a Transporte no tempo (1973), “do poetastro, do poeta industrial e comerciante de poemas” (BELO, 2004b, p. 10).

Seu pensamento crítico e ensaístico está assentado em uma noção de poesia que relaciona tanto o fazer poético a um constante exercício: “a poesia”, afirma, “se configura em

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alto grau como um dom inato, embora peça necessariamente um exercício que não consentirá ao poeta poisar a cabeça seja onde for ao longo da sua vida” (BELO, 2002, p. 55 grifo nosso); como o associa, não raro, ao sacrifício: os “autênticos poetas” de que fala “à poesia sacrificaram pelo menos elevada remuneração e alguma consideração social”. (BELO, 2002, p. 56, grifo nosso). Reivindicar uma posição marginal é, nesse sentido, assumir uma postura sacrificial. “O poeta”, afirma Ruy Belo, [...] “imolou o coração à palavra”. (BELO, 2004b, p. 10). “À arte dou o que devia à vida” (BELO, 2004b, p. 188), diz em “Pequena história trágico-terreste”. O sacrifício é inerente à poesia, e esta consciência da margem na poética beliana decorre também daí. É assumindo esse espaço que a poesia de Ruy Belo transgride, adultera, resiste: uma escrita marginal, pois.

Pedro Serra afirma a propósito do poema-livro A margem da alegria (1974), que “a alegria marginal é uma experiência alegórica” (SERRA, 2003, p. 117) nessa obra. Considerando que a margem é, como procuramos mostrar, análoga ao próprio fazer poético para o autor, é lícito estender a ela tal sentido alegórico. Cabe-nos, portanto, recuperar aqui uma acepção de margem que dialoga intimamente com a expressão alegórica, que é a ideia de fragmentação e limite. Assumindo a ambiguidade intrínseca a essa imagem, agora valemo-nos do sentido contrário: a margem enquanto limite, como aquilo que indica uma quebra, uma experiência de fratura e descontinuidade, tal como a alegoria, no nível da expressão.

Em sua definição mais primeva, alegoria, do grego Allegoría pela junção dos étimos állei (“de outro modo”) e agoréuein (“falar”), significava “afirmar de outro modo”, sendo vista no campo da oratória na Antiguidade Clássica como uma forma de dizer “uma coisa com palavras e outra com as ideias subentendidas” (VELOTTI, 2003, p. 20). Segundo Pereira (2013), tal forma discursiva não possuía, já na Antiguidade, grande prestígio entre as demais (embora, acrescentamos, tenha sido um recurso empregado em diversos textos seminais da tradição filosófica ocidental como a Alegoria da Caverna, de Platão, por exemplo):

Comprometida desde a Antiguidade Clássica com a retórica e às normas da oratória, a alegoria assemelhava-se a uma metáfora deslocada, primando pela correção e adequação do discurso. Essa finalidade foi transfigurada ao longo da Idade Média, vinculando-a ao decoro e à moral, convenção modificada no Romantismo quando a alegoria encontrou seu ocaso. (PEREIRA, 2013, p. 272)

Rosa Martelo defende em seus estudos que a poesia portuguesa a partir da segunda metade do século vinte se caracteriza pela progressiva “secundarização do papel da metáfora e pela construção de um modo de expressão essencialmente alegórico” (MARTELO, 2009, p.

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13). Um dos fatores que pode ter contribuído para viabilizar esta passagem foi a revalorização crítica da alegoria no século XX empreendida por pensadores como Walter Benjamin, Paul de Man e Craig Owens, conforme destaca a autora.

Walter Benjamin em seu estudo sobre o Barroco, Origem do drama trágico alemão (2013), leva a cabo esta reabilitação da alegoria, mostrando que ela teria recebido, durante o Romantismo, uma valoração negativa que a mantinha hierarquicamente inferior a outros modos de representação, condição que alimentava sua oposição ao símbolo e reforçava a supremacia deste devido ao contexto cultural da Alemanha classicista de Goethe e Schiller: “Não é possível conceber contraste maior com o símbolo artístico, o símbolo plástico, a imagem da totalidade orgânica, do que essa fragmentação amorfa que é a escritura visual do alegórico. Nisto o Barroco revela-se como soberana antítese do Classicismo [...]” (BENJAMIN, 2013, p. 187).

A “intenção” alegórica, nos ensina o filósofo alemão, coincide com o desejo de expressar um mundo de fragmentos e ruínas, um mundo de fraturas, de quebras, do qual tomamos conhecimento na poesia de Ruy Belo, dizemos nós, através da experiência da margem. Mas não só. Trata-se de uma experiência do fragmentário que também se verifica no nível da expressão. A expressão alegórica se alinha a uma perspectiva poemática mais prosaica e formalmente “diluída”, algo que se pode verificar na adoção definitiva do poema longo na fase final de sua obra, em que se destaca, nesse sentido, o poema-livro A margem da alegria (1974)5.

Até 1973, em Transporte no tempo, ainda coexistiam em um mesmo livro poemas longos e curtos, sendo exemplo destes últimos o poema “Gaivota II”, composto por um único verso.

No artigo “O olhar do alegorista na poesia portuguesa contemporânea”, Rosa Martelo refaz o percurso benjaminiano de valorização da alegoria, que consiste em esclarecer que “a alegoria […] não é uma retórica ilustrativa através da imagem, mas expressão, como a linguagem e também a escrita. ” (BENJAMIN, 2004, 176 apud MARTELO, 2009, p. 13), para defender que a poesia portuguesa atual manifesta uma crescente abertura à “expressão”, ou “intenção”, como distingue o filósofo alemão, alegórica, dotando o poema, diz a autora, de um “funcionamento alegórico”. Um pendor alegórico que se verifica na arte de modo geral: “No que respeita à estética contemporânea e às vanguardas artísticas que, de certa maneira a inspiram, parece terem-se despedido do símbolo concebido (classicamente) como forma

5 A obra O problema da habitação – alguns aspectos (1962) também é considerada pelo autor como um poema único, mas respeita em sua estrutura interna a unidade de cada poema, sendo estes intitulados de modo independente, algo que não ocorre em A margem da alegria (1974).

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orgânica. Preferem a alegoria (a montagem, a colagem, o ready-made, etc) como forma mais adequada para exprimir a visão niilista e conflituosa da realidade” (VELOTTI, 2003, p. 20)

Diferentemente do símbolo, que na origem grega symballein significava “juntar” (D’ANGELO, 2003, p. 322), denotação em que fulgura aquele desejo de união por meio do “instante místico” a que o filósofo da aura (ou melhor, da queda da aura) recorre para distinguir o funcionamento da temporalidade alegórica – “A medida de tempo da experiência do símbolo”, diz Benjamim, “é a o instante místico” (2013, p. 176) –, a alegoria dispõe de um andamento temporal “livre de uma dialética correspondente” (BENJAMIN, 2013, p. 176). “Com a alegoria”, acrescenta Martelo, “estamos, portanto, perante um modo de expressão que reconhece a descontinuidade e que, além de reconhecê-la – e esta é uma diferença essencial –, dela fala sem conceber a possibilidade de a resgatar” (MARTELO, 2009, p. 17).

Detendo-se nesses tópicos no ensaio “Alegoria, fragmento e montagem nos poemas longos de Ruy Belo”, Martelo (2015) propõe, aproximando as poéticas de Pessoa-Campos e Ruy Belo, que na poesia do autor de “A autêntica estação” vislumbramos a mesma consciência pessoana da ineficácia dos “symbollos” e anuncia ainda que

[...] talvez exista, nas obras de ambos, uma relação de pressuposição recíproca entre a presença da alegoria e o recurso ao verso longo, e sobretudo ao poema longo, com tudo quanto estes têm de experiência de dissolução da estrutura que permitiria ao poema em si mesmo contrapor-se como forma àquela perda que anuncia no plano existencial, e mesmo antológico. (p. 115).

A correspondência entre o gesto alegórico e o uso progressivo do verso e poema longos na poesia de Ruy Belo ilustra bem os pontos de vista de 1) Fernando Pinto do Amaral, que a considera “um dos mais decisivos lugares de passagem entre a década de 60 e 70”; e de 2) Martelo, que defende, como mencionamos no início desta seção, que as décadas de 60 e 70 na poesia portuguesa se filiam, em alguma medida, respectivamente, à revisitação de uma tradição modernista de vanguarda e de uma linhagem que renuncia as radicalizações vanguardistas, “como se voltássemos a Baudelaire” (2007, p. 39) e à sua mundividência alegórica. A obra de Ruy Belo é, em alguma medida, testemunha desses dois momentos da poesia portuguesa e opta ao final por uma modulação verbal mais reflexiva, meditativa, torrencial, algo entre a narração e a reflexão, mas que se compõe, no entanto, de fragmentos para dizer com linguagem que equivalha um “tempo de homens partidos” (ANDRADE, 2015, p. 112).

Em “O astro baço – a poesia portuguesa sob o signo de Saturno”, ensaio que data da década de 90, João Barrento discute a presença da melancolia na poesia portuguesa e sua

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crescente manifestação que se verifica a partir da 70, período em que mais acentuadamente se manifesta a dita “pós-modernidade” ou “princípio do declínio da modernidade” em Portugal. Reunindo posicionamentos críticos que se filiam à perspectiva de inserção da poesia portuguesa desse período em uma “constelação saturnina”, o germanista português parte da concordância com os pontos de vista de Joaquim Manuel Magalhães, Fernando Pinto do Amaral e Eduardo Prado Coelho, mas ressalva que embora tais leituras constatem a “entrada em cena de ‘uma nova sensibilidade’” (BARRENTO, 1996, p. 83), não se procurou “determinar o seu lugar de sentido próprio a partir de uma perspectiva mais ampla [...]”(1996, p. 84). A partir daí, propõe então um fundamento histórico para esta sensibilidade:

Na verdade, o nosso tempo português – e europeu – poderia situar-se, historicamente, adentro de um processo cíclico de alternância entre crise e euforia civilizacional, em que vimos vivendo desde os alvores da Idade Moderna; E também a literatura europeia tem vindo, desde esse século XVI da secularização, do Humanismo e da Reforma – altura em que precisamente a elegia na tradição greco-latina era também um poema de júbilo, êxtase e encontro, surge na sua forma moderna de poema da perda e do lamento –, a apropriar esse sentido histórico e subjetivo, da perda, particularmente em momentos “críticos” recorrentes da nossa história moderna. São momentos de crise em que algumas grandes “certezas” chegam ao fim [...], períodos como o fim da Idade Média e o processo subsequente de “secularização e auto-afirmação” (Hans Blumenberg), o pré-romantismo, e os Romantismos europeus, a fase da gestação da Modernidade estética que desemboca no Fin-de-Siècle, ou momento “pós-moderno”. (BARRENTO, 1996, p. 85-86).

Sobre o contexto português, diz (apoiando-se ao final em versos do poeta-crítico Joaquim Manuel Magalhães, um deles referindo-se, curiosamente, ao “abandono ordenado da periferia”):

A poesia portuguesa, em particular na última década, vem respondendo a mais esta crise através de uma forma muito própria de reação à aceleração das aquisições técnico-instrumentais da civilização, ou lúdico-hedonistas de um quotidiano que não se pensa. Nela se acumulam, subliminarmente, como convém à escrita poética, indícios vários da perda e da ausência [...], que se configuram em momentos nostálgicos e em poéticas de teor elegíaco. [....] A melancolia – e a sua expressão poética na elegia – emerge recorrentemente em situações históricas como a de Portugal (e da Europa) de hoje, em que a total dessolidarização das relações e a saturação (mediática) das existências pela banalidade transforma todo o tecido social num grande “baldio dos afectos” onde, “no abandono ordenado da periferia”, “às vezes acordamos felizes”, para logo, ao abrir “a blindagem do quarto”, ouvirmos “os tijolos, a tinta, as escadas, o corrimão / a sangrar”. (1996, p. 86, grifos nossos).

A melancolia, conforme João Barrento nos ajuda a ver, está relacionada a esta “crise da Modernidade” que encontra seu ponto máximo no fim do século. No tocante ao gesto alegórico como expressão lírica deste colapso, “as alegorias”, como afirma Benjamin, “são as estações

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na via crucis do melancólico” (apud BARRENTO, 1996, p. 86). Alguns poemas longos de Ruy Belo constituem-se em alegorias de uma subjetividade partida por terem em seu interior um funcionamento fragmentário de tempo, espaço e perspectiva que aponta para uma relação descontínua entre sujeito, mundo e linguagem6.

Ao falar da melancolia, Barrento não deixa de mencionar também aspectos contraditórios intrínsecos ao desenrolar da Modernidade relativamente ao Progresso. O que se verifica na relação entre a promessa de progresso e melancolia no contexto da modernidade tardia é o conflito entre, de um lado, “uma vontade geradora de grandes aquisições materiais” (BARRENTO, 1996, p. 89) e, de outro, uma consciência lutuosa cada vez mais acentuada de falência, revelada por “uma imaginação que vem dando forma estética ao sentido subliminar da perda” (BARRENTO, 1996, p. 89). Este fundo contraditório de intensificação de uma atmosfera lutuosa, de certo modo, proporcional ao desenvolvimento técnico-material das civilizações ocidentais, projeta uma das faces da melancolia presente nas suas definições mais corriqueiras, que é o seu caráter ambíguo, ou melhor, dual: “sentimento de vaga e doce tristeza que compraz e favorece o devaneio e a meditação” (HOUAISS, 2009). A melancolia pode conjugar em uma mesma definição atributos capazes estruturar paradoxos, algo que em maior ou menor medida, sempre está presente quando dela se fala, seja teórica ou artisticamente. Lembremo-nos a exemplo disso da acedia medieval descrita por Giorgio Agamben: “trata-se de uma perversão da vontade, que quer o objeto, mas não a via que a ele conduz”. (apud AMARAL, 1992, p. 128).

Em Na órbita de Saturno (1992), Fernando Pinto do Amaral dedica ensaios à presença da melancolia na literatura portuguesa. Percorrendo as definições de melancolia desde a Antiguidade até as descrições patológicas da psiquiatria e psicologia modernas, o crítico busca demarcar dialeticamente os contornos positivos e negativos atribuídos a tal estado para retirá-la de uma reputação clínica difamatória e, dando relevo à associação entre atividade intelectual e melancolia, abordá-la, assim, no domínio da estética e da literatura. Nesse ensaio, em que mais detidamente se ocupa das conceptualizações da melancolia, o que Amaral busca ressaltar é a noção de melancolia como “estado de alma paradoxal” dotado, muitas vezes, de alguma indefinição (algo que até mesmo as designações das correntes da psicologia do seu tempo denunciam ao nomear transtornos que se aproximam da personalidade melancólica como borderline, literalmente limite, fronteira, em inglês). Ao se debruçar sobre esta matéria na poesia beliana em “No limiar da ‘terra da alegria’ – alguns aspectos da melancolia na obra de

6 Relação investigada na dissertação Ruy Belo: um corpo que se escreve com a paisagem, de Aline Duque Erthal (2012).

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Ruy Belo”, Fernando Pinto do Amaral cumpre seu recorte temático sem, no entanto, negligenciar a “dupla face” desta poética que, distribuída entre duas décadas emblemáticas para a poesia do século XX em Portugal, conservou da primeira “certo entusiasmo”, mas prenunciava já aquele “desencanto” mais visível no decênio seguinte. (AMARAL, 1992, p. 91-92). A leitura de Amaral é, portanto, sensível aos aspectos marginais tanto da melancolia, quanto da poesia de Ruy Belo, algo que nos interpela já de entrada com o uso da palavra “limiar” no título do trabalho.

De fato, a “musa dual7” do autor de Despeço-me da terra da alegria por vezes

assalta-nos desinibida: “Alterno a alegria com a dor / na pureza da prece perturbada / participo da angústia e do prazer/ em tanto desespero quando aspiro / Ando em prosperidade e aflição / sou um homem de júbilo e de pena / e rio tanto quanto mais choro” (BELO, 2004, p. 234). No tocante à melancolia, a poesia beliana pode ser lida como uma longa despedida “da terra da alegria”. Ela surge como paisagem afetiva do desamparo em um grande número de poemas nos quais podemos visualizar imagens de queda, perda e desgaste, todas elas conjugadas a fim de dizer uma única e grande ausência. Nas obras iniciais, Aquele Grande Rio Eufrates (1961) e O problema da habitação – alguns aspectos (1962), este desamparo se plasma num longa e solitária conversa com um Deus sempre ausente:

PARA A DEDICAÇÃO DE UM HOMEM Terrível é o homem que o senhor

desmaiou o olhar furtivo de searas ou reclinou a cabeça

ou aquele disposto a virar decisivamente a esquina Não há conspiração de folhas que recolha

a sua despedida. Nem ombro para seu ombro quando caminha pela tarde acima

A morte é a grande palavra desse homem não há outra que o diga a ele próprio É terrível ter o destino

da onda anónima morta na praia (BELO, 2004a, p. 23)

O desabrigo do homem órfão de Deus resvala a todo momento na finitude humana, como uma prolongada súplica ao modo do Jesus crucificado e moribundo: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste? ” (BÍBLIA, 2012, p. 1756). Nos livros posteriores, essa ausência

7 Referência ao título da antologia Guerra Junqueiro: a musa dual, de 2016, organizada por A. M. Pires Cabral, que dividiu, na sua organização interna, a obra do poeta Guerra Junqueiro (1850-1923) em duas partes, sendo uma engajada, envolvida em problemas de cunho social, e a outra bucólica e mística.

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penetra o cotidiano, infiltrando-se nos mais triviais objetos do uso diário. O poema “Nada consta”, de Homem de palavra[s] (1970), é, nesse sentido, paradigmático:

Falta-me a folha cinco

E entretanto a barba foi crescendo a minha barba veio crescendo ferozmente indiferente à morte de um ou outro amigo às letras protestadas aos desgostos domésticos às viagens lunares às convenções às lutas Quando as coisas se erguem contra o homem se eriçam agressivas contra ele

nem ao poeta basta o parapeito das palavras Eu por exemplo homem de pouco tempo trazido pelos dias aqui estou

Continuo a dizer: se alguma coisa há que podias perder e ainda não perdeste de que já a perdeste podes estar certo Falta-me a folha cinco

[...]

(BELO, 2004a, p. 323)

Se no poema antecedente a palavra “folhas” pode estar a se referir a elementos vegetais, aqui fala-se da ausência da folha “número cinco”. Com uma dicção, em alguma medida alegórica, a subjetividade melancólica dos poemas de Ruy Belo vale-se, nesse fragmento, de uma simples folha perdida para expressar, em verdade, o desamparo existencial do homem. Trata-se de um olhar alegórico reflexivo sobre sua própria hermenêutica, pois desvenda para o leitor seu sentido “oculto”: “[...] se alguma coisa há / que podias perder e ainda não perdeste / de que já a perdeste podes estar certo”.

A melancolia raramente aparece nomeada na lírica beliana, mas ela está, como se verifica nos poemas citados, a todo momento dita nestas imagens elegíacas de ausência. Caso diferente ocorre com a alegria, o “entusiasmo” de que fala Fernando Pinto do Amaral, que aparece com a importância de título em livros e poemas8. Ela aparece nomeada, evocada de

modo explícito, o que pode sugerir uma espécie de chamamento por meio da palavra.

Além desta “impossível alegria” evocada pela palavra, há também aquele “entusiasmo”, mais ligado ao veio político que a poesia beliana foi tornando progressivamente mais visível, mas que também se manifesta em forma de uma obstinada e irrestrita afirmação da vida e do ser. País Possível e Transporte no tempo, ambos de 1973 – em vésperas da Revolução dos Cravos – testemunham essa tensão entre a consciência melancólica de “um homem que, ao longo da vida, tem pagado caro o preço por haver nascido em Portugal” (BELO, 2004b, p. 139) e o compromisso de ter sempre “os olhos postos no futuro, no dia de amanhã, quando houver

8 A palavra alegria aparece no título das obras A margem da alegria (1974) e Despeço-me da terra da alegria (1978) e dos poemas “Alegria sem nome” e “Esta rua é alegre”.

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mais justiça, mais beleza sobre esta terra” (BELO, 2004b, p. 10). Nesse caso, o positivo afirma-se diante do negativo, a alegria afirma-afirma-se frente à melancolia, como um “apesar de”, uma alegria eminentemente política, no sentido spinoziano de aumento da potência de agir.

Estas são as margens em que se tocam melancolia e alegria na escrita de Ruy Belo. Fernando Pinto do Amaral chega a questionar em seu ensaio se “o próprio autor terá se apercebido dessa dupla face da sua poesia” (1992, p. 92). As constantes referências, em sua poesia, à imagem de que nos servimos para estruturar esta reflexão nos permite pensar que sim. A margem será uma espécie de imagem que concentra a consciência dessa duplicidade, mas também da ambiguidade, da indecisão, do paradoxo, da perplexidade diante do mundo. É comum localizarmos o sujeito poético da lírica beliana à beira-mar, ou à beira-mágoa, se transportarmos tal imagem para o campo da afetividade, “na orla da praia” (recuperando aqui um verso de Pessoa citado por Belo em “Da poesia que posso”). O poema “Nau dos corvos”9

é, nesse sentido, representativo: “Nau parada de pedra que tanto navega / e há tanto está no mar sem nunca a porto algum chegar / nau só a ocidente e todo o mar em frente. ” (BELO, 2004b, p. 92). A dialética de espaços opostos se abre a um paradoxo que se forma logo no primeiro verso: uma nau “parada” que “tanto navega”. A nau, símbolo de veículo e deslocamento na tradição lírica portuguesa, aparece aqui imóvel, atracada entre a terra e o mar.

Não intentamos, neste momento da dissertação, esgotar a apresentação de tais imagens nessa poética; muitos outros poemas mobilizam tais imagens e trataremos de alguns deles nos capítulos seguintes. O que se objetivou no presente segmento foi indicar a diversidade de planos em que se pode enxergar e explorar a margem na obra de Ruy Belo. Cumpre-nos agora investigar, a partir das margens que desenhamos, as relações entre melancolia e alegria na subjetividade lírica do autor.

9 O poema “Nau dos Corvos” faz referência ao rochedo homônimo, situado no Cabo Carvoeiro, no Peniche, que leva tal nome por se assemelhar a uma embarcação e servir de abrigo às aves marinhas que ali fazem pouso.

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3. A MARGEM DA MELANCOLIA

3.1. “Um não sei quê, que nasce não sei onde”

Atribui-se a Saturno tudo que ocupa uma posição à parte na sociedade. Luiz Costa Lima, Melancolia

“Quem quer que reflita sobre a melancolia”, adverte Luiz Costa Lima citando palavras de Jack Piegeaud, “sabe ou deve saber que não será original” (apud LIMA, 2017, p. 16). Uma observação que se multiplica quando se tem em mira a literatura e, mais especificamente, a lírica portuguesa. Trata-se de uma condição que impõe algumas restrições, tendo em vista a larga bibliografia que se já ocupou do tema, mas que não impossibilita, no entanto, revisitarmos alguns lugares já conquistados sobre o assunto através de estudos mais recentes. Além de levar a searas já visitadas, a melancolia é por vezes definida por ser dotada de alguma indefinição (seja na sua leitura histórico-social, seja na relação conflituosa que estabelece entre sujeito e objeto), fator que se reflete na variedade de manifestações, causas, consequências e tratamentos que já foram relacionados a ela. Vê-se, portanto, que tal estado esteve sempre envolvido por uma bruma de indefinição e ambiguidade. É esta qualidade de objeto instável que vamos perseguir ao longo do breve percurso histórico que traçaremos.

Na dupla condição de médico e literato por formação, Jean Starobinski realizou importantes estudos dedicados à melancolia. Dada sua formação, a abordagem que faz frequentemente associa os dois campos do saber. Em “História do tratamento da melancolia”, de 1960, perfaz a trajetória da condição melancólica ao longo dos séculos. Em Melancolia: literatura (2017), Luiz Costa Lima destaca, com a finalidade de tecer aproximações entre as afecções melancólicas e o discurso literário, a particularidade de Staronbinski distinguir já na Antiguidade uma dupla concepção de melancolia, localizando sua aparição não só na tradição médica hipocrática, mas dando relevo também à sua aparição na tradição homérica. Sabe-se que a primeira investigação sistemática do estado melancólico no Ocidente a que comumente

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as investigações históricas se reportam é a do fisiólogo grego Hipócrates (460 a. C. – 370 a. C). Seu sistema dos quatro humores contribuiu para que a melancolia estivesse frequente e negativamente atrelada a uma causalidade fisiológica que conferia a esse estado afetivo a qualidade de doença do corpo. Starobinski, ao analisar um fragmento de Ilíada, “em vez de procurar um argumento médico-filosófico, ou seja, uma causalidade biológica”, diz o autor de Melancolia: literatura (2017), apoia-se em explicação “de cunho discursivo. Trata-se de consignar pelo signo verbal ou plástico o modo de estar do melancólico” (LIMA, 2017, p. 20).

O estudo de Costa Lima nos interessa primeiramente por investigar a melancolia conceitualmente no que tange à sua associação e manifestação na literatura e, depois, pôr em revista os principais momentos de teorização e historiografia da condição melancólica. É a partir dele que vamos indicar alguns pontos relevantes para nossa discussão da história da melancolia, à guisa de introdução. Como já foi dito acima, a primeira teorização a respeito do tema na Antiguidade a que a literatura produzida a respeito se volta é a fisiológica formulada por Hipócrates. Enquanto enfermidade do corpo, o humor melancólico tinha relação direta com a bílis negra e podia estar associado a problemas como hemorroidas, convulsão e até mesmo cegueira. Em tais exemplos, chama atenção o fato de “ser a melancolia compreendida em termos puramente fisiológicos” (LIMA, 2017, p. 18), na medicina de Hipócrates, “todas as causas são físicas” (STAROBINSKI, 2016, p. 32).

Ao tratar do tema na Idade Média, Costa Lima destaca que parte do quadro interpretativo da melancolia na Grécia Antiga permanece: “Mantida por Galeno a caracterização da melancolia como uma moléstia, com frequência de efeitos graves, a sua incidência era tida como decorrente da dominância ou da combustão de um dos humores, a bílis negra” (LIMA, 2017, p. 21). Nesse período, ela migra para o campo da moralidade, a Patrística e a Escolástica conferem a ela um sentido ético-religioso. Com o apoio de Giorgio Agamben, o autor destaca ainda o caráter ambíguo das afecções melancólicas - a esta altura sob o nome de acédia, a melancolia religiosa: “a acédia não é somente uma fuga de..., mas uma fuga para..., que se comunica com seu objeto pelo modo da negação e da carência” (apud LIMA, 2017, p. 25). Do período medieval, Starobinski vai destacar o tratamento laboral da melancolia religiosa. A cura para o taedium vitae consistia em “ocupar” e “cansar” o corpo: “O homem laborioso escapa de ser assediado pelo tédio, pela vertigem do tempo vazio; resiste às tentações de uma ociosidade culpada” (2016, p. 64).

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É na Renascença de Marsilio Ficino (1433-1499) que ela ganha a componente astrológica. Sem excluir de todo a tradição hipocrática ainda influente, a astrologia acrescenta os valores de “concordância entre o micro e o macrocósmico” por analogia, a influência dos astros na vida terrestre. Tratava-se de um tipo de influência que afetava não só o corpo, mas também à alma: “os gestos do corpo, os saltos e as danças, decorrentes das concepções da imaginação feitas por nós mesmos; as concepções e os movimentos regulados da imaginação; os discursos coerentes da razão; as serenas contemplações do entendimento” (FICINO, 2012, p. 173 apud LIMA, 2017, p. 28). A melancolia entra, então, na tão referida órbita de Saturno. Astro de grandes proporções, ligado “aos que habitam ‘as alturas sublimes’”, enquanto Júpiter, nos informa o autor, é por aqueles que “escolhem uma vida comum” (LIMA, 2017, p. 29). A partir daí, incluindo nisso a importância dos Problemata XXX atribuído a Aristóteles (384 a. C – 322 a. C), “escrito em que, pela primeira vez, o temperamento melancólico é associado à personalidade de exceção” (LAGES, 2002 p. 31), intensifica-se, em contexto renascentista, a relação entre gênio e melancolia: “Atribui-se a Saturno tudo que ocupa uma posição à parte na sociedade; a Júpiter, o que antes favorece a vida comunitária. É significativo que a conjunção do legado platônico-aristotélico [...] com a herança hipocrática conduzisse tanto à negação da melancolia como síndrome de doença como a própria moderação da genialidade” (LIMA, 2002, p. 29).

O Renascimento, “idade de ouro da melancolia” para Starobinski (2016), engendra a “melancolia-temperamento”. Enquanto doença que poderia atingir o corpo e a alma, desde a Grécia antiga havia para ela duas possibilidades de tratamento, uma medicinal e outra filosófica. O duplo phármakon da doença era responsabilidade por vezes do médico, por vezes do filósofo. Sobre isso, convém acrescentar as palavras de Susana Kampff Lages para começarmos a articular o percurso histórico da melancolia às aproximações metafóricas que sustentam a estrutura do presente trabalho:

Ao longo de sua história, o tema da melancolia tende a ocupar regiões de fronteira: é tratado sobretudo em reflexões que levam em conta as doenças do corpo e da alma humana como intimamente interligadas e, muitas vezes, por um elo que é ele mesmo um mecanismo de tradução, isto é, a afecção do corpo sendo tradução de uma disposição anímica, e vice-versa. (2007, p. 32, grifos nossos).

São as pistas desta caracterização da melancolia como lugar “de fronteira” que nos interessa perseguir. Sua representação nas artes plásticas também torna visível essa associação. Nesse sentido, é paradigmática a representação pictórica de Edvard Munch na tela Melancolia

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(1892)10. O pintor norueguês retrata-a segundo sua representação tradicional ao longo da

história da arte, cuja expressão mais celebre é o anjo alegórico de Dürer em Melencolia I (1514)11. Na melancolia de Munch, um sujeito, trajando negro, olha para baixo apoiando seu

rosto em uma das mãos. É de notar, porém, a paisagem de fundo que divide o quadro ao meio em dois espaços. Neste, e nas demais variações realizadas entre 1891 e 1894, essa paisagem é a orla de uma praia. Cabe destacar também, como nota Benjamin, “o mar como horizonte da ‘Melancolia’ de Dürer” (2013, p. 155). Sobre seu quadro, Munch escreve:

Cambaleio ao longo da beira do rochedo – quase tombo – mas me lanço em direção ao campo, às casas – aos montes – às pessoas e luto com esse vivo mundo da humanidade – porém estou destinado a retornar ao caminho sobre o rochedo. Estou certo de que vou cair da margem – mesmo assim eu me lanço de volta à vida e “a humanidade. Mas devo retornar à senda do rochedo. É a minha senda – até que eu tombe nas profundezas (apud FERREIRA, 2014, p. 172 grifos meus).

A melancolia é o lugar da margem. Ou, invertendo a formulação a nosso favor, a margem é, frequentemente, o lugar da melancolia. Essa paisagem afetiva ganha na representação de Munch, como vimos, uma composição marginal. Um modo, talvez, de concebê-la que se comunica com suas acepções mais primitivas. O sujeito melancólico oscila, alça limites, desvirtua a harmonia, o equilíbrio, valores fundamentais para se manter a saúde de acordo com medicina hipocrática.

Uma vez relacionada à atividade intelectual, a margem da melancolia pode estar desenhada no abandono das atividades, mesmo em presença dos objetos que clamam pelo retorno a elas, um eterno “estar entre”. O português Fernando Pinto do Amaral, citado agora como poeta, foi bastante sensível, como (e com) Dürer, a esse aspecto:

MELENCOLIA I

Ia no quinto ou sexto cigarro. A cabeça, deixava-a

encostada à mão esquerda, à maneira do anjo. Asas, nunca as tivera,

e em vez de um compasso uma simples futura ultra-fina já com pouca

tinta.

Impossível saber onde acaba o arco-íris, chegar ao fim da escada, àquele céu desde sempre perdido e mesmo assim tão preso ao seu olhar.

A seus pés jaz o mundo – instrumentos

10 Anexo 1. 11 Anexo 2.

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