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Marginalidade e revalorização do espaço

PARTE II – OS ESPAÇOS DA VELHICE NA LITERATURA

Capítulo 1 – O espaço-tempo na escrita

1.1. Marginalidade e revalorização do espaço

Antes mesmo de falar de espaço na literatura, mais concretamente na ficção, impõe- se pensar no próprio espaço literário; e falar nele, reconheçamo-lo, é pisar em terreno não completamente definido. Caracterizado pela interdisciplinaridade, abarca distintos significados e conjunturas. Para Brandão (2013), podemos estar a referir-nos ao espaço descrito, à forma como essa descrição se processa, ou mesmo a um espaço que, “apesar de não ser em si literatura, possui características literárias, revela-se propício a que a literatura se exponha” (Idem: 03). Mais do que aspectos topográficos, profere, “trata-se

de questionar não somente o espaço vivenciado, mas também a habilidade de imaginar o espaço além da sua vivência” (Idem: 05).

Nesse contexto, Bourneuf/Ouellet (1976) atentam para a relação “implícita ou explícita” observada, “por um lado, entre o autor e o leitor virtual, e, por outro, entre um narrador e um narratário, quer este seja designado ou somente subentendido” (Idem: 100). Butor (1974), por sua vez, em “O espaço no romance”, concebe a cidade como “um conjunto de trajetos” (Idem: 45), trajetos estes que a presença do homem interpreta, conferindo-lhe organização e sentido.

Em comum, os autores destacam a necessidade de um coletivo de significados de conhecimento mútuo entre leitor e escritor para que se viabilize o diálogo com a obra. Na literatura, esse processo vem permeado de uma sensibilidade moldada continuadamente e conscientizada quando da escrita e da leitura ou, não raro, percorrendo mesmo de forma inconsciente os atos de criação e interpretação. O objeto assim representado é múltiplo, com uma diversidade delineada pela presença do tempo e do espaço. No momento da leitura, inclusive, espaços e objetos do universo presente do leitor, nem sempre percebidos com nitidez, diluem-se, envolvidos por um outro espaço, o das evocações e emoções que o texto escrito desperta:

Assim como toda organização das durações do interior de uma narrativa ou de uma composição musical: retomadas, voltas, superposições, etc., só pode existir graças à suspensão do tempo habitual na leitura ou na audição, assim todas as relações espaciais que mantêm as personagens ou as aventuras que me são contadas só podem atingir-me por intermédio de uma distância que eu tomo com relação ao lugar que me cerca. (Butor 1974: 40)

É uma viagem pelo romance que Butor descreve como “périplo”, ou seja, uma “circum-navegação” em torno a algo que envolve uma ida e um retorno, um retorno que nos traz modificados e, dessa maneira, também modifica o espaço que nos cerca. A relação espacial própria com o lugar em que se encontra o leitor ressurge alterada no absorver de uma obra que leve para visões alheias, o olhar do outro sobre o espaço interfere, assim, na visão desse espaço em um momento posterior à leitura: “a distância romanesca não é somente uma evasão, ela pode introduzir no espaço vital modificações inteiramente originais” (Idem: 41).

Como já ressaltado por Bakhtin (1997, 2014) e Foucault (1997, 2004), a localização de uma cena, mesmo a simples presença ou ausência de um objeto, reorientam a representação e a leitura. Cenários amplificam sentidos e acrescentam informações de forma sutil, sem a exigência de digressões detalhadas. Há nuances, expectativas e ações envolvidas no espaço que se mostra visível, as distâncias, maiores ou menores, são trajetos que se diferenciam conforme quem os percorre, são espaços possíveis ou universos não acessíveis a todos, são concretude e significado. Hierarquizações sociais, aspectos culturais e épocas históricas podem ser vislumbrados no acesso ou vedação a determinados recintos, acarretando descrições não formuladas, mas pressentidas pelo leitor103.

Na configuração da personagem idosa, esta se constitui como um corpo em meio a um espaço, em uma interação em que ambos, corpo e espaço, reagem mutuamente e se modificam, tornando-se voz e significado na trama que relatam. Há uma consciência, plena ou parcial, quanto ao impacto que o cenário elaborado provocará no leitor, um direcionar que se concretiza pelos deslocamentos inseridos, ocorram esses em planos espaciais próximos e efetivos, como o quarto, o jardim, a cidade, ou em planos distantes e imaginários, nos quais o exótico e o sonho predominam. O movimento mostra-se, assim, ferramenta útil para marcar espacialidades e, igualmente, a passagem do tempo (Bakhtin 2014; Bourneuf/Ouellet 1976; Ryan 2014).

É no século XVIII que a presença do espaço na literatura cresce em importância, ampliando-se ainda mais no século seguinte, impulsionada pelas novas descobertas e possibilidades científicas observadas no período. Com o Naturalismo e a difusão das

103 Os trajetos diferenciados seguidos pelos carteiros que atuam na comunidade onde vive Otto, o idoso

protagonista de Noites de alface, de Vanessa Barbara (2013), denunciam modos muito distintos de perceber e vivenciar o quotidiano. A disciplina rígida com que Aidan, carteiro substituto, segue o tracejado previamente definido fascina não apenas Otto, mas seu vizinho, Taniguchi, este nos poucos momentos de lucidez que lhe permite um processo de demenciamento que o acometeu na velhice tardia. Assim como os trajetos seguidos pelos carteiros, espaços delimitados nos jardins das casas, pacotes enviados de uma porta a outra, áreas de acesso amplo ou restrito, frases não concluídas e camisas demasiado amassadas mostram- se elementos cúmplices da história que Otto, com dificuldades de se adaptar após a morte da esposa, tenta inutilmente decifrar: “Quando Ada morreu, as roupas ainda não tinham secado. O elástico das calças continuava úmido, as meias grossas do avesso, nada estava pronto. Havia um lenço de molho dentro do balde. Os potes de recicláveis lavados na pia, a cama desfeita, os pacotes de biscoito abertos em cima do sofá – Ada tinha ido embora sem regar as plantas. As coisas da casa prendiam a respiração e esperavam. Desde então, a casa sem Ada é de gavetas vazias” (Idem: 9).

teorias deterministas, consolida-se o seu papel, levando a mudanças significativas e concedendo à natureza uma posição de destaque como componente capaz de interligar personagem, sentimento e ação: “A revelação das personagens pelo meio ambiente é uma concepção presente em muitos romances importantes do século XIX, como um processo de caracterização entre outros ou como uma teoria de pretensões científicas” (Bourneuf/Ouellet 1976: 151).

Porém, as críticas posteriores ao determinismo refletem-se na literatura e, no final do século XIX, ocorre um novo deslocamento, a descrição do espaço sai de um papel central determinante da ação para uma condição secundária, torna-se percebido a partir do agente dessa ação, o texto mostrando “com frequência o espaço ambiente através dos olhos de uma personagem ou do narrador” (Idem: 152). Essa oposição às teorias deterministas encontrou eco na tendência historicista de cunho temporal, o que levou a que o espaço em estudos literários recebesse pouca atenção na primeira metade do século XX, só voltando a exercer um papel priorizado após a virada espacial104 dos anos 1980- 1990.

Em artigo publicado no ano de 2010, intitulado “O lugar teórico do espaço ficcional nos estudos literários”, a pesquisadora Gama-Khalil atenta para essa presença reduzida, exemplificando com nomes referenciais, como Vítor Manuel de Aguiar e Silva (2002) que, no seu livro Teoria da Literatura, ao abordar o romance, concede atenção privilegiada a elementos como personagem e narrador, em detrimento da parte conferida à espacialidade. Da mesma forma, menciona Philippe Hamon, em Categorias da

narrativa (1976), no qual o estudo do espaço aparece em um capítulo centrado na

descrição, com uma “perspectiva negativa” e subalterna, sendo visto como acessório, sem uma função verdadeiramente essencial ao contexto da obra.

104 A “virada espacial”, ocorrida nos anos 1980-1990, constituiu-se na valorização de abordagens espaciais,

com o incremento do debate de questões ligadas aos processos de urbanização e globalização, o que trouxe o espaço para o centro de estudos não apenas na área da geografia, mas nas mais diversas disciplinas do conhecimento. Brandão (2013) salienta a força do movimento junto às Ciências Humanas, “que passaram, com frequência considerável, ora a se dedicar explicitamente à questão do espaço, ora, de modo mais difuso, mas não menos significativo, a fazer uso de um léxico de inspiração espacial. Chega-se a cunhar a expressão spatial turn – virada espacial – que abarca não somente as transformações de natureza propriamente teórica relativas ao termo, mas também aquelas vinculadas à vivência do espaço como categoria empírica, socialmente determinada e determinante” (Idem: 49).

Essa é uma ideia que acompanha abordagens encontradas em outro texto referencial em termos de teoria da literatura, “Narrar ou descrever?”, de Georg Lukács (1965), no qual se contrapõe a noção estática do espaço com o poder dramático do enredo, da narração. Gama-Khalil chega a afirmar:

Todas as exposições teóricas que, para tratar do espaço, seguem a oposição lukacsiana entre narração e descrição, desconsideram a riqueza da espacialidade na ficção literária e, em consequência, não conseguem servir de base teórica para a análise de muitas obras em que o espaço não é mero integrante da cena descritiva. (Gama-Khalil 2010: 220)

A marginalidade observada em Lukács mantém-se na crítica estruturalista formalista. Todorov, Genette, Bourneuf/Ouellet seguem abordagens similares, defende Gama-Khalil, com a narração envolvendo os acontecimentos, de teor dramático e temporal, e o espaço ligado à descrição de objetos e seres. Mudanças significativas só começariam a ocorrer a partir dos estudos de semiologia literária divulgados por Yuri Lotman em La stucture du texte artistique, de 1973: “Lotman, ao contrário dos outros teóricos, vê no espaço um elemento que aloja em si os múltiplos sentidos de uma cultura” (Gama-Khalil 2010: 221).

Antje Ziethen, em “La littérature et l’espace”, de 2013, reforça essa posição. Segundo a autora, “a dimensão temporal da história” foi amplamente priorizada pelos pesquisadores até a primeira metade do século, com a ressalva de duas vozes destoantes: Mikhail Bakhtin e Yuri Lotman, para quem “l’organisation de l’espace fictionnel est spéculaire de la vision du monde qui s’y rattache” (Ziethen 2013: n.p.).

Bakhtin (2014) e Lotman (1973) enfatizariam o poder do espaço como capaz de traduzir a sociedade na qual se insere, seja pela sua presença, seja pela sua exclusão do texto. Bakhtin, com seu conceito de cronotopo, observa a forma como o tempo insere-se no interior da obra por meio da interpretação do espaço apresentado pelo autor, ocasionando uma espécie de “condensação artístico-literária” entre percepções espaciais e temporais da realidade. Por sua vez, a abordagem de Lotman prioriza as “relações espaciais” em detrimento do tempo e da “dimensão metafórica” da espacialidade contida em um texto. Ziethen (2013) destaca esse como um aspecto que diferencia os dois autores, ainda que se aproximem em suas perspectivas de reconhecimento da importância do espaço em uma época na qual a história direcionava seu enfoque à temporalidade.

Após um período em que a teorização literária tendeu a valorizar o texto como uma construção linguística autônoma, revalorizam-se, sobretudo a partir do último quartel do século XX, as relações entre os textos e a experiência humana do mundo. Saindo de uma posição acessória, o espaço reassume uma função protagonista dentro da narrativa, aproximando-se da noção de representação e distanciando-se do papel de mero elemento descritivo.

Essa nova abrangência da análise estética alarga as expectativas dos estudos, acrescentando potencialidades a partir da vinculação entre espaço real, fictício e imaginário, como o afirma Brandão (2013: 35), frisando que a dimensão do espaço, decorrente de observações empíricas, de teor geopolítico e econômico, encontra-se em um discurso espacial que engloba áreas distintas do conhecimento humano.

Exemplificativas são as investigações efetuadas com base na semiótica, nas quais a política, a filosofia e a antropologia, dentre outras, se encontram interligadas, conjugando questões físicas e simbólicas, as últimas com sentido fortalecido no universo literário, por sua importância como instrumento de criação da obra ficcional. Se essa multiplicidade de perspectivas acarreta fragmentação da análise, também amplia possibilidades de percepção do mundo, viabilizando a abertura de caminhos antes inatingíveis (Kirchof 2003: 64).

A partir da proximidade entre distintas áreas, em especial a interligação da literatura com a geografia, constroem-se instrumentos comuns de compreensão, mesmo um pensar geográfico-literário, como pode ser observado nos trabalhos de pesquisadores ligados à geocrítica, à geografia literária, ao pensamento-paisagem e à geopoética, entre outras linhas de investigação difundidas de modo crescente a partir dos anos 1980-1990 (Ziethen 2013).

Soja (1993) enfatiza esse aspecto, ressaltando a centralidade exercida pelo espaço em debates contemporâneos: “Uma geografia humana nitidamente pós-moderna e crítica vem tomando forma, reafirmando impetuosamente a importância interpretativa do espaço nos confins historicamente privilegiados do pensamento crítico contemporâneo” (Idem: 18). Uma redefinição que não deve ser considerada de modo simplista, alerta, e sim compreendida como um todo diversificado e complexo. A centralidade agora concedida

ao espaço constitui-se a partir de fontes e perspectivas heterogêneas, nunca isoladas, expressa questões políticas, econômicas e culturais e reflete a instauração de novas formas de pensamento (Idem: 60)105.

Brandão (2013) atenta ainda para uma linha denominada “espaço-pensamento”, a qual, não excluindo o político, “aborda o espaço como sinônimo de pensamento, o que implica inicialmente uma discussão de cunho filosófico” (Idem: 42). Aqui, o autor inclui as pesquisas efetuadas por Bachelard, Deleuze e Guattari, a partir de, por um lado, um prisma metafísico, ligado ao plano das ideias, e, por outro lado, um plano hermenêutico, com base no sistema relacional humano, “enfatizando não o Ser, mas o Estar”(Idem: 43). Sublinha-se que a presença do espaço em um romance não é aleatória, mas ordenada a partir de um objetivo predefinido, é artifício. Contudo, em sua artificialidade, permite uma melhor percepção do real. Nesse contexto, Ziethen (2013) registra o caráter interdisciplinar das abordagens literárias mais recentes, constituindo-se a metalinguagem uma de suas principais características. Para a autora, a ideia do espaço como mero elemento decorativo ou pano de fundo já foi rejeitada pelas pesquisas mais recentes sobre o tema. O espaço impõe-se, assim, como elemento partícipe, agente significativo da trama, e deve ser pensado como “moteur de l’intrigue, véhicule de mondes possibles et médium permettant aux auteurs d’articuler une critique sociale” (Idem: n.p.).

A partir da observação do modo como espacialidades influenciam e são influenciadas pela vivência humana e pelo relato dessas vivências, permite-se vislumbrar o encadeamento entre conexões temporais e geográficas, o significado que o espaço adquire no quotidiano do idoso e a sua representação por meio do texto ficcional.

Há um teor político em qualquer perspectiva de análise que seja adotada, com a necessidade de conscientização quanto a aspectos de inclusão e exclusão presentes no uso de conceituações espaciais. Ainda que o olhar do escritor busque a universalidade e queira

105Brandão (2013), em suas análises acerca do imaginário diversificado atualmente abrangido pela noção

de espaço, segue uma linha similar à de Soja (1993). Para o pesquisador brasileiro, os conceitos de “livro” e de “cidade” assumiram tal proporção simbólica que se mostram capazes mesmo de sintetizar “o ideal da razão humana”, sendo, “de certa forma, dois dos mais representativos signos da modernidade ocidental” (Brandão 2013: 37). Assim, traz para a perspectiva literária as suas discussões sobre o espaço, abordando sua presença e simbologia no universo ficcional.

abranger o máximo possível do que forma o homem, a sua percepção de espaços parte de significados próprios que esperam encontrar eco no leitor, com uma amplificação de vozes diversificadas que tanto pode resultar em uma rede profícua de ressonância como em isolamento.

Escrever sobre o espaço/lugar ocupado por um idoso é descrever um universo que se expande até abarcar toda a sociedade na qual se encontra integrado, é um microespaço que contém o macro, como já afirmava Bachelard. Percebido por meio dos sentidos físicos, o espaço impregna-se de significados e, na passagem do olhar para a reflexão, pode tornar-se simultaneamente lugar da palavra e palavra do lugar. Processo similar ocorrerá no momento da leitura ( Bachelard 2008; Brandão 2013; Tuan 1990).

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