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O satírico como marca da velhice no trovadorismo galaico-português

PARTE II – OS ESPAÇOS DA VELHICE NA LITERATURA

Capítulo 2 – Nos primórdios: o espaço secundário da velhice

2.1. O satírico como marca da velhice no trovadorismo galaico-português

É na Idade Média que começam a ser difundidos os primeiros textos literários portugueses, ainda que - cabe ressalvar - em face da situação política vigente no período, estejamos falando de um cancioneiro galaico-português. Consideradas como constitutivas primeiras e essenciais da literatura em Portugal, as cantigas trovadorescas, lírico- amorosas ou satíricas, alcançam ali seu auge tardiamente, em um período histórico já de fragilidade do sistema feudal. Assim, diferenciam-se motivações, conteúdo e estruturas, refletindo um cenário distinto dos contornos cortesãos e feudais e abarcando uma concepção amorosa idealizada. O amor apresenta-se, mais do que como fisicalidade, um sentimento abstrato e propulsor do bem e da virtude (Lang 2010; Lopes 1994; Spina 1985).

Referências à velhice são quase inexistentes nas cantigas de amor e de amigo, focadas na juventude e mais direcionadas ao galanteio e ao jogo amoroso. Porém, nas satíricas, de escárnio e maldizer, que se caracterizam pelo tom depreciativo, os males provocados pela passagem dos anos, em especial no relativo ao físico, mostram-se material eficaz para ilustrar os defeitos morais denunciados pelo trovador.

Priorizando o riso e o ridículo, as cantigas satíricas contrapõem-se à percepção da “virtude” e do sofrimento como elementos do divino e do libertador. Seus versos relatam uma realidade de vícios e hipocrisia; valores moralizantes são, não raro, subvertidos, e o lírico-amoroso incorpora tons de obsceno e maledicência. Segundo Lopes (1994), ao observarmos suas personagens e referências históricas, torna-se percetível a proximidade entre os assuntos abordados e a sociedade na qual transitavam os trovadores e jograis e que era por eles descrita:

Descontando os grupos que para eles (e também para o seu público) eram periféricos, como burgueses, vilãos, mouros ou judeus, trovadores e jograis parecem realmente fazer nas suas chufas uma espécie de jornalismo do quotidiano, com uma relativa liberdade de movimentos quanto aos alvos a atacar. (Idem: 216ss.)

Ressalvando a “variedade de formas, de temas e de recursos” encontrada nas cantigas satíricas, o que dificulta levantamentos mais padronizados, Lopes (1994) elabora um quadro comparativo dos temas mais frequentes nessas composições. A velhice, ainda que não presença majoritária, encontra-se referida e é mote que dá origem à chufa em várias cantigas, predominando a sátira à velha devassa.

Na Idade Média, a valorização feminina liga-se ao seu papel como reprodutora e objeto erótico do masculino. É um cenário no qual a mulher idosa é duplamente derrotada: com o passar dos anos, perde sua capacidade reprodutiva e distancia-se do conceito de beleza vigente, ultrapassada pela mulher jovem, a cujo casamento ou relação amorosa o homem pode aspirar caso possua boas condições financeiras.

Aragão (2003) amplia o levantamento efetuado por Lopes (1994), registrando cantigas que, se não citam diretamente, “permitem entrever, ainda que colateralmente, a imagem que os compositores faziam da mulher grosseiramente denominada velha” (Aragão 2003: 366). A mulher idosa torna-se, na época, encarnação da feiura e do grosseiro, ao qual se acresce uma dose extra de injúria e obscenidade quando possuir um corpo ainda sexualmente desejante ou demonstrar pretensões de exercício de poder no espaço público.

Nesse contexto, Lopes e Aragão mencionam, entre outras, cantigas como “Achei Sancha Anes encavalgada”, de Alfonso X, na qual a imagem da mulher remete a um fardo de palha; “Marinha Negra, desventuirada”, de Pero Garcia Burgalês, cujas expressões tornam-se de tal modo explícitas e rudes que beiram os limites do grosseiro e do obsceno; ou “Elvir’, a capa velha dest’aqui”, de Pedr’Amigo de Sevilha, que se utiliza da ambiguidade e do sarcasmo ao relatar as dificuldades enfrentadas por uma mulher em sua tentativa de vender uma velha capa já muito usada114.

“Fea, velha e sandia”, de João Garcia de Guilhaude, é um dos textos mais conhecidos do cancioneiro satírico galaico-português. Supostamente elaborada em resposta às queixas de uma dama por não ter recebido louvores adequados, a cantiga

114“Achei Sancha Anes encavalgada”, de Alfonso X - CBN 458;

“Marinha Negra, desventuirada”, de Pero Garcia Burgalês - CBN 1384 e CV 993; “Elvir’, a capa velha dest’aqui”, de Pedr’Amigo de Sevilha - CBN 1658 e CV 1192.

aponta três características capazes de desmerecer uma mulher: a feiura, a velhice e a estupidez:

Aí dona fea, fostes-vos queixar Porque vos nunca louv' en meu trobar Mais ora quero fazer un cantar En que vos loarei toda via; E vedes como vos quero loar: Dona fea, velha e sandia! Dona fea! Se Deus me pardon! E pois avedes tan gran coraçon Que vos eu loe, en esta razon, Vos quero ja loar toda via; E vedes qual será a loaçon: Dona fea, velha e sandia! Dona fea, nunca vos eu loei En meu trobar, pero muito trobei; Mais ora ja un bon cantar farei En que vos loarei toda via; E direi-vos como vos loarei: Dona fea, velha e sandia!115

Joan Vaasquiz de Talaveira apresenta, inclusive, a velhice como o maior temor feminino. Em sua cantiga “Maria Leve, u se maenfestava”, a protagonista confessa e lamenta seus pecados, contudo, mais do que a situação de pecadora vivida na juventude, lamenta a velhice que agora carrega:

Nom sei hoj'eu mais pecado[r] burguesa de mim; mais vede-lo que mi mais pesa: sõo velh', ai capelam!

Sempr[e] eu pequei, des que fui foduda pero direi-vos per que [som] perduda: sõo velh’, ai capelam”116

Pero da Ponte, por sua vez, escreve “Marinha Crespa, sabedes filhar”, na qual uma soldadeira idosa busca abrigo do frio e é rechaçada, com a alegação de que não deve ser concedido o mesmo abrigo e cuidado a um boi velho do que o que se dá a um no auge de suas forças:

115 “Fea, velha e sandia”, de João Garcia de Guilhaude – CBN 1486 e CV 1097. 116 “Maria Leve, u se maenfestava”, de Joan Vaasquiz de Talaveira – CBN 1548.

Marinha Crespa, sabedes filhar eno paaço sempr’ un tal logar, en que an todos mui ben a pensar de vós; e poren diz o verv’ antigo: “a boi velho non lhi busques abrigo.” E no inverno, sabedes prender logar cabo do fogo, ao comer, ca non sabedes que x’ á de seer de vós; e poren diz o verv’ antigo: “a boi velho non lhi busques abrigo.” E no Abril, quando gran vento faz, o abrigo este vosso solaz,

u fazedes come boi, quando jaz eno bon prad’; e diz o verv’ antigo: “a boi velho non lhi busques abrigo.”117

Aqui, é importante observar, como o faz Fernanda Falcão, em O vervo satírico, de 2012, a dupla leitura que essa cantiga permite, a partir de sua integração no ambiente medieval. Para a autora, se as referências à soldadeira aparentam agressividade, podem, também, denotar um sentido mais benevolente, como reconhecimento da sua capacidade para sobreviver, graças à experiência, nas mais diferentes situações.

Da mesma forma, Falcão alerta para que não seja esquecida a finalidade lúdica das cantigas satíricas, a busca do riso do público a partir de versos embasados em um conteúdo crítico: “essa crítica não é, necessariamente, agressiva nem moralista, mas é uma chufa que se apoia no objetivo burlesco das sátiras galego-portuguesas”(Idem: 59). O que, afirma, leva mesmo à autocrítica presente em algumas obras, nas quais o jogo de palavras, os trocadilhos e a ironia utilizam a própria figura do autor como mote satírico para provocar o escárnio e o riso118.

Contudo, ainda que a leitura dessas obras assuma hoje uma conotação mais agressiva do que aquela que representavam na sociedade medieval, as expressões “velha” e “velho” aparecem, nas cantigas satíricas galaico-portuguesas, sempre ligadas a um sentido injurioso de insulto; a descrição da decadência física humana constitui-se, não

117“Marinha Crespa, sabedes filhar”, de Pero da Ponte – CBN 1628 e CV 1162.

118 Este aspecto é referido por Lopes (1994), que considera alguns textos de Martin Moxa e de João Airas

de Santiago como “auto-satíricos”, composições nas quais o trovador “fala dele próprio como se de um outro se tratasse, uma curiosa forma de despersonalização” (Idem: 61).

raro, em um elaborado cenário artístico no qual se mesclam o grosseiro, o obsceno e o caricatural (Lopes 1994; Tavani 2002).

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