• Nenhum resultado encontrado

Maria da Conceição, vítima do desembargador Pontes Visgueiro

Em 1934, Evaristo de Moraes, naquele momento membro do Conselho Técnico da Sociedade de Criminologia, propunha-se a comentar alguns processos célebres da história brasileira. A série tinha início com um caso instaurado em 1873 contra o desembargador Pontes Visgueiro273 e a intenção do famoso advogado, que começara a profissão como rábula ainda no final do século XIX, era mostrar que a condenação (galés perpétuas, substituída por prisão perpétua com trabalho por ser o réu maior de 60 anos)274 foi um erro judiciário, pois as ações do acusado eram decorrência de uma alienação mental, que se confirmaria a partir de um “exame médico-mental”,275 que não fora realizado na época.

A intenção do autor era demonstrar a completa inocência de Pontes Visgueiro que confessou o crime de homicídio do qual foi vítima Maria da Conceição, sua amante. Para isso, traçava um resumo da vida pregressa do desembargador, as circunstâncias em que o crime foi cometido e uma análise detalhada do julgamento e dos debates entre o advogado de defesa, Franklin Doria, e o procurador da Coroa. A monografia é baseada, em grande parte, nas notícias da imprensa da época e a partir de uma compilação do processo feita pela revista O Direito. O crime envolvia um desembargador da província do Maranhão e foi julgado em uma única instância, no Supremo Tribunal de Justiça, no Rio de Janeiro. Vejamos alguns pontos relevantes do “caso Pontes Visgueiro” pela lente de Evaristo de Moraes

A análise que o levou a apontar o “erro judiciário” cometido na época tem fundamento no caráter de exceção que o crime apresentava na vida do desembargador. Assim, para corroborar a sua tese, Evaristo de Moraes não somente se baseou em resultados científicos,

273 Evaristo de Moraes. Um erro judiciário: O caso Pontes Visgueiro. Rio de Janeiro: Ariel Editora, 1934.

Agradeço a Joseli Maria Nunes Mendonça pela indicação (e empréstimo) deste livro.

274 O advogado de defesa Franklin Doria considerou o resultado do julgamento uma vitória, pois o crime

cometido pelo desembargador era punido, no grau máximo, com a pena de morte. A acusação foi inclusa no artigo192 do Código Criminal, combinado com os parágrafos nº 4, 6, 8, 10, 13, 17 do artigo 16, que previa o “homicídio com agravantes”. O libelo da acusação pedia a pena máxima ao réu.

mas na vida do desembargador até o momento do crime. O primeiro fato a ser ressaltado é de natureza física: desde a infância, ele possuía uma deficiência auditiva que o levara à surdez total aos 40 anos de idade. Segundo o advogado, este problema poderia se relacionar a uma alienação de “cunho degenerativo”.276

Citando diversos autores que realizaram trabalhos acerca da “loucura na velhice” ou das “características da degeneração e alienação mental”, Evaristo de Moraes tece um argumento amparado pela ciência. O procedimento analítico, porém, ocorre somente no último capítulo - “A mais plausível interpretação psiquiátrica do crime”. Os estudos citados são todos posteriores ao ano de 1873, alguns baseados no “caso Pontes Visgueiro”.277 Conclui, portanto, que o desembargador era um alienado e irresponsável perante a justiça. Por outro lado, como sempre sofreu dessa alienação, “adaptara-se ao ambiente”:

Assim se percebe que, a despeito de tal ou qual adaptação do viver do desembargador ao ambiente, ele não permaneceria normal, como se poderia crer. O automatismo de certos gestos, de certas palavras, de certas deliberações encobre, as mais das vezes, grave enfermidade mental em marcha. É a lição dos competentes.

Ainda aqui, neste triste episódio da nossa crônica criminal, se confirmam as observações científicas.

Deplorável foi que não se houvesse procedido, àquela época, ao exame médico-mental do desembargador.278

Pontes Visgueiro, que não era uma pessoa normal, passava a apresentar sinais da sua anormalidade de “cunho degenerativo” com a vellhice279 e como conseqüência de uma relação amorosa com uma mulher que não se encaixava entre os padrões adequados de virtude. Aliás, muito pelo contrário: o seu apelido era “Mariquinhas devassa”. Evaristo de Moraes se baseava na argumentação da defesa para as suas conclusões. Porém, com o acréscimo dos “versados em Psiquiatria”:280

276

Idem, ibidem, p. 212.

277 Entre os estudos, Viveiros de Castro. Atentado ao Pudor (Estudo sobre as aberrações do instinto sexual) de

1895, a tese do Dr. Estácio de Lima acerca da “Capacidade Civil e seus problemas médico-legais” de 1926 e Afrânio Peixoto. Psico-patologia Forense, 1931 (3ª edição).

278

Evaristo de Moraes. Op.cit., p. 219. Grifo no original.

279 Evaristo de Moraes comenta alguns estudos sobre velhice: Krafft-Ebing. Médicine Légale des Alienés, edição

de 1911; Depré. Traité de Pathologie Mentale, 1903 ; Thivet. La folie chez les viéllards, 1889 ; Alexandre Páris, Caracteres de degenerescence et alienations mentales, 1909 ; Ball, Leçons sur les maladies mentales, 1880-3. Ver, especialmente, entre pp. 210-4.

Não era Pontes Visgueiro alienado pelo simples fato de haver atingido tal idade. Tudo indica que ele o era por uma constituição de cunho degenerativo, a qual, talvez, pudesse, também, explicar a surdez que o acabrunhava desde a infância e se tornara completa e definitiva, cerca dos 40 anos.281

A psiquiatria foi a grande auxiliadora do advogado para corroborar o “erro judiciário” ocorrido no julgamento do desembargador. Utilizando-se de diversos autores posteriores ao caso, concluía que o crime apresentava uma “feição anômala”. Portanto, questionava: “se tal feição assim se impõe, irresistivelmente, porque não admitir a classificação psiquiátrica do crime?282 De fato, a interpretação de Evaristo de Moraes diferia em citações e estudos mais elaborados em torno da psiquiatria, mas não se distanciava tanto do argumento do advogado de defesa no julgamento. Este era baseado no efeito que as paixões poderiam produzir em um indivíduo. Assim, depois de expor os debates entre defesa e acusação, Evaristo de Moraes comenta:

Em mais de um tópico do discurso que oferecemos à admiração dos leitores, força é reconhecer que o advogado de Pontes Visgueiro empregou argumentos, de índole doutrinária, ainda utilizáveis, com mais sólidos elementos, nos tempos d’agora.283

Evaristo de Moraes instaurava, em 1934, a certeza da absolvição (e do erro judiciário) de um julgamento antigo a partir de estudos que mostravam a “evolução” dos métodos científicos para o auxílio da justiça. Publicar um estudo sobre esse caso era afirmar novas possibilidades que a ciência dispunha para se chegar a uma suposta verdade no Tribunal, mesmo que ela fosse baseada em conceitos subjetivos e individuais. Tais métodos, para Evaristo de Moraes, confirmavam os anteriores (que haviam sido utilizados pelo advogado de defesa), com o acréscimo de ferramentas mais adequadas para o exercício de argumentação da defesa em casos equivalentes.

Apesar da caracterização do acusado como um indivíduo que sofria de uma “grave enfermidade mental”, que se desenvolvia de forma lenta e atingia o seu ápice no homicídio inexplicável, ainda era relevante apontar o caráter de exceção do crime em comparação aos antecedentes do acusado. Desta forma, Evaristo de Moraes realiza o mesmo procedimento do advogado da época: tece longos comentários sobre a vida pregressa de Pontes Visgueiro, de

281 Idem, ibidem, p. 212. 282

Idem, ibidem, p. 216.

preferência com a comprovação de testemunhas e documentos que atestavam a sua sobriedade, competência e, acima de tudo, normalidade (em alguns trechos, a referência ao debate dos advogados é explícita). A questão era colocada, então, de maneira contraditória, pois como comprovar a normalidade do desembargador se ele já possuía características de “cunho degenerativo”?

De fato, ambas as explicações eram articuladas ao mesmo tempo. Como dizia o advogado, “certas circunstâncias”284 refletiam o comportamento inadequado ou imprimiam a “feição anômala do crime” e estariam ligadas às ações próximas ao evento criminoso. O crime de Pontes Visgueiro foi considerado um “crime horroroso” que chocou toda a cidade de São Luís do Maranhão. A análise dos antecedentes em comparação com as ações ocorridas durante o homicídio só era compreensível para os doutos em ciência e crime (assim como o era o desembargador) por uma completa ausência de “auto-crítica”:

Demais, bem analisadas certas circunstâncias anteriores, concomitantes e posteriores ao crime, sem custo se percebe que a auto-crítica do desembargador já falhava lamentavelmente, quando ele atraiu à sua casa a volubilíssima amante, para lhe dar o trágico fim demonstrado pelo processo.

A só idéia de a matar na própria residência, com a colaboração perigosa de um empregado de poucos dias, denuncia (em homem tão experiente da vida e habituado a apreciar, como juiz, casos de toda espécie) deficiência de raciocínio.285 Em oposição ao estranho comportamento de Pontes Visgueiro, o passado virtuoso do inesperado criminoso contrabalançava o seu repentino ato irracional:

Recordem-se: os precedentes familiares do desembargador; a sua duradoura e honesta atuação na magistratura; a sua rápida, mas acentuada, passagem pela deputação geral; a correção do seu procedimento para com a filha, espontaneamente reconhecida, educando-a com esmero e casando-a com um seu colega e amigo; o conceito em que era geralmente tido e que levara o governo imperial a tomar em consideração a sua surdez, ao acomodá-lo em função judiciária de alta responsabilidade, não o compelindo a se aposentar; a atitude de pessoas gradas do Maranhão e do Rio de Janeiro, trazendo à Justiça o testemunho da sua persistente estima para com o homem acusado de um crime que a toda gente horrorizara, as palavras significativas do severo procurador da Coroa, não se dedignando a confessar, no Supremo Tribunal, a antiga amizade que o unira ao matador de Maria da Conceição; enfim, tudo quanto o processo fornece no sentido da discordância do crime com a personalidade anterior do criminoso.286

284 Idem, ibidem, p. 216. 285

Idem, ibidem, pp. 216-7. Grifos no original.

Havia uma tentativa de relacionar o homicídio a um comportamento desviante, ou seja, anormal. Elaborava-se a imagem do desembargador como um homem que cometeu um desvio único e excepcional em comparação aos seus atos dignos do passado. Essa imagem divergia em relação às notícias da imprensa no ano de 1873, que corriam para mostrar que o fato de um desembargador premeditar e cometer um crime com tantos requintes de crueldade trazia-o para o lugar dos criminosos e tornava-o foco dos Fatos Diversos, com as características de uma personagem comum dessas colunas: diferente, diverso, fora da normalidade social. Uma das motivações da sensação ocasionada pelo caso na época tem relação com o envolvimento de um homem que deveria julgar e condenar criminosos e não ocupar o lugar de um criminoso.

Assassínio de Maria da Conceição. Perpretado pelo Desembargador José Candido Pontes Visgueiro no dia 14 de agosto de 1873 foi uma publicação do “processo e julgamento, inclusive a acusação e defesa produzidas perante o Supremo Tribunal da Justiça” e “segundo a compilação feita para a revista O Direito”. Essa publicação tinha algum alcance entre aqueles que não eram vinculados ao aparato policial e judiciário. Os julgamentos eram muito populares, assim como as notícias de crime e essa popularidade aumentou com o passar dos anos e a diversificação dos meios de comunicação.

O crime cometido pelo desembargador foi um desses grandes crimes que se transformou em foco de análise de diversos especialistas como, por exemplo, Viveiros de Castro, que o incluiu em seu estudo Atentados ao Pudor. Estudos sobre as aberrações do instinto sexual de 1895. O crime ainda ocupou páginas de diversos periódicos e foi inspiração para um romance publicado no Rio de Janeiro, ainda em 1873 - Maria da Conceição, a vítima do Desembargador Pontes Visgueiro. O autor, F.R.,287 caracteriza-o como um romance histórico.

Portanto, a publicação do processo e julgamento não pode ser avaliada apenas como uma descrição factual de eventos relacionados ao crime, pois detinha um sentido subjetivo intrínseco à sua forma de produção que fazia com que ela se inserisse em um determinado mercado de produção de narrativas que tinha crimes e criminosos como elementos fundamentais. A relação com a revista O Direito, da qual “compilou” os eventos descritos,

287 O prefácio é escrito por C. Imolopy, que é o pseudônimo de Olímpio Barcelos, autor de alguns versos e um

“drama histórico” sobre a Revolução Mexicana. Augusto Victorino Sacramento Blake. Dicionário bibliográfico brasileiro. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1883-1902, 6º volume.

criava uma atmosfera de veracidade dos dados fornecidos,288 essencial para a sua inserção enquanto relato de algo que aconteceu de fato.

A descrição do crime, feita pelo Chefe de Polícia Miguel Calmon du Pin e Almeida, conta-nos, em detalhes, os eventos que se desenrolaram durante o crime. Segundo ele, houve premeditação, fato que o leva a incluir os réus (o desembargador e seu principal cúmplice, Guilhermino) no artigo 192 do Código Criminal.289 O promotor concorda com o Chefe de Polícia e defende o grau máximo, devido às “circunstâncias agravantes”, entre elas, “abuso de confiança e ajuste, e, além destas, as do motivo reprovado, superioridade em sexo, forças e armas, premeditação e surpresa”290

Pontes Visgueiro havia conhecido Maria da Conceição na época em que ela pedia esmolas com a mãe nas ruas de São Luís. A relação amorosa entre os dois começara cerca de um ano antes do crime, com os incentivos da mãe de Maria da Conceição. De acordo com as testemunhas da defesa, pessoas que conviviam com o desembargador em São Luís, o desembargador tinha uma “violenta paixão”,291 que o fazia, “em pleno dia, [correr] pelas ruas atrás de Maria da Conceição, mulher de costumes os mais depravados, e em cuja casa estava a qualquer hora do dia, e não duvidava, até, ele próprio ir à procura de médicos para tratá-la em suas enfermidades”.

O desembargador da Relação não poupa palavras a respeito do estado alterado de Pontes Visgueiro: era uma “paixão violenta e que praticara atos próprios de alucinação”.292 O primeiro conferente da alfândega comenta: “vivia inteiramente apaixonado por tal mulher, a ponto de aparecer em casa dele testemunha e beber cognac repetidas vezes, não tendo, aliás, costume de fazê-lo, acender cigarros, passeando como dominado de uma idéia, e

288 Segundo Evaristo de Moraes, a revista O Direito “publicou ‘ipsis verbis’, todas as peças do processo, bem

como os discursos de acusação e de defesa.” Evaristo de Moraes. Op.cit. p. 8.

289 O artigo 192 referia-se a “Matar alguém com qualquer das circunstâncias agravantes mencionadas no artigo

16, nº 2, 7, 10, 11, 12, 13, 14 e 17”. Código Criminal do Império do Brasil pelo Dr. Carlos Antonio Cordeiro, Rio de Janeiro, Tipografia de Quirino e Irmão, 1861, pp. 142-4. Esta obra está digitalizada e disponível em «http://books.google.com/books», acesso em 3.08.2008.

290 Assassínio de Maria da Conceição. Perpetrado pelo Desembargador José Candido Pontes Visgueiro no dia

14 de agosto de 1873. Rio de Janeiro: Tipografia Teatral e Comercial, 1874, p.27 (Libelo acusatório do Desembargador Promotor da Justiça contra o Desembargador da Relação do Maranhão José Candido de Pontes Visgueiro). As circunstâncias agravantes fazem parte do artigo 16 do mesmo código. O crime foi considerado grave e corrobora todas as circunstâncias agravantes, com exceção da nº 13, do artigo 16. A diferença entre o artigo 192 e 193 está unicamente na inserção das “circunstâncias agravantes”, às quais modificam a pena máxima: no artigo 192, pena de morte; no artigo 193, galés perpétuas.

291

“Defesa”. Em Assassínio de Maria da Conceição..., p. 92.

concentrando-se sem proferir palavra, em uma cadeira, o que tudo ele testemunha atribuía à paixão de que se achava dominado”.293

Ainda outro afirmava: “que durante o tempo de suas relações amorosas com Maria da Conceição, o mesmo Desembargador sempre praticou atos de verdadeira loucura, atos esses que a todos surpreendia, porque ele, homem maior de 60 anos de idade, colocado em elevada posição social, geralmente estimado e benquisto por sua maneira de proceder como magistrado e como simples cidadão, infundia respeito a todos, merecendo geral consideração”.294 Os testemunhos possuem coincidências relevantes: o desembargador “estava alucinado” em decorrência de uma “violenta paixão” e Maria da Conceição era uma “mulher perdida”, prostituía-se “com o proveito de sua mãe, mulher solteira”.295

O crime ocorreu no dia 14 de agosto de 1873. O desembargador confessou o assassinato e o nome de seus cúmplices: Guilhermino (que receberia dinheiro pelo serviço) e Luís, escravo de Pontes Visgueiro, que ajudou a enterrar o caixão (em troca da sua carta de alforria, que lhe foi concedida alguns dias depois). Houve premeditação, segundo o Chefe de Polícia, em conseqüência da encomenda de dois caixões, sendo um deles comprado durante viagem ao Piauí e o outro forrado de zinco e encomendado logo depois de seu regresso à capital da Província do Maranhão.

A publicação desse pequeno livro detalhando algumas partes do processo e julgamento de Pontes Visgueiro foi preparada para produzir um efeito sensacional. Desta forma, os dois relatórios do Chefe de Polícia do Maranhão iniciam a narrativa e o leitor não tem conhecimento de todas as partes do processo policial, com os depoimentos e interrogatórios na íntegra.296 Portanto, além dos dois relatórios do Chefe de Polícia ao Presidente da Província, estão descritos os doze testemunhos da “Formação de Culpa”, a defesa do acusado, os cinco testemunhos da defesa e os debates entre acusador e defensor. Inserir essa publicação como parte de um processo mais amplo de significados fornecidos ao crime revela que o sensacional

293 Idem, ibidem, p. 63. 294 Idem, ibidem, p. 61. 295

Idem, ibidem, p. 63.

296 As várias etapas do processo permitiam versões distintas, às vezes, da mesma testemunha. Essa prática podia

se efetivar nas delegacias, em que os testemunhos poderiam ser distorcidos ou forjados pelos policiais ou pelos próprios depoentes, que mudavam o depoimento de acordo com o interesse de piorar ou não a situação do réu. Sobre o assunto, ver Sidney Chalhoub. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, pp. 276-7 e 283-4, entre outros exemplos.

era criado com a ênfase em determinadas opiniões e a partir da seleção de narrativas que fornecessem tal significado.

Como veremos mais adiante, os relatórios do Chefe de Polícia seriam fonte e inspiração para a descrição detalhada do crime nos jornais e romance. A sensação criada por essa apropriação era surpreendente e inevitável. Porém, para que os significados possam ser expostos de maneira mais apropriada, cabem alguns comentários sobre o julgamento e a maneira de concepção do criminoso para os especialistas no assunto: juristas, advogados e especialista em medicina legal. A partir, claro, da pequena compilação do processo e julgamento.

O centro dos debates entre acusador e defensor de Pontes Visgueiro foi a adiantada premeditação do crime. Logicamente, ambos discordavam em relação ao assunto. O “horroroso espetáculo”,297 que se apresentava na descoberta do cadáver, mutilado para que coubesse dentro do pequeno caixão, enterrado no quintal do desembargador, foi impressionante para todos naquele momento.298 Da mesma forma, imaginar que tal espetáculo fosse decorrência de uma longa premeditação parecia inviável para a defesa, pois envolvia um homem que ocupava importante posição social e pública (relacionada ao cumprimento das leis e da justiça). Portanto, a defesa deveria provar que o crime fora cometido em conseqüência de uma “alienação mental”.299Além disso, que o réu estava “alienado” há meses (devido à longa premeditação) ou então que não houvera premeditação. Contra esse argumento pesavam as “provas dos autos”,300 em particular às encomendas dos caixões.

O desembargador assumia, depois da confissão, que esteve em um “estado alterado” durante os eventos que anteciparam e sucederam ao crime. Algumas atitudes eram incompreensíveis. Depois da aplicação do clorofórmio (que a deixara inconsciente) e da efetiva morte (causada por “feridas penetrantes no coração e estômago”, através de “violência

297 Assassínio de Maria da Conceição..., p. 2.

298 Pontes Visgueiro necessitou de proteção policial, pois houve inúmeros “ataques” à sua casa. Segundo nos

informa Franklin Doria: “Descoberto o homicídio da vítima, a indignação popular, quase sempre tão nobre nos seus impulsos, mas não raro apaixonada em seus desabafos, prorrompeu em excessos contra o acusado na cidade de São Luís. Por duas vezes grandes bandos de gente assaltaram-lhe a casa e a apedrejaram, arremessando projéteis para o interior da habitação e despedaçando as vidraças das janelas. Esses ímpetos chegaram a tal ponto, que foi preciso contê-los com a força pública.” “Defesa”. Idem, ibidem, p. 72.

299

“Defesa”, Idem, ibidem, p. 82.

com instrumento cortante e perfurante”)301 chegou-se à conclusão de que Pontes Visgueiro “mordia-lhe o corpo”.302 Do mesmo modo, impressionava a participação em uma festa de família logo após o assassinato e os “ajustes” feitos no cadáver para que coubesse na caixa. O

Documentos relacionados