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O carnaval flagrado

3.5 Masculinidade em xeque?

Por que ser ia o t r av est ism o t r adicionalm ent e a recor r ência m asculina m ais ululant e do car nav al? A r espost a t alv ez est ej a im plícit a nos j ogos de erot ism o decor r ent es da pr ópr ia fest a. No carnaval, não há regras. Todo o excesso é permitido. As relações sociais em períodos ordinários cast ram o m asculino em suas m anifest ações m ais exager adas. Ent re out r as coisas, ser um hom em br asileiro é ser com edido no m odo de falar, gest icular, dançar e de t r at ar os out ros. No imaginário masculino do brasileiro, não é permitido o exagero.

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O OLHAR DE PIERRE VERGER SOBRE O TRAVESTISMO NO CARNAVAL BRASILEIRO

Recife, PE - 1947

Em suas fot os de t ravest im ent o no carnav al, Verger par ece quer er sem pr e nos r essalt ar a cont r ar iedade exist ent e ent r e a est rut ur a pat riarcal da época e a nossa fest a de rua. Os negat ivos nos r ev elam os “ casais” passeando im punem ent e de br aços dados, desafiando qualquer lógica da est rut ur a social. As lent es exager am o que j á é. Reforçam o glam our ou o grot esco. Se est ão “ acom panhados” , o cont ext o é r espeit oso. Se sozinhos, fazem quest ão que os hom ens ex er çam um a liberdade de condut a sexual e levant em suas saias para quase mostrar os genitais.

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Ao se t r av est ir e agir com o m ulher, m uit os hom ens invert em seus padr ões de com por t am ent o ( inclusive os sexuais, afinal se t udo em nossa sociedade é desculpado pela “ cachaça de carnaval” , porque o hom oer ot ism o não seria?) . Esse fat o m er eceu algum as r eflexões feit as por Denílson Lopes sobre o t r avest ism o, j ogo de m áscaras e simulacro. Para o professor da UNB,

“ o t r av est i não é um a sim ples const rução int elect ual, que coloca

o ar t ifício com o um a cat egoria cent r al dessa sociedade de im agens, em que ident idades perform at ivas são const it uídas, bem ant es das at uais discussões sobr e cor po e t ecnologia. Não se t r at a aqui de falar de um out r o, est igm at izado e/ ou espet acular izado, m as do t r av est im ent o, com o algo que at r av essa nossos desej os e em oções, nossas incer t ezas e nosso lugar no m undo62.( ...) As possibilidades do j ogo que vivificam a subj et ividade pelo uso de m áscar as r eside na com pr eensão da natureza imagética da sociedade atual. A máscara não é disfarce de um v azio exist encial, m as um a t át ica de coexist ir num a sociedade onde o pr im ado é a velocidade63.( . ..) Sua busca pelo feminino não é out r a coisa senão a busca da andr oginia, da ambigüidade. A identidade como devir”64.

É j ust am ent e essa ident idade com o devir que difer encia a br incadeira dos hom ens ent r e si. Het eros e hom ossexuais encont r am - se m ist ur ados e t r av est idos. Cont udo quant o m ais “ fidedigna” for a car act erização, m aior ser á a ident ificação com o universo fem inino e, port ant o, m ais próxim o do universo gay. Sócr at es Nolasco consider a que

“ dos desfiles das ‘pir anhas’ aos bailes gay s, o com pr om isso com

a própr ia fant asia de ser um a m ulher delim it a o cam po par a a

62 LOPES, Denílson. E eu não sou um travesti também? IN:O homem que amava rapazes e outros

ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. pág 68

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idem. Pág 70

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classificação de quem é o ‘m acho’ e de quem é v eado, um a t ent at iva em pír ica par a dar duas significações ao que no im aginár io apar ece com o sendo variação da m esm a coisa: um a ident ificação m aciça com a m ulher , de m odo que o j ogo er ót ico faz- se mediante a indiferenciação de ser uma mulher se sabendo um homem”65.

A m ulher que apar ece nest as r epr esent ações é sem pre espalhafat osa, vulgar, ninfom aníaca e descont rolada. É a r epr esent ação do univer so fem inino pelo im aginár io m asculino. Os hom ens que se t r ansform am em gest ant es abandonadas, pr ost it ut as, fr eir as, colegiais, hav aianas, m elindrosas, ent r e out r as. A aut or ização carnav alesca possibilit a a r ealização das fant asias sem que os at or es sej am possuídos por elas. Tudo é apenas um a br incadeir a, m as que demanda uma licença social.

Nolasco aponta que é preciso

“ r epr esent ar par a com pr eender . Talv ez est a possa ser um a das

r azões pelas quais os hom ens se fazem passar por m ulher es. Por out ro lado, no carnaval obser vam os a car icat ur a não de qualquer m ulher , m as de um a ‘m ulher pir anha’, cuj o com por t am ent o é definido pela posse e pelo exercício da própria sexualidade. Est e com por t am ent o m asculino, apar ent em ent e cont radit ór io, é sinal da am bigüidade pela qual poder em os com pr eender a r epr esent ação que um a m ulher t em par a um hom em . No cot idiano, as queix as m ais cont undent es das m ulher es recaem sobr e at it udes violent as e de desvalor ização dos hom ens par a com elas. Cont udo, por m eio das m anifest ações cult ur ais, em difer ent es épocas e países, percebem os o desej o dos hom ens de ‘se passar por um a mulher’, ou ainda, o receio de em uma delas se transformar”66.

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NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 1995. pág137.

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Conclusão

Per cor r endo os cam inhos da form ação da ident idade m asculina br asileir a podem os concluir que Ver ger usou de sua sensibilidade e r igor pr ofissional para t r açar um r et r at o fiel do que se j ulgav a ser o br asileir o na década de 40. Ele est av a em plena consonância com o pensam ent o vigent e da época, m as conseguia ext r air algo m ais que o sim ples ‘aut om at ism o da gênese t écnica’ pr opõe. Ele ia m ais além que a visão elit ist a e pat r iar cal das t eorias de Gilbert o Fr eyr e e Sérgio Buarque de Holanda.

Sendo assim , ele vislum br a o hom em br asileiro em quase t odas as suas facet as. Prov a dist o est á na v ast a produção sobr e o nosso país, no qual o seu olhar de j ornalist a e et nólogo firm a os t raços m iscigenados e dá o poder de fala ao subalt er no. Se levar m os em cont a o que Spiv ak escreve em seu art igo “ Can t he subalt er n speak?” , isso seria im provável; pois, se discursasse, per der ia sua condição de subalt erno. Todavia, Verger par ece ignor ar Spiv ak e coloca seu olhar a serviço de um pr oj et o de const r ução de um a im agem ( hom o) er ot izada do hom em br asileiro. Um a im agem fet ichizada, m as sem m ácula, sem ferir a “ hom bridade” nacional. Nos descobr im os narcisos frent e aos retratos feitos pelo francês.

Por ir além das t eor ias propagadas por Fr eyr e e Buarque, o fot oj ornalist a dialoga com os t eóricos at uais, prov ando ser a sua pr odução dona de um a força de r epr esent ação m uit o m ais apurada do que sim plesm ent e o flagr ant e do m om ent o. Seus personagens são const ruídos dent ro de um cont ext o que t r ansit a ent r e a m alícia do desej o sexual e a r epr odução cult ural do am bient e t r abalhado. Poderia- se dizer que, j á na década de 40, Pier r e Verger explor a o br asileir o no ‘entrelugar’ de Hom i Bhabha ou no ‘hibridismo’ de Canclini.

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Com sensibilidade, Ver ger pr oduz fot os par a a r evist a de m aior circulação da mídia nacional flagrando o caráter brasileiro em sua festa m ais par t icular: o car nav al. Ele com põe o nosso ret r at o com os element os que lhe explicit am os sem saber . Ele nos desvenda com seu olhar agudo. Per cebe- nos nos det alhes. Fir m a o punct um onde não esper am os. Faz- nos r econhecer m os em m eio a orgia, ao caos, a t r ansgr essão. Most r a nosso rost o sem im por sua v er dade. Disseca- nos e nos deixa ser no dilema que nós próprios nos pomos. Insere em suas fotos a narrativa de nossa identidade.

Em suas fot ogr afias, Verger não coloca em x eque nossas cert ezas de hom em . Ele nos coloca hipót eses. Quando br incam os de ser m ulher , ele nos lev a a sér io. Sej a qual for a pr opost a: vulgar ou glam our osa, com port ada ou depr avada; suas lent es vão nos exager ar par a pint ar a car icat ur a da car icat ur a que fazem os de nós m esm os. O j ornalist a vai docum ent ar os dom inador es em sua hor a de fr agilidade, irreverência e descom pr om isso. Ele v ai nos m ost rar o lado fr aco da nossa corda. Não é à t oa que ele exibia um sor riso quando apont ava sua reflex para nós.

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