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Matização da política externa brasileira

2. POLÍTICA EXTERNA EM PERSPECTIVA HISTÓRICA

2.6 Matização da política externa brasileira

De maneira geral, a leitura desse longo período de tempo que se inicia em finais do século XIX e se encerra no limiar do XXI, com o término do mandato de Fernando Henrique e a eleição de Lula da Silva para a presidência, em 2002, pode ser periodizado a partir de algumas perspectivas que levam em consideração as etapas da política externa empregada.

Destacamos, em primeiro lugar, a perspectiva de Sato (1998) que identifica, a partir do governo Kubistchek, a ocorrência de pelo menos três inflexões (ou mudanças centrais) na condução diplomática. Houve, até meados dos anos 1950, a correspondência da política externa àquilo que ficou conhecido como “Paradigma de Rio Branco”, isto é, o alinhamento de nossas relações exteriores com as posições assumidas pelos Estados Unidos. A partir deste período e ao longo da década de 60, este centro pivotal da política externa passa a ser colocado em xeque, o que abriu novas perspectivas para a ampliação das

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relações exteriores além das considerações hemisféricas. Esta é, portanto, a primeira inflexão. Em decorrência desta, a segunda ocorre em meados dos anos 1970 e 1980, tendo como fundamento a ampliação propriamente dita das parcerias internacionais associada ao aumento e à diversificação da base econômica doméstica. Por fim, a terceira mudança decorre da percepção dos formuladores a respeito da crescente importância dos novos temas nas relações internacionais nos anos 1990, inseridos num contexto de globalização e interdependência entre os Estados, obrigando ao país a rever seu posicionamento tradicional e optar por novas vias de inserção externa.

Do ponto de vista econômico, Almeida (2012) estabelece distinções entre a fase colonial, que varia entre 1530 e 1822; a fase independente, que compreende o período entre 1822 e 1930; e, por último, a fase nacional, que vai de 1930 até os dias atuais. É uma forma de avaliar as formulações feitas e as políticas empregadas a partir de um denominador comum, qual seja, o modelo de desenvolvimento econômico assumido pelas elites governamentais. Evidentemente que essas matizações são genéricas e demasiado amplas, porém nos servem de apêndice para estabelecer, pelo menos parcialmente, as etapas pelas quais o desenvolvimento brasileiro percorreu ao longo de sua história.

Considerando com alta relevância o aspecto da aproximação/afastamento em relação aos Estados Unidos, Pinheiro (2010) propõe o entendimento da política externa brasileira em termos de duas principais matrizes (ou paradigmas) de inserção internacional: o globalismo e o americanismo. Para ela, a política externa brasileira teria oscilado, ao longo desse tempo, entre essas duas formas de perceber e agir no sistema internacional.

O globalismo deve ser encarado como o paradigma que enfatizava a necessidade de estabelecer relações multilaterais e a diversificar as parcerias políticas e econômicas do país, sem ater-se única e exclusivamente a uns poucos países. O entendimento comum era o de que quanto mais diversificado e abrangente o leque de relacionamento do Brasil, maior era o poder de barganhar por seus interesses. Já o

americanismo, em contrapartida, partia da noção de que os Estados Unidos eram o centro

do sistema internacional desde finais do século XIX e que, para o Brasil, por suas peculiaridades geográficas e econômicas, a aproximação junto àquela grande potência

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resultaria em ganhos indispensáveis, mormente se considerar o crescimento da capacidade de negociação e inserção internacional do Brasil com outros atores.

Além dessa distinção, a autora prossegue qualificando-a para as duas vertentes teóricas assumidas por cada uma delas de acordo com os momentos históricos. Assumiu-se, por exemplo, o americanismo ideológico, no qual havia a identificação, por parte dos governantes, de uma suposta convergência ideológica entre Brasil e Estados Unidos que desse razão para o estabelecimento de relações mais próximas. Por outro lado, o

americanismo pragmático pregava a ideia de que a aproximação deveria resultar do

entendimento de que a consecução de nossos interesses seriam melhores atendidos via aliança com os norte-americanos.

De modo semelhante, o globalismo também segue a tendência de qualificação, sendo matizado como hobbesiano ou grotiano. O primeiro diz respeito a uma leitura mais

hard do sistema internacional, isto é, que leva em consideração substancialmente a natureza

anárquica das relações internacionais e, subjacente a ela, o desenvolvimento de relações de poder entre os Estados como instrumento de política. Contrariamente a esta perspectiva, embora não a refute por completo, visto que continua a perceber o sistema como anárquico, o globalismo grotiano salienta a possibilidade de estabelecer relações mais normativas entre os Estados, baseadas em acordos de cooperação e entendimento mútuos e que a base de sustentação deste sistema estaria calcada em regras legítimas e acordadas por todos, além de que os ganhos de participação não seriam somente relativos, mas também absolutos.

Assim, sucintamente, o período fora dividido em quatro grandes “momentos” da política externa, entre eles: do início do século XX (com Barão de Rio Branco) até meados dos anos 1940, prevaleceu o paradigma americanista. Dos anos 1960 até o golpe militar, em 1964, em contraposição ao período anterior, tornou-se hegemônica a matriz

globalista. Do primeiro governo militar até meados dos anos 1970, precisamente até o

governo Geisel, o americanismo volta a ser protagonista. De Geisel até o final dos anos 1990, o globalismo volta à cena, quando, como a própria autora e Cervo (2002) salientam, institui-se uma “crise dos paradigmas”.

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Em termos mais qualificados, soma-se a essas divisões as seguintes matizações, segundo Pinheiro (2010): a) de 1902 a 1945, predominou o americanismo pragmático; b) de 1946 a 1951, prevaleceu o americanismo ideológico; c) de 1951 a 1961, retorno do

americanismo pragmático; d) de 1961 a 1964, inicia-se o globalismo hobbesiano; e) de

1964 a 1967, retorno do americanismo ideológico; f) de 1967 a 1974, volta do

americanismo pragmático; g) de 1974 a 1990, prevalece o globalismo grotiano; h) de 1990

a 2002, há, para a autora, uma crise de paradigmas, uma vez que nenhum tipo dessa classificação comporta o paradigma de inserção externa do país, ainda que, para nós, percebe-se um ensaio de globalismo hobbesiano e grotiano de acordo com as distintas circunstâncias que vão caracterizar a ação externa do Brasil até os anos 2000.

Outra maneira de distinguir as etapas pelas quais a formulação da política externa brasileira fora pensada e acionada é aquela proposta por Cervo (2002; 2008; 2010), em que o autor divide o período em quatro paradigmas, cada qual encerrando determinada ênfase nos aspectos de definição do modelo de desenvolvimento e do consequente estabelecimento da política externa. Podemos dividir, então: o liberal conservador, que compreende os anos 1810 e 1930; o desenvolvimentista, presente de 1930 a 1990; o normal, de 1990 a meados da mesma década; e, por fim, o logístico, de meados dos anos 1990 até o período atual.

Grosso modo, o paradigma liberal conservador era aquele em que predominava a prática de imposição das instituições e políticas das grandes potências aos países menores, principalmente suas colônias localizadas na periferia do sistema. O desenvolvimentista, por sua vez, surge a partir da crise global do capitalismo dos anos 1930 que possibilitou o impulso inicial de países médios – Brasil, incluso – no sentido da industrialização e do dinamismo econômico. Compreende políticas de incentivo à indústria, defesa da autonomia e soberania nacional e a definição de um projeto mais claro e estruturado de desenvolvimento econômico. O paradigma normal tem início na gestão Collor de Mello, cujas orientações econômicas e políticas sofriam cada vez mais pressão de ideias e correntes do pensamento liberal. A função do Estado, para esse paradigma, seria o de estabilizar a economia e proporcionar ambiente favorável ao capital estrangeiro e privado. Por fim, o logístico encontra sua origem em meados dos anos 1990 e se estabelece na

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combinação de uma política externa abrangente e universalista, ainda que liberal, com um plano de desenvolvimento econômico. Diferenciando-se do desenvolvimentista, o Estado entrega à sociedade o papel de empresário.

Por fim, é válido destacar o trabalho realizado por Saraiva & Valença (2012), em que apontam que a orientação da diplomacia brasileira desde o início do século XX, de busca pela consolidação de uma posição de relevância do país na política internacional, se fixa a partir de dois principais eixos: a busca por autonomia e, corolário, a ocupação de destaque no cenário internacional. Para os autores, estes dois eixos indicam a continuidade da política externa brasileira em torno de princípios gerais e que, combinados, ajudam a compreender os objetivos e perspectivas assumidas.

Diante disso, para os propósitos deste trabalho, apresentamos as principais linhas de atuação e distinção da política externa empregada ao longo do tempo. Embora se faça necessário uma caracterização mais nuançada e perfilada de cada período considerado, é interessante destacar o grau de permanência de alguns elementos constantemente presentes, entre eles o entendimento de que a política externa é ferramenta indispensável para o desenvolvimento econômico interno e o de que a busca pela autonomia na ação internacional são objetivos centrais.

No governo Lula da Silva, como será visto no próximo Capítulo, essas características estarão presentes e conformarão, juntamente com outras, a agenda externa de seu governo. Nossa hipótese de que este governou buscou suas orientações no passado, principalmente no período da PEI, será tratada com maior rigor a seguir, destacando-se suas principais orientações e avaliando de que forma pode-se considerar como uma política de continuidade ou mudança em relação aos períodos anteriores, tendo visto este histórico que acabamos de apresentar.

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