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Vinculação política, defesa da paz e da democracia e concertação política

4. EM BUSCA DE ORIENTAÇÕES: A POLÍTICA EXTERNA INDEPENTENDENTE

4.2 Características da PEI e a política externa de Lula da Silva

4.2.2 Vinculação política, defesa da paz e da democracia e concertação política

A importância da vinculação ideológica é outro ponto interessante de se registar. O Brasil, em toda a sua história, nunca se autodeclarou socialista. Sempre reverberou – embora implicitamente - a adesão ao sistema capitalista de produção e desenvolvimento, ainda que, em inúmeras ocasiões, tenha comunicado sua insatisfação em torno das contradições inerentes ao processo de desenvolvimento promovido por esse “macro sistema” político-econômico-social.

Além de demarcar a opção (preferência) pelo sistema capitalista, o país tradicionalmente se autodeclara pertencente ao bloco ocidental de nações, destacando a importância do sistema democrático-ocidental como meio favorável à garantia da paz e da justiça social (DANTAS, 2011). Isso quer dizer que o país está vinculado em termos históricos, geográficos, valorativos e políticos aos países ocidentais que compartilham um mesmo sistema de valores que os ligam. Essa vinculação, no entanto, na visão dos formuladores da PEI, não significava tão somente que o país agiria automaticamente de igual maneira que os outros. Traduzia, mais do que isso, que nossa diplomacia valorizava

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os laços que nos ligavam, ainda que resguardemos nossa autonomia na determinação de políticas próprias e na liberdade de ação diante dos desafios e oportunidades presentes no comportamento internacional.

Essa dualidade capitalismo-ocidentalismo (democracia) é marcante no período da PEI porque suscitou resistências internas e externas à sua aplicação. Muitas das acusações contrárias a ela feitas pelos contendores destacavam a vinculação tradicional- histórica do Brasil a esses dois “pilares” para criticá-la. Argumentavam que o país estava se desviando e desvencilhando de compromissos assumidos nos marcos desse dualismo em favorecimento às opções contingenciais e de inclinação ideológica-política não confiáveis – entre as políticas mais contestadas, aquelas que se referiam à participação da China na ONU, ao reatamento de relações comerciais com a URSS e a defesa da não-exclusão de Cuba da OEA são as mais destacadas.

Aceitamos, portanto, que a posição brasileira seja classificada como “não- alinhada no marco ocidental” (FONSECA JR., 1998), isto é, com restrição à liberdade que a condição ocidental, democrática, impunha ao país. De qualquer forma, essa “condição ocidental” não significava preferência ideológica, e a neutralidade diante dos dois campos ficava bem expressa na condenação da Guerra Fria em si e da divisão do mundo em Leste/Oeste, como apontado na subseção anterior.

Baseada, também, numa perspectiva de mudança do eixo estrutural do sistema internacional, a PEI se fundava na crítica à bipolaridade enquanto constrangedora das possibilidades de desenvolvimento. Ela era constrangedora porque desviava recursos que poderiam ser destinados a programas de investimento, e pouca energia política era acionada pelos países mais poderosos no sentido de enfrentar de facto o problema do subdesenvolvimento. Com isso, a atuação internacional do país deveria estar calcada na negação de fronteiras ideológicas e na multiplicação de parcerias diplomáticas sem a preocupação de favorecer esta ou aquela ideologia em particular (CASTRO, apud AMADO, 1982; OLIVEIRA, 2005).

A PEI envolveu a correspondente mudança qualitativa de posturas nos fóruns multilaterais de discussão. Tal mudança fora efetivada no discurso e apenas esboçada na prática. Isso ficou evidenciado na atuação do Brasil no recém-criado Movimento dos Não-

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Alinhados, cuja conferência inicial ocorrera em Belgrado, em 1961 (tendo sida precedida pela reunião de Bandung, Indonésia, em 1955), na qual o Brasil restringiu-se a atuar como observador, representado por Araújo Castro (MELLO, 2009).

A política de “neutralismo ocidental” da PEI buscou tirar o máximo proveito da ligação com o MNA, sem, contudo, afiliar-se a ele. Isso porque o governo brasileiro parece ter entendido que, embora os interesses do Movimento tivessem certos pontos de contato com os nossos, seria mais proveitoso manter nossa independência. Além disso, seriam evitadas as suspeitas dos Estados Unidos no que se referia ao nosso posicionamento. Por já estar engajado num sistema regional de defesa coletiva e não possuir interesses específicos a defender nos fóruns internacionais promovidos pelo Movimento, o país decidiu apenas acompanhar à distância as rodadas de negociação. Como discorreu Ligièro (2011, p. 113), “(...) as características do movimento decisório dentro do grupo não alinhado, em que cada país sede preparava um anteprojeto que depois seria difícil mudar, poderia levar o Brasil a ter de apoiar iniciativas inaceitáveis”.

Os diplomatas brasileiros afirmavam constantemente nas organizações internacionais que o país manteria posição de independência, votando em cada caso conforme os objetivos “permanentes” já definidos. Esses objetivos, contudo, não foram alterados, mas sim relidos de forma mais realista, relacionando diretamente as posições externas presentes com as premissas para o desenvolvimento da sociedade brasileira.

Mesmo assim, a opção da diplomacia por não se alinhar a nenhum bloco em particular, a não ser o reconhecimento do pertencimento ao ocidente democrático, permitia ao país transitar entre as opções e alternativas disponíveis para seguir avante na busca pelos seus interesses.

A defesa enfática do primado do Direito Internacional sobre questões de conflitos internacionais perpassa também a elaboração e aplicação da PEI – e é, inclusive, um dos pilares mais tradicionais da diplomacia brasileira. O Brasil, país pacífico por tradição e escolha, prezava pela resolução pacífica (e legal) das controvérsias internacionais, advogando em favor de maior aproximação diplomática entre os contendedores e evocando que as instâncias internacionais competentes, tal como os

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organismos regionais e globais, decidissem por um fim minimamente razoável e aceitável para as partes envolvidas.

A ideia central, segundo Mello (2009), era a de vincular diretamente o repúdio formal à guerra como meio de ação internacional à preservação da paz como meio de garantir o desenvolvimento econômico entre os países. Araújo Castro também fazia essa interlocução de modo bastante claro, principalmente no episódio a que chamamos a atenção anteriormente na Assembleia Geral das Nações Unidas (na defesa dos 3Ds).

Interpretação interessante feita dessa defesa brasileira por resoluções pacíficas de controvérsias e acato às decisões tomadas por instituições internacionais legítimas, é a de que essa estratégia tentava desviar a atenção para as questões caras ao Brasil, buscando, ao mesmo tempo, superar a falta de recursos de poder disponíveis ao país por meio da tentativa da transformação do sistema internacional pela via institucional (valorização dos instrumentos multilaterais, principalmente a ONU) ou pelas articulações de políticas alternativas (SOARES, 2006). Naquele momento, estas articulações alternativas faziam-se entre os países de menor poder relativo que lutavam pelos temas do desenvolvimento, descolonização e desarmamento.

Entre outras iniciativas promovidas pelo Brasil em fóruns multilaterais a fim de avançar no sentido da paz e segurança internacionais, além da defesa da democracia como método político, estão as tentativas de limitar os testes nucleares subterrâneos e as propostas de criação de uma Comissão Técnica Internacional para dar assistência aos países não alinhados nas negociações sobre desarmamento, além de um acordo multilateral de não agressão (LIGIÈRO, 2011). O Brasil e o México também não mediram esforços para tornar a América Latina uma região livre de armas nucleares. Em meados de 1963, vários países fizeram uma declaração conjunta para a desnuclearização da região.

Por fim, podemos identificar os seguintes pontos a partir da leitura das bases estabelecidas pelos formuladores da PEI nos termos relativos à defesa da paz internacional, do Direito Internacional e da vinculação política brasileira ao ocidentalismo democrático: i) o Brasil é país pertencente histórico e geográfico do bloco ocidental, compartilhando sistema de valores junto aos outros países também pertencentes, embora isso não representasse qualquer tipo de alinhamento automático; ii) a democracia como método

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político e sistema de governo é o meio mais adequado para a consecução dos planos de desenvolvimento econômico, melhoria nas condições de bem-estar e para a inserção internacional do país; iii) conditio sine qua non para o bom funcionamento do sistema internacional é a busca pela resolução pacífica dos conflitos entre os Estados, de modo a evitar a deflagração de enfrentamentos militares e invasões desnecessárias; iv) o Direito Internacional deve ser respeitado e primado pelas partes litigantes, e medidas que sejam razoavelmente satisfatórias para as partes envolvidas devem pautar as decisões ligadas a ele; v) o multilateralismo diplomático, medido por meio da participação maciça de países nos mais diversos organismos internacionais, deve ser incentivado por todos tanto para a proposição de resoluções de problemas quanto para a abertura de negociações e o estabelecimento de normas e regras internacionais cogentes a todos; vi) o reforço e vigor das Nações Unidas deve ser objetivo de todos, de modo a dar maior transparência às suas decisões e legitimidade na sua aplicação (BUENO & CERVO, 2012; DANTAS, 2011; LIGIÈRO, 2011, MELLO, 2009; VIZENTINI, 2003; 2004)

Como ferramenta de inserção internacional e busca por legitimidade em suas ações, o Brasil lançou mão em várias ocasiões destes valores e princípios para sustentar suas defesas e conseguir apoio na busca por interesses próprios e compartilhados com outros países.

Essas características, contudo, podem ser definidas como constantes da agenda internacional do Brasil, historicamente valorizadas e enraizadas na tradição diplomática nacional. Nesse aspecto, a PEI não inova em nenhum sentido com aquilo que é prática permanente da política exterior brasileira, podendo encontrar esse posicionamento em praticamente todos os períodos considerados, mas não deixa de ser expressivo a busca por essa significação em suas ações externas.