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Os anos de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002)

2. POLÍTICA EXTERNA EM PERSPECTIVA HISTÓRICA

2.5 Os anos de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002)

A década de 1990, como destacado, é substancialmente marcada pela transformação do sistema internacional de uma ordem bipolar para um sistema econômico multipolar e outro estratégico-militar unipolar. A unipolaridade militar centrava-se na figura dos Estados Unidos, enquanto que, economicamente, outros polos como a Europa Ocidental e Ásia, mostravam perspectivas positivas de crescimento. No entanto, uma série de entraves internos e externos ao Brasil, entre eles a dificuldade de acesso ao mercado dos países desenvolvidos, o protecionismo agrícola, a desigual capacidade competitiva entre as empresas nos países desenvolvidos e em desenvolvimento (re)força o governo brasileiro a assumir uma postura condizente com as intenções em dar continuidade ao processo de desenvolvimento.

Aliada a essa situação, a política externa norte-americana se reorienta após seu lançamento como potência hegemônica. Buscava-se imprimir uma dinâmica de ação baseada na determinação em ditar as regras do sistema internacional em função de seus interesses e valores, particularmente a hegemonia econômica global. Desde os anos 2000, defende a campanha global de combate ao terrorismo, com fortes desdobramentos no sistema internacional e nos países considerados “páreas”. Do ponto de vista político-

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estratégico, se voltam para a racionalização da ação estratégica na presunção de existência de um inimigo externo, sucessivamente o Irã, Afeganistão, Iraque e Síria.

Nesta perspectiva, a orientação que esta política externa assumiu tendia a privilegiar a ação internacional em teatros de operação externos ao hemisfério americano, o que permitiu ao Brasil aproximar-se de seus vizinhos e a continuar a desempenhar papel importante na construção de uma política de integração e concertação política entre os Estados da região. As medidas de confiança mútua estabelecidas entre Brasil e Argentina desde os anos 1980 converteram-se, pois, em variável essencial da política externa brasileira nesse momento (CERVO, 2002).

Situados num contexto internacional de forte turbulência, os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) foram marcados, do ponto de vista das políticas internas, pelas privatizações, liberalização das regras de comércio e responsabilidade fiscal, além de negociar a estabilização macroeconômica por meio do lançamento (ainda no governo anterior) do Plano Real, conferindo alta credibilidade internacional ao país.

No âmbito diplomático, enfatizava a intenção de influenciar no desenho da nova ordem internacional que se estabelecia, intensificando, para isso, a participação do Brasil nos foros decisórios multilaterais, mormente na ONU e OMC. Dava continuidade, também, à presença brasileira nos debates a respeito dos novos temas da agenda global, com destaque para os de direitos humanos, não proliferação nucelar e meio ambiente. De acordo com Cepaluni & Vigevani (2011), o governo FHC se caracterizou pela busca constante de normas e regimes internacionais, uma busca que visava fomentar um ambiente internacional o mais institucionalizado possível.

As elites governamentais percebiam o Brasil como país intermediário do ponto de vista da hierarquia internacional de poder. Sendo assim, a estratégia de inserção internacional se pautava pela adesão às normas e regras de regulação internacional, pois assim se lhe garantiria a preservação de espaços de autonomia. Por outro lado, ainda levando-se em consideração a auto percepção de potência média e pertencente a um subsistema periférico de poder, a atuação diplomática global do país se ajustava pela lógica da busca por ganhos absolutos, ainda que, da perspectiva regional, a lógica era a de

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fomentar os ganhos relativos dado o poder de barganha do Brasil em relação aos vizinhos menores.

O objetivo do governo não era adaptar-se passivamente às regras internacionais, mas, nos limites de seu poder, redirecionar e reformar o ambiente buscando formas de participação nos assuntos internacionais por meio da elaboração de regimes mais favoráveis aos interesses do país. A adesão a tais regimes, ainda que alguns deles não fossem ideais, representava a garantia de que o Brasil estaria participando de um marco legal-institucional na busca da concretização de seus interesses.

As diretrizes da política externa durante os mandatos de Cardoso seguiram, então, os parâmetros tradicionais de defesa do pacifismo e dos princípios de autodeterminação e não intervenção, além de ressaltar o respeito ao direito internacional e o pragmatismo como instrumentos necessários à defesa dos interesses do país.

Inserido num ambiente internacional dominado pela hegemonia norte- americana e em que o poder do Brasil estava relativamente debilitado, a perspectiva multilateralista passava a ser vista como favorável aos interesses nacionais, uma vez que, por um lado, promovia o respeito às regras do jogo internacional e, por outro, limitava os eventuais excessos de poder cometidos pelas grandes potências (CINTRA; OLIVEIRA; VIGEVANI, 2003).

No campo das formulações concretas, a política externa teve como eixo central, mantido nos oito anos de governo, a retórica do fortalecimento do Mercosul e, sobretudo no segundo mandato, as relações com a América do Sul e outros países considerados médios (ou, relações Sul-Sul).

A ação brasileira deu-se em inúmeros cenários, mostrando uma perspectiva multifacetada, ainda que a importância de cada tema fosse profundamente distinta. Tiveram maior ou menor destaque: o acordo de livre comércio com a União Européia; a integração hemisférica e negociações da Alca; as alianças no âmbito da OMC; a ampliação das relações bilaterais com parceiros importantes, como China, Japão, Índia, Rússia, África do Sul; e questões como a não- proliferação nuclear, o desarmamento, o avanço do terrorismo, o meio ambiente, os direitos humanos, a defesa da democracia, a candidatura a uma vaga permanente no Conselho de Segurança, a crítica aos atuais regimes financeiros internacionais, a relação com Portugal e com os países que compõem a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), e a relação com Cuba. (CINTRA; OLIVEIRA; VIGEVANI, 2003, p. 39-40).

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Durante a gestão Cardoso, Silva (2012) observa a configuração de três frentes conjugadas e articuladas na diplomacia regional, cada qual encerrando ênfases próprias. Assim, para além das relações bilaterais, observava que o Mercosul, a América do Sul e a proposta da ALCA representavam três frentes regionais de atuação brasileira que ganharam novo status ao longo dos anos 1990. O Mercosul é representativo do núcleo duro de projeção de poder do Brasil, na medida em que ganha atenção e espaço na agenda externa em razão dos benefícios que trazia.

No que se refere ao relacionamento com os Estados Unidos, ainda que não se discuta a hegemonia deste país no sistema global, o governo Cardoso procurava aumentar a liberdade de ação por meio da inserção em outros espaços, inicialmente através da região sul-americana e, posteriormente, com outros polos de poder. Assim, buscava uma integração com os EUA em que os interesses do Brasil pudessem ser razoavelmente atendidos sem estabelecer, ao mesmo tempo, uma relação subalterna.

Com isso, as relações com países além do hemisfério americano passaram a representar importante ponto de apoio na multilateralização diplomática. Fora exatamente neste aspecto que Cardoso procurava construir uma rede de contatos e relações que lhe garantisse maior margem de autonomia e oportunidades, inclusive abrindo espaço para explicitar suas críticas aos ganhos assimétricos derivados da globalização e de granjear apoio político às suas reivindicações reformistas, principalmente a candidatura ao Conselho de Segurança da ONU. Preservando a tradição brasileira, o espaço multilateral fora definido como o melhor meio para a atuação do Brasil, disposto a participar na construção de regras para a organização de um novo ordenamento internacional.

Assim, constituíam referência nos pronunciamentos da diplomacia brasileira na ONU os termos democracia (ampliação do Conselho de Segurança), globalização (riscos e oportunidades, em especial, a ideia de globalização assimétrica), integração (como uma contrapartida à globalização e por uma integração entre povos, com a defesa da experiência do Mercosul), capitais voláteis (necessidade de controlar), reforma da ONU (ampliação do Conselho de Segurança), liberalismo (abertura de mercados agrícolas e oposição ao protecionismo dos desenvolvidos), multilateralismo (oposição ao unilateralismo das grandes potências), governança global (regulação multilateral das relações internacionais), e protecionismo (novos temas nas negociações econômicas, meio ambiente,

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patentes e cláusulas trabalhistas). Essas ideias sintetizavam a concepção e a atuação do Brasil nos fóruns multilaterais. (SILVA, 2012, p. 30-31).

O governo agiu, ao cabo, com determinação nos foros de negociação no sentido de regular o sistema multilateral de segurança. Renunciou ao projeto de construção de uma potência nuclear e ao exercício da força como instrumento de política ao aderir aos pactos de erradicação de armas químicas e biológicas de destruição massiva, sintetizados na assinatura do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (RCTM) e do TNP. Participou, além do mais, de operações de paz sob a égide da ONU.

Amado Cervo (2002) tece forte crítica à política externa implantada por Cardoso, principalmente na consideração de que ela estava orientada pelos princípios de democracia, estabilidade e abertura econômica. No seu entendimento, e sem entrar no mérito isolado desses princípios, a questão para ele é que nunca estes foram vetores da política externa brasileira. Consequentemente, a diplomacia de Cardoso fora subsidiária das imposições do sistema internacional, ou melhor, dos Estados Unidos, não correspondendo às demandas e interesses da sociedade brasileira e renunciando a uma política internacional própria.