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CAPÍTULO 3 – Arbitrariedades no Porto Maravilha

3.5 Medo como política de segurança

Como parte do projeto Porto Maravilha, em 27 de abril de 2010, O Globo noticiou a instalação da UPP na Providência. Reproduzindo a fala do então governador do Estado do Rio, Sergio Cabral, O Globo legitima que a segurança no Morro da Providência é parte do sucesso do projeto Porto Maravilha, daí a necessidade da intervenção com a instalação da UPP. Para dar ainda mais legitimidade à reportagem, O Globo também dá voz ao

49 Disponível em http://www.portalclubedeengenharia.org.br/info/carta-aberta-ao-prefeito-sobre-o-porto- maravilha. Acessado em 30/09/2015

“estudioso” em violência urbana, o coronel da reserva da PM Milton Corrêa da Costa. Em sua fala, ele afirma que a iniciativa é “mais um passo dado rumo ao projeto de garantir a segurança durante os Jogos Olímpicos”, como se apenas importasse uma cidade sem violência apenas para cumprir metas estabelecidas relacionadas ao megaevento. Segundo a polícia, a instalação da UPP beneficiaria uma população de 600 mil pessoas, entre moradores da Providência, dos morros da Pedra Lisa e Moreira Pinto, além da população flutuante do Centro (“O desafio de chegar à Tijuca”, O GLOBO, 27/04/2010, p.12).

Como parte da política de segurança, é possível perceber, por intermédio da cobertura noticiosa de O Globo, que diversas matérias enfatizam o clima de insegurança e vulnerabilidade da região do Porto Maravilha. No entanto, para o sociólogo Barry Glassner (2003), nossa percepção dos perigos tem aumentado, e não o nível real de risco. Ele atribui esse aumento “simulado” a pessoas e organizações (como a mídia, por exemplo) que obtêm benefícios com os medos coletivos. Transpondo a análise de Glassner para a realidade brasileira (e mais especificamente a do Rio de Janeiro), pode- se dizer que a mídia corrobora com o governo a partir da exacerbação do sentimento de medo para que haja consenso no apoio à política de segurança, no caso as UPP.

Em 16 de novembro de 2012, O Globo publica reportagem de abertura da editoria Rio intitulada “O medo que ronda a rodoviária”. Ao longo do texto, são citados moradores de rua, usuários de drogas e iluminação precária como parte dos problemas e “perigos” presentes no entorno da rodoviária Novo Rio. Uma matéria coordenada50 informa que o consórcio Porto Novo proverá intervenções urbanísticas no local, com iluminação e novas calçadas. Nitidamente, a reportagem que, aparentemente, apresenta os problemas, também traz as soluções, dando a entender que a concessão da região do Porto tenha sido a melhor encontrada. Não que isso seja um problema. O que falta é a crítica a respeito da responsabilidade da prefeitura pela área. Essa ideia fica ainda mais clara quando o presidente da concessionária à época, José Renato Ponte, declara que a área é muito importante, pois “receberá prédios que vão abrigar os árbitros e parte da mídia durante as Olimpíadas. O entorno da rodoviária ganhará importância ao se tornar a porta de entrada para a Região Portuária, após a demolição da Perimetral”.

Com o início do processo de pacificação da região da Zona Portuária tendo sido em março de 2013, O Globo publicou, em 5 de março, reportagem em que relatava o dia

à ocupação da área pela polícia. O foco da reportagem estava centrado em um busto de D. João VI, localizado na praça em frente ao solar do Rei. O relato se ateve em contar que, antes da ocupação, o busto precisou ser protegido longe da linha de tiros dos traficantes,

“Nem o busto de Dom João VI escapou da violência imposta por traficantes que dominavam as 13 comunidades do Complexo do Caju, na Zona Portuária do Rio. Para evitar danos, a peça em bronze teve que ser retirada da praça – localizada ao lado do solar que em 1817 serviu de Casa de Banho ao Rei – e levada para o interior do imóvel. Ao lado, uma placa indicativa crivada de tiros justifica a precaução. Com o início do processo de pacificação da região, a Comlurb planeja revitalizar o espaço, transformado há 17 anos no Museu de Limpeza Urbana” (“Ocupação das favelas leva de volta busto de dom João a rua no Caju”, O GLOBO, 05/03/2013, p.12).

Se Smith formata o processo de gentrificação nos Estados Unidos, mais precisamente em Nova Iorque dos anos 1970, é importante frisar que há uma diferença na apresentação do processo que pode variar de cidade para cidade. Em seu artigo publicado em “De volta à cidade” (2006), o autor analisa o que chama de diversas dimensões que podem ser compreendidas em termos de cinco características interligadas: “o novo papel do Estado, a penetração do capital financeiro; as mudanças nos níveis de oposição política; a dispersão geográfica; e a generalização da gentrificação setorial” (SMITH, 2006 p. 75). Apesar da ressalva de que estudar a evolução da gentrificação à luz do caso nova-iorquino seja “muito válido” (ibidem), Smith é enfático ao afirmar ser “um erro considerar o modelo nova-iorquino como uma espécie de paradigma, e medir o progresso da gentrificação em outras cidades pelos estágios que lá foram identificados” (ibidem, p. 74).

Assim como Smith, Janoschka e Casgrain (2011) concordam que as pesquisas sobre gentrificação devem ser flexíveis o bastante, em suas variadas perspectivas, já que o termo gentrificação é essencial para trazer à tona a reflexão crítica sobre as políticas urbanas. Os autores comentam sobre as políticas neoliberais da gentrificação, com ênfase para a “a cumplicidade da administração pública com os atores do mercado, com o objetivo de aplicar a agenda neoliberal na cidade” (2011, p. 8). Em termos práticos, isto significa que o mercado é interpretado como a solução central dos problemas urbanos e a gentrificação fica “escondida como um eufemismo sob conceitos como renovação,

regeneração e revitalização urbana, sendo considerada um resultado político desejado e a imagem de um mercado imobiliário saudável” (idem).

A exemplo de outras políticas urbanas neoliberais, a intenção fica por trás de um discurso positivo e de promessas ilusórias. Essas políticas se fundamentam em parcerias- público-privadas, que se destinam à recuperação de fábricas abandonadas ou a renovação de centros históricos, com o objetivo de satisfazer as demandas dos consumidores das classes média e alta. Janoschka e Casgrain lembram que “a gentrificação na América Latina se expressa de diferentes formas simbólicas, conectando-se com políticas neoliberais que se empenham em restaurar o patrimônio arquitetônico dos centros urbanos para turistas e as elites locais” (idem). Para eles, a gentrificação é um conceito de luta que guarda em si, melhor que nenhum outro, o poder de revelar a dominação dos poderosos por trás da renovação urbana: o estado, o capital imobiliário, os bancos, a parceria com arquitetos-urbanistas, publicitários e, obviamente, os meios de comunicação” (2011, p. 14).

Se pensarmos com esses autores, se torna mais fácil compreender a estratégia de destaque dado aos patrimônios históricos e culturais da região portuária do Rio, até então esquecidos (muitos em quase estado de perda total), em diversas reportagens publicadas, como a já citada, que destacou a preservação do busto de D. João VI em tiroteio na área do Caju. Também é importante registrar que, pela lei que rege as PPPs, o consórcio Porto Novo, responsável pelo Porto Maravilha, deve destinar 3% de todos os recursos na reforma de imóveis do patrimônio histórico e cultural, o que significa algo em torno de R$ 2,28 milhões. No entanto, as reportagens de O Globo que tratam da restauração de casarios e reforma de galpões, igrejas e centros culturais não dão destaque a essa informação, passando ao leitor a percepção de que há um investimento espontâneo que cobre integralmente as despesas de preservação e recuperação do patrimônio da região sem que seja, necessariamente, uma obrigação legal.

Na reportagem de 23 de agosto de 2012, por exemplo, é citada a inauguração do Jardim e do Cais do Valongo, o Centro Cultural José Bonifácio e o lançamento do edital de licitação para reforma da Igreja de São Francisco da Prainha (uma das mais antigas do Rio, construída em 1696), além da transformação de diversos galpões na Gamboa e centros socioculturais (“Joias lapidadas, O GLOBO, 23/08/2012, p.12).